A regra do jogo está dada há mais de dois mil anos; o neo-platonismo do cristianismo nascente consolidou-a com o matrimônio de helenismo tardio mistificante e judaísmo. Essa é nossa condicionante mais ampla e, dentro dela, o moralismo a mais presente.
A perplexidade de muitos com o golpe de Estado acontecido no Brasil, a vitimar a democracia, a antecipar o perecimento da soberania, do patrimônio nacional e dos direitos sociais tem ensejado análises variadas. Claro que análises a partir da perplexidade ou surpresa provém do que se pode chamar campo esquerdista.
Algo é comum à maioria destas análises: a afirmação de erros do PT – partido alvo do golpismo de inspiração externa – e da consequente necessidade de realizar mea culpa. Ora, a presença constante destes dois elementos revela que as análises não percebem o modelo maior em que tudo está inserido e são impregnadas de moralismo.
A questão do cometimento de erros é de uma banalidade imensa e os analistas parecem esquecer-se que o erro, além de sempre presente nos processos históricos e políticos, é algo que individualmente dilui-se a ponto de apagar-se. O erro, como opção equivocada, é algo muito micro no contexto geral. O processo, visto de longe, já trás os erros, na medida em que traz suas condições prévias.
A conquista do poder e a tentativa de sua manutenção operando-se dentro das balizas discursivas da normalidade aceite traz o risco da pendularidade. Cedo ou tarde, a mesma base discursiva usada para alcançar o poder será usada para a derrubada do primeiro grupo. Ora, no caso específico, o PT serviu-se de discurso moralizante, acusando a cleptocracia que ele veio a apear temporariamente.
Foi deposto o governo a partir de uma situação de histeria generalizada criada pela mesma matriz discursiva moralizante. Pouco importam as diferenças qualitativas e quantitativas entre os dois grupos, ou seja, que um deles não tenha praticado desvios ou os tenha praticado em menores níveis. Um dos grupos dispõe da imprensa e, portanto, a verdade dele constrói-se como se quiser.
Mas, a política como campeonato de moral é um sistema que traz ínsitas as condições da pendularidade e assim os golpes nada têm de estranhos, mesmo quando vestem poucos disfarces. Eles ocorrerão sempre que a conquista e a manutenção do poder fundar-se na lógica do campeonato de ladroagem. A política assim baseada fragiliza-se e dá as condições para as ruturas periódicas.
Há uma diferença de oportunidades, porém. Aquilo que se chamam esquerdas – nacionalistas acho melhor – leva muito tempo a fermentar o caldo da narrativa acusatória moralista contra os grupos políticos que servem majoritariamente aos interesses do grande capital interno e externo. Ela não dispõe da grande imprensa, como é óbvio, e por isso seus períodos no poder são fugazes.
Depois de depostos governos nacionalistas, viceja o discurso do mea culpa e a piedosa assunção de erros. Isso, como é feito dentro do modelo moralizante, sem muita inteligência e sem nenhuma sinceridade, portanto, é uma inutilidade, tanto tática, como estratégica.
Mas, as personagens sentem-se reduzidas sem erros e sem pedidos de desculpas, porque o homem prefere dizer-se pecador a reconhecer-se mera engrenagem histórica; prefere o protagonismo, mesmo que seja na afirmação do cometimento de erros que nem compreende bem, a dizer que os erros são nada mais que consequências necessárias de causas previsíveis. É óbvio que pautar tudo pelo moralismo é andar numa linha de sucessivas quedas.
Os poderes longamente mantidos nunca se apoiaram no moralismo. Apoiaram-se na conquista, nas forças armadas, no domínio das corporações burocráticas estatais e no domínio da imprensa. A política consiste em escolhas que devem ser impostas por um grupo a outro e na exposição de quais benefícios resultarão destas escolhas e para quem; ela não é, enfim, uma disputa de probidade ou de moralismo.
A probidade dos gestores públicos é, de forma geral, em perspectiva histórica, um problema menor. Sempre houve e sempre haverá que se corrompa e quem desvie dinheiros públicos e isso obedece a um padrão relativamente estável. No caso de gestores públicos, a raiz do problema está no financiamento de campanhas eleitorais e na promiscuidade público privada: onde houver dinheiro e contratos, haverá subornos.
É previsível que os nacionalistas – esquerda, se se preferir – tentarão reerguer-se atuando no mesmo modelo, o que significa que, sem dispor dos construtores de narrativas – imprensa e corporações judiciais – isso demorará muito.
Passei um tempo sem acessar blogs, para minimizar os efeitos sobre minha saúde mental, mas resolvi visitar alguns hoje. Ainda bem que entrei aqui e li seu texto; poucas pessoas conseguem pensar dessa forma entre os nacionalistas/esquerda. Chega a dar agonia! Muitos o fazem por pura sacanagem, outros porque sentem culpa mesmo, os demais por ignorância (eu acho). O fato é que enquanto não fizerem melhores leituras do que aconteceu neste país nos últimos 13 anos, continuaremos patinando por toda a eternidade. Sua lucidez é sempre bem-vinda.
Obrigado pelas generosas palavras. Apareça sempre, cara Arthemísia, seus comentários são sempre lúcidos, o que é raro.