Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Máfia na saúde pública, em Campina Grande. A cumplicidade social tem inércia própria.

Os meios de comunicação noticiam o caso de um médico cirurgião que cobrava dos pacientes o que o Estado brasileiro já lhe pagava. Fala-se que o esquema envolve enfermeiros e funcionários de hospital, que atuavam para obter pagamentos dos doentes por atendimentos que deviam ser gratuitos. Se assim ocorreu, há um crime, pura e simplesmente.

No Brasil, existe o SUS – Sistema Único de Saúde. Trata-se de uma rede de pagamentos feitos pelo Governo Federal a hospitais e clínicas que devem atender às pessoas, desde que tenham voluntariamente aderido ao sistema. Isso criou-se para cumprir o preceito constitucional da saúde pública universal e gratuita.

O governo central distribui aos Municípios e aos Estados Federados dinheiros públicos para se pagarem atendimentos médicos à população, prestados por entidades privadas conveniadas ao sistema. Um médico que trabalhe nesse sistema aceita suas regras e recebe segundo uma tabela com valores para cada intervenção. Ele não é obrigado a aderir ao modelo, convém esclarecer.

Se ele adere ao sistema público, não pode remunerar-se de qualquer outra forma pelo serviço médico que presta, porque aí está a exigir vantagem indevida e a enriquecer ilicitamente, até porque recebe duas vezes pelo mesmo serviço.

Faltam médicos no Brasil. Além de serem poucos, relativamente à população, estão mal distribuídos pelo território. Há cidades que os têm, na relação para cem mil habitantes, mais que o recomendado pela ONU. Há outras cidades que os têm em proporções ridículas, relativamente às suas populações.

Por conta dessa escassez, os serviços médicos são caros. É resultado evidente da lei de oferta e procura, segundo a qual uma oferta pequena para uma demanda grande encarece os preços. Esse é o aspecto objetivo do problema, aquele que permite apontar uma solução também objetiva: aumentar o número de médicos. Leva tempo, mas é possível e deve fazer-se.

A escassez tem o efeito indesejado de aumentar os preços e o poder de chantagem dos profissionais, mas não guarda relações teóricas diretas com outra face do problema. Esse outro lado tem relações com a sociedade brasileira, com a forma de organização dela. Tem relação com a estratificação social e as forças de manutenção da estrutura.

Quando falei em cumplicidade social, no título, não quis insinuar que haverá cumplicidade com a não punição do médico especificamente descoberto a cobrar pelo que não podia. O especificamente descoberto a delinquir provavelmente será linchado, em primeiro momento, e esquecido, ao depois. É o espetáculo.

A questão é precisamente que a punição é – caso ocorra – pontual. Porque, na verdade, é punição espartana, não no sentido habitual do termo, de simplicidade e contenção, mas de exemplo a estimular a não descoberta. Em Esparta, os jovens bem-nascidos eram retirados das famílias para serem educados pela Cidade. Eram estimulados a tudo, a matar um meteco, se fosse o caso, mas, se fossem descobertos, levavam uma sova de deixar às portas da morte.

Tudo pode e tudo acontece, só não pode ser descoberto. Bem, esse é o resumo de algum modelo espartano, porque nós o elaboramos e chegamos à fórmula que lincha o descoberto, mas ao final o absolve. Mas, principalmente, chegamos à fórmula que prescreve a absolvição geral com um e outro apedrejado pelo caminho.

Os médicos que cobram duas vezes pelo que já receberam são muitos; esse que foi descoberto é apenas o que se sentiu mais à vontade no crime. Os servidores públicos que pedem dos usuários o que eles não precisam dar são muitíssimos. Os que entregam uma prestação obrigatória como se fizessem um favor são quase todos.

A raiz disso – não há como evitar dizê-lo – está na concentração brutal de rendas no país. O nível extraordinário de concentração é parente na linha reta da apropriação do Estado, um instrumento de extorsão de recursos do todo e de repartição do produto entre poucos, além de aparato de violência e contenção social.

Assim ele é percebido e assim ele vem funcionando, a despeito de uma e outra reação, de uma e outra intenção dos chefes de governo. Na percepção social dominante, o Estado não é uma entidade supra-individual que existe em função da nação, mas um poder patrimonial que existe em função dos proveitos que se podem retirar dele.

O mais simples indivíduo que se torne funcionário público ou trabalhe em colaboração com o poder público sente-se um recebedor de salário desobrigado de quaisquer deveres realmente públicos. Claro que se sente obrigado aos deveres de contenção formal e de representação teatral de um papel ridículo de aparente probidade, mas nada de assumir-se servidor, em sentido próprio.

Assim percebe-se a realidade, seja o indivíduo empregado do Estado, diretamente, seja o que se chama um empreendedor privado. Qualquer que seja a posição do indivíduo, se ele tiver um certo nível de rendimentos, será um sócio dessa coisa chamada Estado. Mas, ele negará, ele afirmar-se-á independente desse Estado, ele se comportará como se nem existisse Estado, desprezível.

E, por ser desprezível ou maravilhoso, assim esquizofrenicamente, o Estado não será compreendido, não será percebido o que é, ninguém vai saber o que implica, o que significa, os direitos que eventualmente ele lhes assegura. Essa esplêndida confusão vai permitir que ele siga a ser o instrumento de meia dúzia, pago por todos.

E, quando um ladrão for descoberto, será empalado em praça pública, ou não será empalado nem nada, e os outros ladrões vão comentar sua sorte, em casa a bebericar uísque e a dizer que fulano devia ter tomado cuidado. Eles dirão exatamente isso, que fulano devia ter tomado cuidado!

Está fácil, assim. Essa gente –  nós – devia ter que defender seus interesses com os punhos, ou os revólveres, ou as facas. Assim como está é fácil, criamos uma coisa genialmente perversa, criamos a inércia social, quase o modo contínuo. Quando um de fora entra, um de entre milhões, ele torna-se nós!

No final e ao cabo, se é para continuar a falar nos crimes da saúde pública, o que acontece é o seguinte: se as vítimas são pobres, pode acontecer. Se alguém é descoberto, rompendo o pacto de inércia social pelo excesso, faz-se o espetáculo e tudo segue; premiam-se os que cometem crimes mais discretos.

 

7 Comments

  1. Thiago Loureiro

    PERFEITO! Adorei o texto.

    Aconteceu fato interessante comigo essa semana, ao discutir com um amigo médico de CG, que não só nunca havia gostado da pessoa do doutor em questão, como também sempre havia desaprovado as condutas delituosas dele. Meu amigo me disse que a despeito de seus reiterados desentendimentos com o tal médico, tinha fica com “pena” ao vê-lo sendo levado ao Serrotão.
    Eu, obviamente, não me contive, e perguntei o porquê desse sentimento, já que havia muito que esse meu amigo criticava o “delinquente”.
    A resposta, que me surpreendeu (mas nem tanto), foi que ele achava que não era pra tanto, porque o “colega” médico não tinha matado ninguém, não era um assassino.
    A contra argumentação, que me veio à ponta da lingua, mas que segurei por razões que não quero explicitar agora, foi no sentido de provocá-lo dizendo, quer dizer que por ser rico e médico ele não pode(ou não merece) se “misturar” com os que lá estão “mofando” no serrotão? Pq aqueles lá pobres, assassinos são piores ou melhores que ele???

    Como assim cara pálida???

  2. Andrei Barros Correia

    É isso, Thiago, precisamente o que resulta da inércia social: a igualdade relativa!

  3. Rafael Vilar

    Sinto pena de todos que são encarcerados, aquilo é um inferno para qualquer ser humano. Mas como sempre digo, os letrados que delinquem são potencialmente muito mais nocivos do que os pobres deste meu Brasil.

  4. Andrei Barros Correia

    Inclusive, Rafa, dos que foram melhores aquinhoados deve-se exigir mais.

  5. Andrei Barros Correia

    Com os letrados nos infernos, talvez eles passem a meros purgatórios.

    É aquela velha insistência minha de jogar as classes médias e médias altas no vale-tudo, jogá-las no colo do SUS, na cela comum, quando delinquirem.

    Rapidinho o SUS melhora, as normas mais básicas de direitos fundamentais passam a serem atendidas…

  6. Rafael Vilar

    Por essas e outras que a proposta educacional do nobre Cristovam deveria ser aprovada!

  7. Andrei Barros Correia

    Não tenhas dúvidas, Rafa.

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