É difícil identificar aspectos realmente particulares de alguma sociedade, nação, lugar ou época. O mais frequente, quando se tenta identificar tais particularidades ou características marcantes, é serem repetidos lugares-comuns que a grande narrativa cultiva.
Como exemplo dessa repetição acrítica de lugares-comuns, diz-se muito comumente da brasilidade que é caracterizada fortemente pela preguiça, simpatia, alegria e outras qualidades folclóricas. Isso é sumamente falso. O que há em toda parte e em todas as culturas não pode ser característica particular da brasilidade.
O exemplo do parágrafo acima é de repetição de um lugar-comum moralizante e estigmatizante. As características que seriam particulares são universais, mas poucos se deterão a pensar nisto, tamanha é a propensão a repetir sem pensar.
O Brasil é terra fértil para essas coisas. A ideologia dominante é o cristianismo reformado de seitas novas. Assim sendo, tudo que for culpa pessoal, culpa coletiva, culpa étnica e cultural e moralismo raso prosperará.
Se há qualquer coisa que seja particular da brasilidade, eu diria que é o barulho e a tolerância com ele. É nossa forma de ser bárbaros. Cada cultura tem a sua, afinal.
Mas, esta época tem algo particular, no que se refere ao espaço que se pode dizer culturalmente ocidental. O que é característico deste espaço, presentemente, relativamente à forma de pensar e ver as coisas, é a lógica do cassino, da aposta, do jogo. A lógica do jogo tornou-se a régua de medir tudo. Foi elevada até a modelo analítico.
O hipercapitalismo triunfou, ainda que este triunfo deva ser uma fase breve a anteceder o colapso sistêmico. O hipercapitalismo não conhece noções de valor adicionado por trabalho. Logo, nele, tudo tem sentido e nada tem sentido.
O hipercapitalismo implicou o hiperconsumismo que, inicialmente, era funcional à reprodução do modelo. Ocorre que além de mecanismo de reprodução, o hiperconsumismo passou a ensejar uma forma de espoliação talvez mais perversa que a material.
Além de ser um fator nitidamente neurotizante, pela criação exponencial de frustrações, ele leva à espoliação cultural. O hiperconsumismo corrói as bases culturais tradicionais e cria a pobreza totalmente desenraizada, destituída de história, de tradições, condenada ao presente contínuo da aspiração a consumir o inútil ou brevemente obseleto.
O novo pobre não é apenas destituído de haveres materiais, ele é destituído de cultura. Isso o impede de perceber interesses e disputas de classes. Essa figura não tem um lugar social, não comunga de um patrimônio cultural com outros na mesma situação.
O pobre atemporal é aquele impedido de qualquer consciência de classe. Toda sua percepção é presente e estática. O modelo pequeno-burguês foi assimilado e o novo pobre não se percebe pobre exceto por lhe faltarem coisas por alguma razão mágica ou por falta de esforço seu.
Ele perdeu a dimensão trágica da pobreza. Isso, convém dizê-lo, foi muito bem percebido pelo maldito Pier Paolo Pasolini.
Na fase hipercapitalista, o que antes se chamava jogar ou apostar chama-se investir. Essa perversão semântica deveria ser reveladora, caso houvesse muita gente a pensar com suas próprias cabeças. Essa perversão não é apenas semântica; ela é uma perversão que guia as ações concretas das pessoas.
O mundo passa a ser percebido a partir da lógica de cassino misturada com moralismo de seita reformista recente. É algo monstruoso e a contradição evidente não é a maior das monstruosidades.
A maior monstruosidade é a hipocrisia do monstro.
O monstro hipercapitalista precisará do Estado para conter ou eliminar as massas famélicas que ele produziu, mas falará mal do Estado. O monstro hipercapitalista precisará eliminar todas as liberdades que algumas lutas produziram, mas falará em direitos humanos.
O monstro hipercapitalista precisará de emergências sucessivas. Ele testou a disposição para obediência das massas e percebeu que é seguro oprimi-las a bem de um suposto bem coletivo pintado com fina camada de pseudo-ciência.
A chantagem coletiva é seu meio de tentar o controle por narrativa. A oferta de pseudo vantagens é o convite para a servidão voluntária que se entrega ao controle tecnológico de espectro total.
Neste ambiente, em que impera o diversionismo de falsas pautas ou de pautas irrelevantes, todos jogam como se assim se fossem salvar. O jogo é a sedução da produção de moeda sem produção de valor. Isto deveria bastar para evidenciar que não é possível ser a lógica de base de alguma sociedade.
E, de maneira até bastante coerente, a lógica do cassino tornou-se base teórica para as mais diversas análises. Ou seja, o nada é o suporte intelectual de várias análises.
Vez ou outra aporto por aqui…
Bem que poderia compartilhar algo, não?
Saudade das suas linhas.
Um abraço, Lapa!