A má-compreensão e a falta de significado de um termo são praticamente a mesma coisa. O termo liberdade é, juntamente com justiça, dos que menos significado têm, ou porque sejam vasos a comportar qualquer coisa, ou porque sejam mais juízos valorativos morais que representações de algo.
Claro que alguém pode objetar que esses termos são pouco ou nada mais que designações de juízos morais amplamente vagos e cambiantes, mas o problema reside exatamente em que os objetantes não acreditam, sinceramente, nestas ambiguidades decorrentes da dependência total das circunstâncias. Até os supostos objetantes da falta de significado querem sempre acreditar que se trata de termos unívocos portadores de verdades imutáveis.
As pessoas aceitaram tacitamente a convenção de somente falar de liberdade das formas mais tolas e superficiais possíveis, o que revela sua insegurança, ignorância e medo do assunto. Por outro lado, o grau de interdição de um assunto ou de um nome revela bem sua importância efetiva. Não foi à toa que o inteligentíssimo Camus afirmou que o suicídio era o único tema sério da filosofia para as pessoas: ele não era inseguro, nem ignorante, nem medroso.
Isso de liberdade vem imediatamente ligado ao lugar-comum da escolha, da decisão que seria sempre tomada entre alternativas pesadas por alguma vontade agente. Acontece que a vontade agente e una deixou entrever, primeiro para alguns artistas e, depois, para certos cientistas, o que tinha de reflexo condicionado e de plúrima. A questão do reflexo incondicionado pela vontade é menos problemática, mas a superação da unicidade será apostasia eterna.
Não deixo de voltar a pensar em textos de Sperry, de Gazzaniga e de Bogen, alguns co-escritos por eles, outros apenas de Sperry, na sequência das maravilhas resultantes da pesquisa com a seccão dos corpos calosos: Language in human patients after brain bisection, Observations on visual perception after disconnexion of the cerebral hemispheres in man e Brain bisection and mechanisms of consciousness.
Roger Sperry e Michael Gazzaniga perceberam que a unicidade não era mais que predomínio da linguagem, algo que Stevenson havia percebido antes de 1886 e que certamente muitos outros dotados de arte e paciência perceberam antes ainda. O estranho caso do doutor Jekyll e do senhor Hyde e o único essencialmente duplo, a deliciosa contradição que tem toda realidade despida de suas fantasias. Um são dois, por que não?
Como sempre, a ciência andou mais lentamente que a arte, embora não signifique mais capacidade de penetração de uma ou outra, porque ambas são opacas para o vulgo. Nunca foram libertadoras, nem demolidoras de lugares-comuns, ao contrário do que pensam os dogmáticos limitados e medrosos. Não há porque travar-lhes o caminho para evitar que a massa se instrua e supere os lugares-comuns. Isso é investir contra a coisa errada. O contato do vulgo com a arte e com ciência dão em nada, já com a política é fértil, e é para aí que os conservadores devem mirar.
Os doutores neurocientistas norte-americanos postularam, nos anos de 1960, algo que implica, sem eufemismos, a falsidade da pessoa una e agente livre. A unidade, embora óbvio convém dizê-lo, é de ordem material, o que significa que um corpo é todo ele coerente e movido pela mesma e única vontade, segundo a dogmática de matriz religiosa dominante.
Poucas coisas poderiam ser mais demolidoras que os fenômenos da mão alheia e da incompreensão total por falta de abordagem por linguagem, que eles viram e estudaram na sequência da separação dos hemisférios cerebrais. Nem a vontade era única no mesmo corpo, nem o mesmo corpo compreendia algo igualmente a depender de que metade lateral recebesse os estímulos visuais, tácteis ou sonoros.
Não causa escândalo algum falar em dominância lateral e afirmar que a linguagem associa-se ao hemisfério cerebral esquerdo. Curiosamente, causa escândalo lembrar o que antecedeu a essas conclusões e o que se infere, posteriormente. Se há dominância lateral, há um dominado.
O dominado, no humano, é aquilo que o vulgo generosa e acriticamente chama de natural. O natural é, em via inversa, exatamente o que o vulgo não quer que seja: amoral, imediato, incapaz de desculpas, incapaz de disfarces, tão livre quanto preso à fome, ao sono, à lubricidade periódica, mas sempre livre porque incondicionado por linguagem.
Pois bem, esse natural é preciso que não seja natural nem livre, duas supressões que o dominador hemisfério esquerdo desempenha muito bem e que resulta que seja visto como a realidade natural e livre.
Quero apontar que uso neste texto termos valorativos comuns – que se aceitaram como termos absolutos não valorativos nem relativos – como são natural e livre, apenas para dar a ver a inadequação que têm para a compreensão do assunto. Se existem e têm algum sentido natural e livre, esses termos passam a inexistir e a não terem qualquer sentido se virmos como são usados para coisas diversas, como são usados imprecisamente e como poderiam ser usados igualmente para coisas antagônicas.
Recentemente, a ciência, a mesma que anda atrás da arte, descobriu que o campo da chamada liberdade de escolha é mais restrito do que gosta de supor o vulgo. Fê-lo por imagens do cérebro que identificam áreas ativadas por atividades específicas. Em resumo, há um padrão de respostas pré-estabelecidas, o que tem um quê de arqueológico e antigo, mas inegavelmente diminui o tempo de resposta aos estímulos.
Nenhum animal tem liberdade ante o fogo e talvez este seja o exemplo mais elementar de resposta condicionada. Todavia, isso vai se tornando mais sutil à medida que as supostas alternativas são menos drásticas, mas ainda assim o acervo de respostas mais ou menos estabelecidas existe e as respostas dão-se conforme a este repertório de sim e não, numa lista binária muito longa de se isso então aquilo.
Porque não convém ao vulgo perceber que a enorme maioria de suas escolhas não são mais que reações a rigor involuntárias? Porque reconhecer que o âmbito de escolha é muito restrito implica aumentar o valor da escolha e da liberdade, por escassez. No fundo, o vulgo quer isso que canta em loas constantes reduzido a algo comuníssimo e abundante, enfim, barato.
O vulgo precisa ver liberdade em tudo, precisamente porque crê que ela significa nada. Enaltece em prosa e verso ruins o que não estima verdadeiramente.
Por outro lado, saindo do campo da psique, evidencia-se que o discurso de existência da liberdade de escolha a cada passo serve à dominação de muitos por poucos. A liberdade, essa coisa bonita e ampla, se ela existir assim como dizem, justifica todas as desigualdades entre as pessoas. É terrível e ao mesmo tempo genial essa idéia de instilar na maioria a noção de culpa da vítima a partir de algo que se valora positivamente.
A liberdade, em termos políticos e econômicos, está na raiz da desigualdade. Assim, a desigualdade não passa de um estado natural de coisas – e eis aí outra inexistência cara ao vulgo – devidas às vontades de cada qual. Todos livres e uns poucos muito melhor aquinhoados que a maioria, era necessário convencer a maioria de que tudo se devia enfim à sua própria vontade!
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