Futebol é esse jogo que está em evidência por conta do campeonato mundial realizado pela Fifa. Barbárie é algo mais complicado de definir-se. O termo sugere oposição a civilização e revela uma forma de caracterização de uma civilização dominante.
Os gregos da idade de ouro chamavam bárbaros a todos os não-gregos, exceto a alguns persas, a quem chamavam medos, apenas para provocá-los. Algum respeito devia haver nisso. Os romanos chamavam bárbaros àqueles que estavam além do Reno e do Danúbio, basicamente. Aos da bacia do Mediterrâneo chamavam pelos nomes, embora não os considerassem iguais.
Os chineses, esses que precisamos começar a perceber melhor, não chamavam aos outros especialmente; faziam a suprema forma de auto-elogio. Chamavam-se a si mesmos de Império do Meio e os outros são os outros.
A palavra, hoje, tem sentido que vai além de simples dominação. Uma das significações possíveis é educação para a vida em comum. Ou seja, adoção e crença em algumas regras que conduzem a convivência a um mínimo de conflitos por invasões das esferas privadas. Ou que, talvez, signifiquem que as esferas privadas não vão resolver seus conflitos por mais conflitos.
O fato é que espetáculos – não apenas o futebol, mas vários outros – levam as pessoas a manifestarem seu júbilo de forma bárbara, ou seja, de uma maneira que não leva em conta eventuais contrariedades ao formato da festa. Aqui, entra em cena outro aspecto interessante. Às vezes, a forma bárbara de júbilo é tão maioritária e as insatisfações tão poucas, que se trata de um verdadeiro triunfo democrático da barbárie. Os insatisfeitos que se mudem!
Coincidem o mundial de futebol e as festas de São João. Estas últimas caracterizam-se, entre outros costumes, por um farto uso de bombas, daquelas que se acedem os pavios, lançam-se adiante e ouvem-se as explosões. Esses artefatos não produzem qualquer beleza – pois não se trata dos fogos de artifício que desenham imagens caleidoscópicas no céu – e geram apenas barulho.
Muito barulho, na verdade, e muito risco. Nesse período, os hospitais recebem feridos por explosões de bombas às fartas. Não somente as crianças, habituais desfrutadores dessas maravilhas explosivas, mas adultos de infâncias tardias. O que já foi tradição e brincadeira comum, tornou-se em prazer tolo de bombas que devem dar inveja ao exército norte-americano.
Junta-se às explosões sucessivas de bombas o canto fanho e insuportável das cornetas. Como nós, brasileiros, temos uma irresistível propensão a sermos colonizados culturalmente, chamamos essas cornetas de vuvuzelas, embora sejam a mesma e única coisa, para que já havia nome.
Pois bem, essas cornetas infernais estão por todos os lados, sopradas incessantemente por gente que não dá a mínima importância, nem à paz dos outros, nem aos espetáculos que supostamente está apreciando. Realmente, foi uma invenção genial, essa das cornetas de plástico com nome de vuvuzelas.
Um sul-africano inteligente convenceu meio-mundo que havia um costume de tocá-las nos jogos de futebol e que, portanto, era uma tradição cultural. Ora, era uma tradição tocar as tais cornetas, mas nada tinha a ver com futebol, até porque não havia tradição alguma associdada a futebol na África do Sul. Fez um imenso mal, esse cidadão criador de uma tradição inexistente de barulho insuportável. Mas, ficou rico.
Onde a terra é boa, não se devem plantar ervas daninhas, senão elas vicejam. Pois bem, estávamos com a cretina tradição das estúpidas bombas de fazer tremer as paredes e agora estamos com elas e as cornetas. Termina um jogo de futebol e espocam as bombas e sopram as cornetas.
Não quero ser injusto por esquecimento e devo pagar tributo à lembrança de outro barbarismo. Além de bombas e cornetas, há o hábito – tradição já seria elogio – de abrir os carros e pôr músicas nos máximos volumes possíveis. Afinal, não há coisa alguma que não possa piorar. Claro que chamar barulhos de música foi outro elogio até porque a partir de certa altura qualquer música é barulho.
Além de falar do incômodo, ainda me vem à mente uma e outra divagação. Ninguém presta atenção a jogos de futebol ou a cinema ou a qualquer outra coisa. É crível que pessoas que sopram uma corneta por noventa minutos estejam prestando alguma atenção a um jogo?
Esse é o aspecto mais terrível da superficialidade. Qualquer coisa de ver-se ou de ouvir-se não se vê nem se ouve!
Em dimensões mais discretas, lembro-me do cinema. Os fulanos e fulanas que vão ao cinema cuidam de munir-se de copos imensos de xarope doce, gasoso e preto. Deviam munir-se de penicos também, porque isso dá uma diurese imensa. Armam-se de pacotes descomunais de pipocas. E conversam!
Para encher-se de xarope preto e doce, como um inglês de cerveja, e de pipocas, como uma galinha de milho, não é necessário um filme, basta vontade. Para explodir bombas e tocar cornetas bastam o carnaval e o São João, não se precisa de futebol.
Alguém pode dizer que sou um chato. Ora, isso eu sei, e sei que sou louco, também. O caso é que assim sendo tudo termina por ser nada. E todos terminam por serem tolos. Se as pessoas querem explodir bombas ensurdecedoras, soprar cornetas insuportáveis, fazer barulhos em um cinema, por que não fazem tudo isso sem precisar de desculpas?
O mais característico da barbárie é não se aceitar e procurar a justificativa do momento que a permite. Procurando a justificativa ela destrói tudo à volta e impõe-se verdadeiramente, porque os momentos terão que ser todos. Nada limita o estabelecimento de momentos de descompressão social, que terminam por ser os de barbárie. Então, para quê buscar-se justificativas? Para ter a ilusão do controle sobre as situações.
Ontem, não jogava a equipe brasileira. À noite, pelas dez ou onze horas de um domingo, um indivíduo explodia bombas imensas – daquelas de fazer tremer as paredes mesmo – no meio da rua. Era precisamente em frente ao edifício em que moro. Do outro lado há quatro blocos de morada de sargentos e suboficiais do exército.
Depois de iniciado o bárbaro espetáculo das bombas, um morador do prédio do exército vem à varanda e pergunta ao estúpido bombista se a brincadeira dele estava perto de encerrar-se. O pândego não se dá o trabalho de responder e explode mais uma bomba. Em seguida, vem à varanda uma mulher com uma criança de colo – devia ser um recém nascido – e simplesmente pára.
A mulher pára com cara de cansada e como a perguntar ao cultor das tradições bombistas se algum menino ou menina recém-nascido dormiria com aquilo. Pergunta destinada à mesma resposta que tinha sido dada ao seu antecessor e provável marido: outra bomba.
Em condições normais de temperatura e pressão – que agora dou para lembrar dessas coisa do colegial – chamar-se-ia a polícia, porque isso é caso para ela. Mas, não. E foi sábia a decisão de não chamar a polícia e esperar que o bárbaro se esgotasse de seu afã de explodir bombas.
Havia um perigo. Era a polícia chegar e confraternizar-se com o cultivador das tradições.
Perfeito. Outro dia, por convenções sociais, tive que assistir a uma das partidas do Brasil em casa de conhecidos e um deles levou uns 15 desconhecidos, dos mais barulhentos. Terminada a partida e aumentado o teor alcóolico de quase todos os presentes, o barulho de bombas e músicas se tornou insuportável, para mim e, certamente, para os vizinhos. Perto (apenas) do conhecido mais íntimo, fiz ar de quem não gostou da vigésima bomba a explodir. Levei a pecha de “antissocial”. Até o sou, mas não consigo concordar que sociáveis sejam os que perturbam a sociedade dessa forma em nome da diversão sua e de um punhado de amigos.
Tenho conseguido, Pedro, escapar de todos os convites para ver jogos do Brasil em qualquer lugar.
Escapo ao preço de aumentar a imagem de chato, ou antissocial – como disseste. Resulta melhor, acho. Chato e antissocial sempre fui e um pouco mais ou um pouco menos, pouca diferença fará.
Nessas ocasiões, alguém vê o jogo? Essas ocasiões – vitória da equipe brasileira, por exemplo – permitem a revogação de todas as normas de convivência coletiva?
No fundo, triunfa uma espécie de democracia: aquela da confusão. Assumiremos os riscos desse tipo de revogação democrática?
Se nos dispomos a assumir esse risco, devemos fazê-lo por inteiro, sem o oportunismo dos períodos permitidos e não-permitidos.
Devemos entrar por inteiro na falta de normas, assumi-la, dormir e acordar com ela, defende-la veementemente.
Devemos dizer que a criança que não dorme é problema menor. Ora, ela que não durma, afinal é uma celebração popular que não deve ser tolhida.
Devemos dizer sem eufemismos que o povo é um só, com uma mesma e única forma bárbara de comemorar as coisas. E devemos igualar tudo, na barbárie e na apropriação das rendas, afinal somos todos igualmente bárbaros.
É dose para elefante, meu caro.
É amigos….
Tenho dois filhos pequenos, e toda vez que tem jogo do Brasil, as bombas explodem como loucas!
Mas não é nem isso que mais me incomoda!
Incomoda-me muito mais, o país inteiro parar por causa de um jogo!
Minha filha está realizando uma série de exames cardiovasculares. Recebí uma carta da prefeitura (estamos usando o SUS) informando que ela deveria comparecer (anteontem) para realização de exames em determinado endereço. Anexo, havia o seguinte recado:
“Em dias de jogo do Brasil, a unidade só funcionará até as 12:00hs.”
Fiquei revoltado com isso!!!
E ao chegar no local, questionei tal atitude, e recebí como resposta que:
“Também merecemos ver o jogo!”
Fazer o quê, esqueço-me que estamos no Brasil….
Abraços!