Uma conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, ocorrida em 1972, foi recolhida no volume intitulado Microfísica do Poder. Em determinado momento, Deleuze diz algo interessante: Se se considera a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global. Quero dizer que todas as formas atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão no ensino, a repressão contra os jovens em geral.
Essa visão total, essa articulação de vários subsistemas, indicam que o poder é muito sutil – como emanação variada, não como meios de atuação prática – e que, por outro lado, consiste em um movimento. Uma roda de bicicleta que desça sozinha uma ladeira é metáfora bem razoável para descrever-lhe a inercialidade.
A representação política é uma de muitas faces perceptíveis do poder atuante à luz do dia. Costuma ser a mais útil, porque geralmente calcada nas narrativas de legitimidade formal para a alocação de recursos do Estado. Mas, não é preciso, ou não é completo, dizer-se que o poder está somente no governo do Estado, ou seja, nas representações políticas e nas demais classes dirigentes corporativas.
Os exercentes de poderes de governo, em maiores e menores escalas, são tão intermediários quanto detentores de frações de poder que se exercem em determinado sentido, contra um núcleo de interesses opostos. Os agentes são identificáveis, mas o poder em si é difícil de identificar tamanha a integração sistêmica dos seus componentes. Acontece, porém, que rearranjos sempre acontecem.
Hoje, no Brasil, há muitos surpresos com os ensaios de expurgos internos no grupo amplo que assaltou o Estado para retomar a compressão social e alienar a soberania pouca que havia. Esses expurgos não são idênticos ao de Carlos Lacerda, por exemplo, mas obedecem praticamente à mesma lógica. Eles não serão apenas o que os apressados querem ver: desculpas para golpes maiores em líderes do campo oposto; não há grande necessidade destas desculpas, pois o mito da imparcialidade não ruiu.
O grupo dos intermediários na representação política reproduz-se e postos elevados podem ser reciclados com relativa facilidade. Os que existem mais ou menos para além da inercialidade são poucos, são os que conseguem por-se um pouco à frete e ao lado, para ver as coisas, e que conseguem fazer da teoria uma prática e vice-versa. Assim, há competição interna nos grupos, o que, de resto, é evidente, embora não tão evidente seja a intensidade a que chega.
Em essência, o expurgo interno tem uma causa principal e mais remota: desnecessidade. Um político pode ser desnecessário por uma de duas razões: ou não é viável eleitoralmente, ou não é útil porque as eleições a que visa não ocorrerão. Este fenômeno acontece em função do poder que advém do dinheiro e é, talvez, onde a parcela financeira do poder se exprima mais claramente, quando ele muda o equilíbrio entre os intermediários de que se serve.
Hoje, a intermediação mediática e pelos subsistemas repressores policial e judicial assume a frente, em detrimento da representação política. Claro que isso, também, sofrerá rearranjos posteriores, depois que façam o que deles se espera, mesmo que mantenham sempre poderes residuais e latentes prontos a ocuparem outros espaços e reivindicarem utilidades.
Feliz ou infelizmente, os preços das coisas importam e importam crescentemente à medida que avança a escassez de dinheiros, ou seja, nas depressões econômicas. O sistema busca ganhos de produtividade, ou seja, produzir resultados semelhantes a custos menores. Isso afeta a parcela apropriada pelos intermediários responsáveis pela produção de narrativas, por quase todos eles. E isso já é o prenúncio de outros deslocamentos e rearranjos de poder.
Afinal, produtores de narrativas não são assim tão raros e o grande número está quase sempre pronto a seguir projetos em que não tem interesses muito claros, como são os financeiros e econômicos. São, ainda como dizia Deleuze, mais desejos que interesses e desejos são mais difusos e profundos que interesses. O expurgo, na espiral moralista, compraz o grande número e só surpreende o expurgado.
Carlos Lacerda não previu nem aceitou seu expurgo. O que significa que, mais que não compreender os novos ocupantes do governo, não entendia o grande número de então.
O grande jogo não busca a imprevisibilidade, embora sirva-se da confusão espetacular. Ora, ao assistir calmamente o expurgo interno de intermediários esforçados, está dando a conhecer que os abandonados e os novos que pretendem substituir aqueles são, ambos, fatores de imprevisibilidade.
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