As congregações de sábios inquestionáveis, como o Banco Central Europeu, a OCDE, o FMI, recomendam aos países europeus: baixem salários e aumentem impostos sobre o consumo. Muito bem, não é estranho que façam tais recomendações, porque sabe-se bem a que servem. Estranho é esse mantra ser adotado e repetido como fórmula imutável de invocação dos deuses domésticos.
Mas, por que esse é o único remédio aplicável para reduzir os défices públicos? Ou, ainda, por que só se pensa nos défices públicos? Apenas como exemplo de que as coisas parecem estar sendo abordadas de forma dogmática, vejam-se uns números da economia espanhola.
A quarta economia da Europa viu seus défices públicos reduzirem-se de 62% do PIB para 36%, entre 1999 e 2007. Enquanto isso, a Alemanha, origem do fetichismo fiscalista, viu os mesmos números passarem de 61% para 65% sobre o PIB. Ocorre que, na Espanha, os défices privados elevaram-se a 12% do PIB. Trata-se de desequilíbrios comerciais e, não fiscais.
Outra pergunta a ser feita: por que fala-se em despesa pública como se fosse um bloco unitário? Certamente para difundir o discurso da necessidade de compressão de uma e outra despesa específica, como se todas fossem indistintas. Aqui, alguns números da França são exemplares.
Percebe-se muita insistência na diminuição de salários do setor público. Todavia, uma retirada de 1% significaria à volta de 0,06% do PIB francês. Por outro lado, por exemplo, estima-se que as fraudes fiscais representam entre 2 e 2,5% do PIB europeu, segundo parecer da Comissão Europeia. Admitindo-se que os efeitos da fraude sejam similares em todos os membros, fica evidente que combatê-la traria muito mais recursos que reduzir salários!
Outra fonte de défices públicos de que não se fala são as renúncias fiscais para os estratos sociais mais aquinhoados. Na França, a despesa pública aumentou muito pouco, entre 2000 e 2009, segundo estudo do deputado Gilles Carrez, do partido governista UMP. Ao mesmo tempo, as receitas fiscais caíram 6,2% do PIB, em torno a 119 biliões de euros. Dois terços dessa redução deveram-se às renúncias fiscais e um terço a repasses a outras administrações.
Dessas renúncias fiscais, aproximadamente 10 biliões de euros devem-se a renúncias sobre os impostos sobre os lucros. Entre 33 e 41 biliões de euros devem-se às reduções das maiores alíquotas do imposto de renda. Ou seja, as perdas fiscais – que aumentam o défice público – devem-se a opções regressivas na renúncia fiscal.
Os governos, então, chamam tudo por défice público e despesa pública, indistintamente, como se fossem blocos unitários, para disfarçarem que estão a impor a conta de crises financeiras aos que dela não se beneficiaram mais. E emitem mais dívida pública para continuar a transferência de rendas ao setor financeiro.
O caso brasileiro é ainda mais escandaloso, qualitativamente e quantitativamente. Aqui, o estado paga os maiores juros por títulos públicos do mundo, embora só um perfeito imbecil possa supor que o Brasil é o pais mais arriscado do mundo! Assim, atrai especuladores de toda parte, seduzidos pelo enorme diferencial entre os juros do restante do mundo e a obscenidade que se paga aqui.
Resulta uma valorização da moeda local que retira competitividade dos produtos exportáveis e uma sensação de agradável enriquecimento, além das facilidades para se viajar ao exterior. Ora, quando convier ao terrorismo financista internacional, organiza-se um ataque especulativo e todos juntos vendem seus títulos brasileiros. A moeda sofre intensa e rápida desvalorização e as dívidas externas aumentam.
A próxima sequência do jogo combinado é a oferta dos conselhos habituais, com ares de verdades délficas. Ou seja, meia dúzia de senhores que se dedicam à rapina sob o nome de consultoria financeira dizem, em uníssono: o único remédio é aumentarem os juros, para acalmar o irriquieto capital e trazê-lo de volta. Então, aumenta-se o que já era elevado, satisfazem-se os capitais e os bancos e deixa-se um rastro de destruição.
Ao mesmo tempo, insiste-se no discurso de que as despesas públicas estão muito elevadas. Todavia, quando falam em despesas públicas não mencionam aquelas destinadas ao pagamento de juros. Despesas públicas, para as aves de rapina, são salários, aposentadorias, rendas mínimas e juros são um compromisso divino.
O que há de estúpido nisso é o que tem de imediatista. Coisinhas como salários, aposentadorias e rendas mínimas foram precisamente o que aumentou o mercado interno brasileiro, aumento que é um dos fatores preponderantes nesse crescimento vigoroso que se tem observado.
Qualquer economista sabe – embora muitos façam questão de esquecer – que a propensão marginal a consumir das classes baixas é muito maior que das altas. Por isso, qualquer transferência de rendas para as classes mais baixas reflete-se em aumento grande no consumo. Não invoco aqui qualquer coisa de justiça social, que seria demais querer a preocupação de alguém com isso. Invoco apenas a inteligência.
Meia dúzia de banqueiros com patrimônios que aumentem de centenas de biliões a mais centenas não produzem qualquer efeito na demanda! Cem ou duzentos Patek Philipes a mais ou algumas Ferraris a mais não têm implicações na taxa de desemprego. Essas coisas sempre se venderão aos mesmos compradores e quase sempre nas mesmas quantidades.
“Despesas públicas, para as aves de rapina, são salários, aposentadorias, rendas mínimas e juros são um compromisso divino.”
Bom, muito bom.
João Ezaquiel,
Lastimavelmente, a realidade comprova isso.
E comprova também que os ajustes fiscais quase sempre são regressivos, ou seja, são feitos em cima de quem tem menos capacidade contributiva.
Andrei. Para você ver como são essas verdades eternamente repetidas, no governo fhc dizia-se que o problema do desemprego no Brasil era culpa da legislação trabalhista que seria muito rígida e que enquanto não houvesse uma flexibilização essa realidade não mudaria. Ocorre que quem briga com a verdade sempre tem a realidade a lhe desmentir. No governo do PT um contingente expressivo foi incorporado ao mercado de trabalho e desses, 2/3 de carteira assinada, colocando por terra os preceitos então defendidos.
Bem lembrado, Julinho. Milhares de empregos têm sido gerados e a legislação é exatamente a mesma de vários anos atrás.
Ou seja, o problema não era a legislação.
A legislação trabalhista é fruto de tensões e lutas de classe. Ela, ao meu ver, serve para proteger os trabalhadores de mais exploração pelo capital(e principalmente o proprietários cegos para a vida dos trabalhadores), sendo ainda insuficiente.
As vontades de desregulamentação atendem interesses claros da classe dominante com o simples objetivo de aumentar os lucros e massacrar o empregados e, embora o Direito tenha seus problemas, e a simples existência de legislação não é garantia de efetividade de direitos, ele é importante para conter uma maior exploração do trabalhador.
Um exemplo claro de como a desregulamentação agrava os problema de mercado é o exemplo americano, onde a troca de influência no legislativo e em cargos de confiança do governo gerou um corte na regulamentação financeira que cuminou com a última grande crise do mercado mundial. É interessante ver o último filme de Michael Moore – Capitalism – A love Story, uma visão de dentro do problema.
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