Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Eu, centro do mundo…

Pela manhã cedo, costumo estar de bom humor. Isto foi essencial no episódio falado a seguir, porque não é sempre que altas doses de ridículo e egocentrismo levam a reações adequadas.

O edifício em que moro é próximo de um terminal de integração de linhas de ônibus de transporte coletivo urbano. Assim, a rua em que está localizado é roteiro de muitas linhas, ou seja, nesta rua passam ônibus com destino ao tal terminal.

Manobrava o carro na garagem, em vias de sair para trabalhar, quando uma senhora, vizinha, bateu levemente no vidro do lado oposto ao meu. Parei o carro, baixei o vidro e dei-lhe bom dia. Ela respondeu educadamente e de forma meio complicada iniciou o discurso a que se propunha.

– O senhor sabe, aqui na rua passam esses horríveis ônibus. Desde esse terminal aí, o de integração, tem essa maldição.

– Sim, passam ônibus…

– Olhe, é uma poeira que Deus do céu! Fica tudo sujo, o tempo todo, a empregada tem de ficar limpando o tempo todo. Um horror!

– É, realmente o tráfego dos ônibus traz muita fuligem.

– Precisamos fazer alguma coisa. O senhor precisa falar com alguém.

– Como assim?

– Falar com as autoridades, em nome do condomínio. Pedir para não passar mais ônibus na rua!

– Entendi… A senhora quer que eu peça às autoridades de trânsito para proibirem os ônibus de passarem aqui na rua? Certo, certo, vai dar certo isso…

– Vai, eles vão entender o absurdo que é isso.

– Claro, vão… Olhe dona Fulana, vamos fazer o seguinte, pra dar mais substância a essa justa reivindicação…

– Diga?

– Vamos fazer um abaixo-assinado! A senhora, penso eu, é aposentada, não é?

– Sou, sim.

– Pronto, a senhora tem mais tempo que eu e conhece mais gente. Daí, a senhora colhe as assinaturas de todos os moradores da rua. É fundamental pegar as assinaturas de todas as freiras aí do Convento das Clarissas, aí em frente, e dos mórmons aqui do lado; isso tem peso, sabe.

– Sim, sim, tem, mas será que isso é preciso mesmo?

– Claro! Depois é só reconhecer todas as firmas em cartório e nós procuramos as autoridades.

– Olhe, vou ver, vou ver… Até mais senhor Sicrano, tou vendo que o senhor tá saindo para o trabalho.

– Até, dona Fulana. Disponha. Bom dia.

O mais extraordinário deste episódio é que a minha interlocutora não pensou nem um minuto que o desejo dela esbarra nos interesses de toda uma coletividade que se transporta em ônibus, nos interesses do poder público e nos interesses do capital!

Ela simplesmente acha que o absurdo para ela – o tráfego dos ônibus na rua em que mora – é um valor absoluto e que, ou não há milhares de outros interesses, ou eles devem sucumbir frente ao dela. É autorreferência em estado quase puro.

Interessante também é que dá para forçar um recuo quando se trava a tentativa do autorreferente de terceirizar ridículo e trabalho. Neste ponto, muitos começam a pensar um pouco…

3 Comments

  1. Severiano Miranda

    Deus tá vendo! Um dia você vai ser aposentado também!!!
    Quero ver o que vai inventar com tanta falta do que fazer!! kkkkkkkkkkkkk

  2. Andrei Barros Correia

    Rapaz, a questão não é a aposentadoria, que ela não cria egocentrismo, nem estupidez.

    Mas, se estas coisas já existirem, são potenciadas pela aposentadoria!

  3. Arthemísia

    E assim caminha nossa sociedade. A senhora não é diferente dos milhares de motoristas que acham que são donos das ruas e que apenas um carro nelas trafega: o deles. Parabéns pelo bom humor; o meu tá difícil demais da conta de manter.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *