As trivialidades, quando estamos em bom estado de humor, são as coisas mais deliciosas que há. Porém, quando os líquidos corporais conduzem mais análise que divertimento, são terríveis portas abertas para a percepção da brutalidade.
Isto que se encontra acima do texto, como título, foi dito na padaria, domingo ao final da tarde, por uma senhora daquelas repletas de doirados, desde os óculos até às sandálias, passando, é claro, pelos punhos, dedos e cintura.
A típica criatura que, provavelmente feia até mesmo antes de envelhecer, enfeita-se. Enfeitar-se é o reverso da beleza, seja de formas e proporções, seja de gestos. Mas, a feiúra não percebeu que grande piada fizeram-lhe, ao convencer-lhe que enfeitar-se minimiza. Dá-se precisamente o contrário.
Mas, não é de feiúra, nem de doirados, que quero falar. Não é, tampouco, apenas dos rotineiros erros nas colocações pronominais, na eterna confusão das ênclises e próclises, da supressão dos plurais e da incapacidade de usar os pronomes no caso oblíquo.
Essas agressões à estética, mais que às normas, revelam muito mais que ignorância formal ou que suposta grandeza de cultivas oralmente o coloquial.
Primeiro, apontam algo delicioso, que é a profunda democratização homogenizante a que chegamos: as diversas classes falam da mesma maneira, embora uma aquinhoe-se muito melhor que outras, materialmente e em termos de prestígio social. Devo dizer que a senhora adoiradada dos seis pães transportava-se em automóvel de não menos que R$ 80.000,00.
Outra coisa que me chama profundamente a atenção é a brutalidade que há numa frase tal como esta, usada para pedir pães. Não houve um boa tarde, um por favor, nem um obrigado e certamente as ausências são se deveram àlgum intuito deliberado de ser brutal.
A perda quase absoluta da estética, do culto das formas e da precisão, por quem teoricamente teve acesso aos treinamentos escolares, vem de mãos dadas com um à vontade feito de imperativos desacompanhados das formas consagradas de lubrificação das comunicações.
Ainda há quem use da cortesia básica de dia-a-dia, como se usam roupas do século XIX, ou seja, naturalmente e sem afetação. Há quem use como a desempenhar uma personagem exótica, efeito obtido porque o número maior não usa e percebe o usar como realmente exótico.
O normal, este é a brutalidade de mão dupla. Sim, de mão dupla, porque é realmente democrático e quem ordena em dialeto a entrega de seis pão está pronto para ouvir alguma negativa ou o simples mau humor da moça da padaria, no mesmo tom.
A comunicação dos desiguais econômica e socialmente faz-se no mesmo dialeto, o que é extraordinário. Se assumo que brutalidade de imperativos não precedidos de bons dias, por favor e obrigados – além dos erros estéticos – é algo que não caracteriza os melhores, devo ficar um tanto incomodado com as possíveis conclusões.
Os mais bem aquinhoados não são melhores em nada além da inércia decorrente da classe em que nasceram ou de terem sido bem aquinhoados com os predicados do oportunismo e o talento para a vigarice.
Há nisto um tantinho de transição inconclusa do rural para o urbano. A cortesia por fórmulas consagradas, mais que um adereço barroco de dândis, é um óleo a reduzir os atritos prováveis no convívio de muitos e com interesses diversos.
A brutalidade do imperativo constante, que não se permite quase exceções, é muito caracteristicamente rural e vai bem neste meio, que funciona sem travar com menos óleo lubrificante. Transposta para outras realidades culturais, leva à duplicidade que necessariamente antecede à fixação pelo menor padrão ou à rutura definitiva.
Sempre houve quem compreendesse e desculpasse às classes mais baixas e aos anacronicamente provindos do meio rural essas formas no discurso cotidiano. Não creio absolutamente que façam mal estes que percebem e desculpam, porque se trata de algo que espontaneamente vem de onde poderia vir.
Todavia, é artificialíssimo, por um lado, que o mesmo se procure desculpar em quem reivindica superioridade, cosmopolitismo, maiores rendimentos e alguns discretos privilégios de classe.
Poderíamos aprofundar a democracia para além dos seus evidentes aspectos de liberdade de sufrágio. Seria algo em que a funcionária da padaria voltasse para casa num automóvel de R$ 80.000,00, como faz a senhora dos doirados; ou algo em que ambas retornassem a pé ou em transporte coletivo. Afinal, elas são as mesmas pessoas!
Deixe um comentário