Poderia acrescentar à pergunta do título outra: é possível agradecer a um criador absoluto e atemporal por qualquer coisa recebida por conta de pedidos insistentes? E quem não recebeu, deve ser considerado pouco insistente ou, se for para ser considerado indigno, por quais critérios?
Não vou esconder o que me anima a escrever essas mal cozidas linhas. E a profusão de graças a deus, foi deus que meu, glória a deus, se deus quer quem impede, deus me proteja e deus isso e deus aquilo.
Por simplificação, adotarei uma visão monofisista e considerarei as palavras deus e Jesus sinônimas, porque de fato tornam-se. E, por honestidade, vou dizer que escrevo, não como adepto de algum cristianismo, mas claramente como adepto de uma ortodoxia que se escandaliza com a vulgaridade selvagem dos homens a lançarem mão de dogmatismos rasos.
Se alguém vive imerso nas suas superstições – e todos nós vivemos, sejam elas anímicas, quase-platônicas ou científicas de almanaque – que assim viva. Agora, se alguém vive essas superstições como se fossem as únicas possíveis e configuradoras de códigos universais, a coisa complica-se.
A vontade de mandar nos outros é característica das pessoas que, para tanto, servem-se das mais variadas armas. O discurso absurdo é a pior delas. Quero apontar que o discurso absurdo é diferente do discurso sobre o absurdo, para evitar confusões previsíveis. É diferente dizer que o absurdo existe e dizer que o absurdo justifica que fulano mate sicrano ou encha o saco deste último até ele mesmo começar a discursar absurdamente também.
Se qualquer coisa criou tudo que há sem ter sido criado, ela também criou o tempo ou, em outra forma de ver, está fora do tempo, pois não no criou para a ele submeter-se. Se as criações dessa coisa criadora estão no tempo, a ele submetem-se, elas não são consubstanciais ao criador. Se elas, enfim, não são a mesma coisa coisa, tampouco podem comunicar-se.
Se pensarmos em tempo, uma pedra é mais substancialmente próxima do criador dela e de tudo que as pessoas, porque as pedras costumam viver mais que as pessoas. Mas, as pedras não têm a horrível possibilidade de se pensarem pedras não-pedras. As pessoas têm tal capacidade e utilizam-na para serem pessoas em camadas, pessoas com tanto medo do tempo que, ou querem estanca-lo, ou perpetua-lo.
Querer perpetuar o tempo é próprio de quem a ele submete-se, porque o atemporal não tem essa preocupação, evidentemente! Em sentido inverso, quem está no tempo não concebe o infinito, senão em imagens finitas, mais ou menos belas, mas sempre imagens e, não tempo.
Se há uma coisa criadora, ela não precisa nem compreende homenagens, porque somente as compreenderia se viessem de outra coisa igual e também criadora. Um exemplo vulgar pode dar uma comparação, ainda que precária: a melhor guitarra produzida não é uma homenagem ao luthier que a fez.
Se há uma coisa criadora, ela não deu automóveis, casas, nem fortunas a pessoa alguma. Simplesmente, porque essas coisas não foram criadas por ela. Agora, é possível a deliciosa conclusão de que, por derivação, o criador deu tudo, o antigo e o atual, porque criou as matérias e os meios de fazer as coisas.
Nesse sentido, deve-se admitir que há bastante lógica em agradecer-se ao criador pelas desgraças que existem ou, mais audaciosamente, negar que desgraças existam. Deve-se agradecer pelas doenças, por todos os males que podem acontecer às pessoas por conta da existência delas e das matérias à disposição. Enfim, se tudo advém de um criador – seja ele inerte depois da criação, seja ativo – e o criador deve ser homenageado, logo tudo deve ser homenageado.
Um santo estilita do deserto – cujo nome não me lembro – chegou a tal deliciosa conclusão e foi logo repreendido pela heresia de rezar pelo príncipe do mundo. Sim, ele foi às últimas consequências e rezava pelo demônio que, afinal, é parte da criação e merecia que se pedisse por sua alma ao criador.
Quer-me parecer que a vontade de glorificar-se, de homenagear-se e de fazer disso uma obrigação generalizada avança com a força que tem a propensão das pessoas a subutilizarem suas cabeças e a quererem mandar nos outros.
Haverá um ponto fantástico, um momento catártico em que todos, sem excepções, afirmarão nos seus carros ou estampado em suas roupas suas homenagens ao criador. Nesse momento, todos homenagearão e serão diferentes. Todos sentirão que homenagearam com a mesma intensidade, sinceridade e fervor, mas o criador os terá aquinhoado diferentemente…
As gentes das homenagens, glorificações, agradecimentos, louvores e que tais – comerciantes do pedir e dizer que pediram ao que não nas ouve – podiam lembrar que muitos serão chamados, mas poucos escolhidos.
Vai ver eles pensam que, na impossibilidade de serem escolhidos, mais vale passar bem com 171 in the name of the almighty agora, e se dar mal depois, de qualqer maneira.
Não deixa de ser um pensamento tentador, será que a inscrição do concurso pra pastor ainda está abeta?
=)
E eu, Vevel, pessimista por profissão, acho que eles pensam em porra nenhuma…