Uma notícia diz que dois moradores de rua foram mortos a pauladas, ontem à noite, na Praça Presidente Kennedy, na cidade de São Paulo. Não é a primeira vez que isso ocorre. E não é apenas em São Paulo que acontecem barbaridades como essas.
A violência extrema é praticada tanto horizontalmente, como verticalmente e essa constatação é assombrosa. Horizontalmente quer dizer na mesma classe ou no mesmo grupo. Moradores de rua brigam e matam-se por insignificâncias aparentes, por pequenas dívidas de álcool ou drogas ilícitas, por espaço. De certa forma, reproduzem nos estratos mais baixos o que se passa nos mais altos.
Verticalmente a violência pratica-se de forma quase lúdica, de cima para baixo, socialmente. Alguns agressores assimilaram a noção que o predomínio sócio-econômico autoriza a prática da violência contra os inferiores nessa escala. Isso reproduz um comportamento animal, ou seja, de relações predador-vítima, mas entre seres que são racionais.
A propósito da violência lúdica vertical, há espaço para lembrar um episódio que se deu em Brasília, há treze anos. Em 1997, cinco jovens de classe alta de Brasília, atearam fogo em um índio pataxó – Galdino Jesus dos Santos – que dormia em uma praça na capital da república. Ele morreu queimado.
Os jovens eram socialmente privilegiados. Um era filho de um juiz federal, outro de um oficial superior das forças armadas, por exemplo. Eles passeavam de madrugada em busca de alguma diversão e encontraram-na na praça onde dormia o índio. Simplesmente, desceram, jogaram álcool nele e tocaram fogo.
Surpreendente – brutal na sua sinceridade – foi a justificativa de um dos criminosos. Ele disse que puseram fogo no Galdino porque pensaram que era um mendigo. Quer dizer, se fosse um mendigo era possível fazer aquilo! Outro deles disse que foi uma brincadeira. Mas, é muito revelador das pessoas aquilo com que brincam e com quem fazem as tais patuscadas.
Alguém que se desculpe de um crime afirmando que foi uma brincadeira reconhece implicitamente que é incapaz de discernimento, ou, melhor dizendo, reivindica para si o estatuto legal do incapaz, para escapar à pena. Todavia, a desonestidade insinua-se porque essa reivindicação pretende-se relativa e o criminoso não quer ser considerado totalmente incapaz, que na verdade não é.
A incapacidade ou leviandade que leva um jovem rico a tocar fogo em alguém e assim matá-lo é seletiva, contudo. Ele não procede com tais brincadeiras contra seus socialmente semelhantes. Ou seja, a brincadeira é consciente e os brincantes sabem muito bem os efeitos que podem resultar e contra quem podem agir. Realmente, não consta que tais divertimentos sejam praticados com pessoas em posições mais elevadas, social e economicamente.
A propensão à crueldade está na natureza humana, como Stevenson deixou claro com arte, no seu O médico e o monstro. O monstro é uma potencialidade do médico, que precisa ser destrancada por algum meio. A chave mais comum para abrir as portas que confinam o monstro são os hábitos socialmente consolidados.
Em um país que viveu três séculos com o escravismo e que continuou a praticá-lo após sua abolição formal, as chaves são forjadas dentro das cabeças de todos, desde o primeiro momento em que começam a manejar a linguagem. O monstro liberta-se aqui muito facilmente e não mata somente à noite, às escondidas, como se tivesse medo da polícia londrina. Ele anda bem à vontade, senhor da terra, impetuoso, ávido por diversão, fogo e sangue.
Se a polícia chega, ele diz que estava brincando, como brincavam os senhorzinhos com os escravos.
Estas cenas se repetem e a sociedade cala .A violencia cresce em todos os sentidos e direções.