Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Desmame democrático.

Sugiro que o texto adiante leia-se com mente aberta, com mente que recorra às informações que dispõe – se delas dispuser. Que o leia a pensar, para não perder mais uma de tantas coisas claras que a limitação leva o vulgo a ver como complicação ou alegoria divertida e ociosa. Tomei a liberdade de transcrever o texto do amigo Alcino Miguel  Cardoso sem o editar. Sim, porque isso é parte de uma correspondência não destinada, a princípio, a dar-se a público. Claro que perguntei ao Miguel se podia por as palavras dele aqui e a resposta foi afirmativa. 

 

Uma criança nasce e chora! Foi retirada do mundo cómodo em que tudo lhe assistia! Daí em diante chora para obter o peito da mãe, para aliviar as dores, para obter o conforto do regaço que o acolhe. O institivo choro inicial é apreendido rapidamente para obter o prazer, o conforto ou a necessidade que se deseja. As divindades, mãe e pai, são apenas do recém-chegado e estão para o servir totalmente.

Esta é a mais profunda e instintiva aprendizagem dos humanos. Jamais nos libertamos dela e toda a construção da vida se faz em seu torno. Os que verdadeiramente a percebem e não lhe encontram quaisquer limites, tornam-se capazes de exercer o poder plenamente, e em busca da glória e da riqueza prometem a salvação de todos os seus seguidores. Esta é a construção simples do poder.

A esta construção do poder, a história do homem em sociedade acrescentou muitos outros passos e circunstâncias. De entre elas a mais relevante é a propriedade, ou seja a forma convencionada de perpetuarmos o nosso poder sobre qualquer coisa e inclusivamente sobre os outros, assim surgiu a escravatura, o casamento e, por fim, a cidadania.

Ao primeiro impulso de satisfação máxima dos desejos, sem qualquer noção do irmão que o precedeu e com ele co-existe, soma-se, logo após, a consciência da realidade dos outros e da inevitável divisão daí resultante, o ser rapidamente se lança na conquista e na defesa do já por si conquistado; assim nascem a concorrência e a propriedade.

O conservadorismo liberal e utilitário é a mais pura forma de expressão deste choro inicial.

Deixemos para lá a explicação, prova material, cientifica ou histórica destas coisas, basta sabermos o que era o “Demos” na antiga Grécia e como o voto nas modernas democracias representativas se circunscreveu a alguns. Se quisermos simplificar: um voto, um choro.

Assim, nasceu e proliferou a grande massa média, acéfala e indistinta, ciosa dos seus direitos, ditos adquiridos e inalienáveis, produto duma consciência social-democrata germânica que procurava evitar o totalitarismo politico decorrente do colectivismo económico e a convulsão revolucionária sempre gerada pelos desfavorecidos ou excluidos da riqueza; afinal a revolução bolchevique e a I e II grandes guerras tiveram lá o seu epicentro. A poderosa e instruida burguesia germânica sabia do que estava a tratar.

A burguesia capitalista alemã sem abandonar a pura lógica mercantil introduziu-lhe regras fiscais e de organização do trabalho para correção das assimetrias do mercado e melhor conformação social. Um acto inteligente! Porém, com isto deu à luz uma nova burguesia, a burguesia tecnocrata; servente d`O mercado, divindade provedora de todos os seus impulsos, desejos e necessidades.

Uma tola burguesia servente, que se proclama livre!, néscia da natureza do poder, e que infantilmente confia no seu voto como ordem ao concilio dos Deuses para a satisfação indistinta e ilimitada de todos os seus desejos. Absoluta e trágica inversão da natureza das coisas, da ordem do divino e do humano!, meu caro.

Os meninos europeus cresceram convictos do efeito choro/mamada, mas, como todas as mães sabem, um dia chega em que o leite seca nas suas tetas, um novo irmãozinho nasce, a mãezinha quer dar outro uso às suas tetas e a vida continua.

Tudo isto aconteceu, novos irmãozinhos, as tetinhas a procurarem novas glórias e o menino que não entendeu nada disto e continuou no seu choro insaciável! O choro dos bébés europeus, gordinhos e anafados, não é audível na China ou no teu Brasil e será mesmo desprezado por quem o possa ouvir. Nada mais intolerável do que uma birra histérica de uma criança mimada!!

Agradeço o teu convite para escrever, e por isso escrevi isto!

Não para ser um artigo explicativo, como pretendias, mas, para conversar um pouco contigo. Os restantes meninos que abram os olhos, que leiam!, ou então que se fodam porque por aqui não há teta para mamarem.

9 Comments

  1. Andrei Barros Correia

    Tu apontas algo, Miguel, dentre outras coisas que abordas com precisão, que me chama bastante atenção.

    A tecnocracia foi a genial e demoníaca invenção que lubrificou as engrenagens de uma coisa que se quis chamar democracia.

    Esse grupo é o simulacro da aristocracia e o veneno da democracia. É coisa tão cara aos tedescos, que Habermas dedicou-se a fazer uma grande base teórica desse estamento predador e manipulador do Estado.

    Posicionados abaixo dos grandes capitalistas, inventaram e reivindicaram para si uma aristocracia que não têm. Fizeram de sua servidão aos de cima sua superioridade relativa aos de baixo.

    Mas, tinham que meter discurso na justificativa, claro. Choram e sempre choraram por tetas aleitadoras. Acreditam que a luta pelas poucas tetas dar-se-á entre eles poucos… e conseguem fazer valer isso.

    Quando a disputa pelas preciosas tetas é de morte, brigam os aristocratas de espada e o povo e eles se escondem a reclamar. As pazes os trazem de volta à cena.

  2. Daniel Maia

    É interessante notar o surgimento desta tecnocracia no ocidente a partir das necessidades da burguesia alemã. Agora, mais curioso ainda é perceber que aquela é, senão, apenas uma variante da classe dos ditos servidores públicos que, desde que existe Estado, representam uma sombra do próprio poder, sob qualquer forma que ele seja exercido. Sabe-se que a “tecnocracia” ainda é hoje um dos forte pilares de organização política e social dos países que pretenderam adotar o socialismo. E há ainda um sem número de histórias desses funcionários na China dinástica, na Pérsia, no império Inca, e na Roma de qualquer época, que chegavam a ser mais importantes que o próprio soberano. Parece-me que, quer estejamos nos referindo aos complicados mecanismos de produção que inventamos nos dois últimos séculos, quer nos reportemos aos escribas dos tempos mais antigos, estamos tratando da mesmíssima coisa, apenas com roupagem diversa. Só o anarquismo ou comunismo verdadeiro prescindiriam deles.

  3. Andrei Barros Correia

    Daniel, prezado, és muito preciso – como de hábito – ao indicar que sempre houve as burocracias estatais, os corpos de funcionários públicos que, sim, às vezes tiveram mais poderes que o soberano.

    Lembrava-me, a este propósito, da burocracia de eunucos da corte Aqueménida, descrita minuciosamente e com imenso talento por Vidal, em Criação.

    Mas, o que é notável de dois séculos para cá, é o papel de intermediação da burocracia ou tecnocracia estatal, desempenhado no teatro maior da democracia.

    Se antes era detentora de poder efetivo, inserindo-se em cortes, hoje precisa justificar-se a ajustar-se ao discurso de legitimidade democrática, o que destaca um certo caráter farsesco.

  4. Andrei Barros Correia

    Sim, esquecia-me. Aí vem um alemão franquefurteano como Habermas e dá o suporte teórico desse poder que é democrático e não é!

  5. alcino miguel

    Caro Andrei,
    Daniel Maia,

    Julgo importante distinguir uma confusão gerada com o epítetismo “burguesia tecnocrata”.
    Na verdade, este grupo, como fala Andrei, formado por uma grande massa média, não é propriamente burguês, mas, meramente seu herdeiro; fiduciário dos ideais que a burguesia brandiu com as revoluções liberais.
    A burguesia conquistou o seu lugar na história destronando os aristocratas; lutou, empreendeu e conservou.
    A burguesia é ciosa do seu mister, do seu lucro e da sua poupança. O seu capitalismo necessitou de liberdade e segurança para se movimentar porque disso depende o seu modo de vida!
    Esta classe não é empreendedora é servente, não procura o lucro apenas a utilidade/proveito imediato, não poupa apenas consome!
    Não é burguesa, está abaixo desta servindo-a!
    É tecnocrata na atitude, na mentalidade! A função sempre se manifesta no índividuo é certo, a tecnocracia está ao serviço das sociedades, correctíssimo Daniel.
    Porém, o poder é o lugar da evasão, do arbítrio. O dramático do regime democrático é está enfermo da atitude desta grande massa! Mas!, há quem ainda exerça o poder e estes colocam-se discretamente mesmo ali ao lado do poder democrático.
    Um abraço.

  6. Daniel Maia

    Andrei,

    Tens razão. Em outros tempos esteve ausente o discurso justificador da tecnocracia, como se esta e a democracia mantivessem estado de simbiose necessária, o que é, de toda forma, uma falácia.

    Miguel,

    Pertinentíssimo teu complemento.

    Todavia, indago se não estaríamos sonhando em demasia com uma democracia ao alcance das massas, quando nós todos sabemos que este regime de participação na pólis, desde suas origens, nunca foi concebido para este formato. Hoje, contenta-se com a sua mera consagração formal, por mais que se queiram instituir outros mecanismos, também jurídico-formais, de aumentar a intervenção dos interessados na política.

    Deixo claro que não sou partidário de qualquer governo formado exclusiva ou majoritariamente de iluminados ou endinheirados. Agora, a história tem mostrado que entre as massas e o poder real há uma caminho que só pode ser percorrido pelo sangue, pela imolação. E depois que os deuses satisfazem sua sede, depois da catarse, findo o ritual, novo ciclo de dormência recomeça.

    Estamos assim fadados a repetir o esquema de sempre. Queria eu que inventássemos algo melhor do que a democracia.

  7. Andrei Barros Correia

    Daniel,

    Chegas ao ponto: o divórcio sempre houve e parece que continuará. O modelo muitas vezes lembrado, Atenas, era uma democracia plena para 10% da população.

    Segue assim, hoje. A diferença é que Atenas excluia escravos, metecos, estrangeiros, mulheres, pobres, sem que isso fosse estranho ao modelo.

    Hoje, temos que ouvir e reproduzir que todos estão inseridos no modelo, mas não estão.

    E segues para a conclusão incisiva: só a imolação muda o modelo.

    De minha parte, acho democracia um nome e só isso. Não significa que ache melhor ou pior que outros nomes, nem que os proponha.

    Os jogos jogados envolvem posições de conservantismo total, de um lado, e de mudanças táticas, de outro. O modelo não abre espaço para mudanças estratégicas, porque aí ele deixaria de ser!

  8. Severiano Miranda

    Me lembrou o diálogo do “Leopardo” de Luchino Visconti: “Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.”.. =)

  9. Andrei Barros Correia

    O Príncipe de Salina era homem inteligente. Seus filhos eram tolos, mas Tancredi, seu sobrinho, era inteligente. Com quem ele foi?

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