DECLARAÇÃO
Eu, Fulano de Tal, brasileiro, casado, funcionário público, residente no município de Qualquer Canto, venho, expressamente, para finalidade de explicar e legitimar minha perplexidade ante o óbvio e previsível que adviria com o golpe de Estado que desejei ardentemente, declarar-me obtuso, ignorante de história antiga e recente e incapaz de pensamento autônomo.
Declaro, outrossim, que sou inteiramente guiado pela narrativa da imprensa, que me faz pensar como se comungasse dos interesses dos super ricos, a ignorar que cada classe tem seus próprios interesses, que são conflitantes com aqueles das demais e principalmente com as de cima.
Declaro-me, ainda, um tolo que é guiado pelo ódio e pelo fugaz e disfarçado anseio de ver os de baixo piores que eu e sempre mais distantes. Que a perspectiva de vê-los mais distantes fez-me esquecer que me distanciaria ainda mais dos mais de cima.
Sigo a declarar que minha memória praticamente inexiste, assim como as percepções que meus órgão sensoriais captam de nada me servem. Olho e não vejo; repito o que me disseram. Não converso com amigos ou próximos; nós todos despejamos uns sobre outros repetições das mesmas fontes. Fazemos ruído, enfim.
Declaro-me a prova acabada de que a figura do mocinho satisfeito, enunciado por José Ortega y Gasset – de quem ouvi falar, porque não leio – é o tipo social dominante. Disseram-me que este tipo é o menino mimado crescido, sujeito de todos os direitos e de nenhuma obrigação; menino mimado que pode invocar o direito à própria ignorância.
Declaro mais que, embora tenha tido educação formal, estudado primário e secundário em escolas de classe média alta, privadas, e tendo estudado curso superior gratuito em faculdade pública, isso de nada me serviu. Não vi o óbvio, ainda que óbvio fosse para quantos pensaram com suas próprias cabeças, mesmo para aqueles que não tiveram educação formal, como eu tive.
Declaro-me um assassino enrustido e envergonhado. Declaro que me move o moralismo, que é coisa próxima à vontade de burlar sem ser descoberto e de celebrar os que burlam sem se deixarem apanhar.
Afirmo que julguei mal o saque aos mais pobres que eu, algo que eu desejava às vezes até abertamente. Não que tenha deixado de o desejar, mas cria que seu resultado seria revertido para mim e não para os que estão acima de mim, o que afinal aconteceu. Declaro-me ignorante, enfim.
Fulano de Tal
Excepcional! kkkkkkkk