Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Pseudodivergência: poder real.

A maior expressão de poder é estabelecer as condições em que serão postos os discursos da pseudodivergência, que é um dos pilares do mito da imparcialidade. A imprensa majoritária – braço amigo do grande capital – conseguiu atingir este objetivo e domina integralmente o espetáculo do contrário aparente.

Se eu ponho as balizas da discussão sobre mim mesmo, eu sou ponto e contraponto previsíveis. Curiosamente, há um exemplo de sucesso desta estratégia na indústria do entretenimento, em que as piadas com judeus são todas previamente autorizadas por eles mesmos, não estranhamente os donos desta indústria.

Inicialmente, a abundância material atingida no século XX – e abstraio da justeza da sua distribuição – deu as condições da espetacularização da sociedade: condições econômicas para um fato social. Em segundo momento, o processo passou a retroalimentar-se também pela categoria subespetacular da pseudodivergência.

 O debate havido no âmbito dos vários meios de imprensa é o modelo ideal da pseudodivergência, que funciona mesmo se protagonizado por debatedores bem intencionados e não necessariamente assalariados para dizerem isso ou aquilo especificamente. É possível lançar a pseudodivergência que nada diz, nada informa e tudo confunde com pessoas mais ou menos livres das amarras da compra e venda puras.

 Há lugares a serem explorados para a condução da pseudodivergência com bons ares de imparcialidade teórica e política. Um deles é o consenso, tratado implicita e explicitamente como objetivo sempre desejável, embora não se pare para pensar porque o consenso seria algo invariavelmente vantajoso.

Esse arranjo disfarça uma convergência enorme de interesses na reprodução espetacular e conduz a uma aparente polifonia, quando, na verdade, tudo obedece a uma lógica que já não usa nem se refere a valores de uso. A lógica é integralmente de troca e de discursos que se articulam às trocas sucessivas, sem, contudo, nada de substancial dizerem.

Essa aceleração na dinâmica do poder real não se deve tanto ao aperfeiçoamento tecnológico recente. Do rádio em diante, suas condições técnicas suficientes estavam dadas. Bastava, para o triunfo absoluto, que se chegasse ao ponto de inexistência de memória da situação precedente, ou seja, de pertencerem todos desde nascidos ao tempo das tecnologias de comunicações usadas pelo espetacular.

 Assim, o poder determinou em que termos se pode falar dele, forneceu as objeções que ele gosta de receber, forneceu os meios das pessoas serem aparentemente contrários, apropriou-se da contracultura como mercadoria. O poder, não é demasiado destacar, não se confunde com os governos, embora com eles geralmente esteja em franco conúbio.

A essência do poder é não ser percebido; quando consegue atingir este estágio, é pleno. O dinheiro reunido aos meios de comunicação levou a um poder quase pleno, por todo o mundo. Determinar o que é assunto e contra assunto permite-lhe atuar livre de críticas efetivas e mais, reduzir as hipóteses de deserções efetivas do modelo.

A deserção efetiva implica a percepção do caráter fetichista da mercadoria e isto é cada vez mais difícil e consequentemente mais raro, o que leva a crer na longevidade deste modelo espetacular, permeado aqui e acolá de crises que ele mesmo gera, como reservas de energia para sua constante reprodução.

A divergência seria rejeição ao consumo – à falta de termo mais adequado – de mercadorias e de informações; a rejeição à terminologia fornecida pela imprensa; aos seus loci discursivos pseudohumorísticos. Seria necessário perceber que a divergência não acontece pelas regras de quem as forneceu, exceto se ele assim o quiser e neste caso, interessa ao espetáculo e não passa de pseudodivergência.

Discurso jurídico e farsa.

Recentemente, falou-se da descoberta de uma carta manuscrita de Adolf Eichmann para o presidente de Israel na época de seu processo de eliminação física. Por meio desta missiva, Eichmann teria pedido para ser poupado do assassinato. Não sei se isto é verídico e não fui averiguar a tal notícia.

Não sou dos que nutrem especiais admiração ou repulsa por Eichmann. Se fosse dos primeiros, certamente o nível de admiração cairia, na medida em que o pedido de clemência é a tolice suprema de um desesperado. Compreende-se que não se queira morrer na forma vil que é a forca, mas pedir aos executores da vingança que a não executem é patético, além de inútil.

Se fosse dos segundos, certamente a repulsa aumentaria, porque sempre se compreende um pedido de clemência como algo necessariamente antecedido de uma confissão de culpa implícita. É como se o fulano dissesse que fez o que fez, mas por razões que lhe fugiam, por cumprir ordens e coisas deste gênero.

O pedido de clemência, caso tenha havido, é bastante revelador. Tanto da ingenuidade do pedidor, quanto da total ausência de juridicidade no processo em que se decretou sua execução após o sequestro. Ou, talvez ainda mais, revelador do correto significado da judicialidade.

 Nossa cultura judaico-cristã sente necessidade imensa de disfarçar as vinganças e o exercício do poder. Eles têm de ser confundidos num processo que os legitime formalmente. Para isso serve o direito, essa forma cambiante de conferir aparências civilizadas às coisas mais brutais. E serve para tanto mesmo expondo suas contradições enormes. Por exemplo, em termos criminais, não se admitem crimes nem penas sem leis anteriores que os definam.

Todavia, os famosos tribunais de exceção desprezam absolutamente este princípio e o da territorialidade. Realmente, a extraterritorialidade é algo aberrante em termos de justiça criminal, porque o suposto criminoso nunca agiu a pensar que estivesse submetido a uma nebulosa jurisdição universal baseada numa lei que ainda não existia.

O que há – e é profundamente humano – é a vingança. Mas, como em relação a quase tudo muito humano, a cultura judaico-cristã tem vergonha da vingança e precisa chamar-lhe julgamento.

A narrativa é mais poderosa que a experiência e que o interesse.

É impressionante como, nos confrontos entre as palavras e a experiência direta, a palavra frequentemente sai vencedora: muitas pessoas acreditam no que lhes é dito, e não naquilo que seus próprios sentidos indicam.

As linguagens do Cérebro, Horace B. Barlow

 

Todas as classes sociais defendem seus interesses. Uma delas nunca se confunde, nem discursa a favor do próprio suicídio: a dominante. Nas outras, as posturas são cambiantes e há o flerte com a prática real do discurso contra si mesmas.

As classes baixas são variadas; a média é muito mais uniforme nas suas contradições. O poder do 01% é exercido por meio da classe média, a mais tensionada e hipócrita de todas. Assim, ela tem funções demais, porque é a corrente de transmissão do poder do 01% e precisa simultaneamente emular padrões da classe altíssima e conter as aspirações das classes baixas.

O medo e o moralismo vicejam na classe média, que é relativamente pequena no Brasil, porque ela não se define adequadamente somente pelos padrões de rendas e consumo, mas por outras variáveis também. Ela, como a dominante, define-se por herança, ainda, mais que qualquer outro fator. Herança de hábitos, de modos, de linguagem, de bens e rendimentos.

Cresceu muito a classe baixa ansiosa por consumir bens duráveis e não duráveis e isso foi bom, porque além de ser anseio legítimo de um grupo acostumado às privações, impulsionou o mercado interno. Mas não fez destas pessoas médio-classistas no sentido próprio, que é aquele a implicar uma identidade que transcende a aquisição de capacidade de pagamento.

A classe média propriamente dita elaborou uma narrativa para ser levada a esses emergentes, com basicamente duas mensagens: 1) se vocês melhoraram não foi por nada devido ao Estado, mas por vossos próprios méritos e 2) vossos méritos esgotaram-se e assim não se vai adiante. Claro que esse discurso não vai em embalagem tão crua quanto enunciado acima.

As camadas médias fornecem mão de obra técnica especializada para fazer funcionar o poder real. A burocracia estatal e os níveis médios e altos das grandes corporações são lugares cativos da classe média. Os filhos dela estudaram, comeram, foram estimulados a ler e a escrever, tiveram onde dormir, tiveram adequada prevenção de doenças. Tudo isso põe por terra o mito da meritocracia, porque evidencia a inexistência de igualdade à partida entre classes diferentes. Claro que há competição dentro da classe, mas há bastantes lugares cativos.

Dizer que o Estado é um mal é lugar-comum nos discursos elaborados pelos intelectuais, acadêmicos ou não, médio classistas, que alugam suas penas ao 01%. É algo essencialmente tolo, porque tanto os patrões do 01%, quanto a própria classe média vivem da predação do Estado, que põem a seu serviço para predar o povo.

Caso isso que chamam redução do Estado seja posto em prática, não haverá problemas para o 01%, que manterá formas mais sutis de predação. Todavia, se isso implicar redução de número de funcionários e de contratos pequenos e médios, a classe média sofrerá com isso, mesmo que tenha defendido as medidas.

O discurso, na essência, visa a dar legitimidade à redução de despesas com programas sociais, como os de renda mínima. E, contra essas despesas, as cabeças pensantes da classe média dispõem-se a elaborar discursos meio científicos, supostamente elaborados, para serem repercutidos na imprensa, basicamente. Ocorre que esse processo anti-Estado, como todos os que se baseiam em falsas premissas e histeria de cunho moral, pode sair do controle e assumir uma dinâmica mais concentradora que o inicialmente planejado.

O que se observa nestas tensões entre interesses de classes e nas narrativas que o poder utiliza para pregar medidas concentradoras é que há muita tendência ao suicídio involuntário. O sujeito apropria-se de um discurso que é essencialmente contra seus próprios interesses, sem se dar conta disso, porque foi ensinado a não pensar ou a pensar a partir de dados e conclusões pre fornecidos.

Na sofreguidão de se distanciar ou, ao menos, manter a distância pelos de baixo, a classe média trabalha para os de cima e produz e reproduz narrativas que, ao final e ao cabo, são contra ela mesma. Em determinado momento, o sujeito passa a acreditar naquilo que foi produzido por ele mesmo como um trabalho encomendado. Ele acredita na narrativa mais que na realidade sensível. A partir deste ponto, não adianta mostrar dados, números, nem lembrar que existe história…

O homem-massa não pensa, projeta-se.

Inicialmente, a advertência sempre necessária: o homem-massa ocorre tanto entre os pobres, quanto entre os ricos. Ele não é causado, nem é causa da luta de classes. Esta última sempre houve; o primeiro é assustadoramente novo.

Tocqueville traçou-lhe o esboço, surpreso que as palavras despotismo e tirania não servissem à perfeita caracterização deste tipo ameaçador da democracia, na América do Norte. Isto foi nos anos da década de 1830, mais ou menos.

Em Nietzsche, no último quarto dos 1800, não há esforço sistemático na definição de tipos psico-sociais. Nem há, contrariamente ao convencionalmente aceito, o panegírico da transvaloração ou do super-homem. Há, sim, profecia. O super-homem aconteceu, é o homem absoluto, algo possível quando os valores absolutos estão todos ultrapassados e o homem-massa torna-se absoluto e simulacro de relativos.

O niilismo e a ignorância histórica são as bases do homem-massa, suas condições iniciais e necessárias. Sepultados os valores absolutos – e aqui não se cuida de valores morais – o homem assume a posição dos absolutos e conforma-se em um ambiente de vários absolutos reunidos, o que somente poderia ser uma reunião de deuses ou um simulacro. A sociedade torna-se em simples convívio de inúmeros absolutos.

O absoluto a que me refiro talvez fosse melhor nominado categoria. O belo, o verdadeiro, o feio, o falso, como categorias, não são axiologias apropriáveis intelectualmente, por esforços do espírito. A partir do momento em que se lhes retira toda a objetividade, tornam-se projeções subjetivas e assim podem ser qualquer coisa, desde que se lhes dê qualquer capa de ciência de almanaque.

Ortega y Gasset desenhou o homem-massa, que estava triunfante já. Escandalizou-se que o tipo fosse prenúncio do extermínio de uma forma de convívio que lhe tinha permitido o surgimento: a democracia liberal. E antecipou o fascismo que viria e não seria exterminado pela vitória russa e dos aliados na guerra de 39 a 45.

A arte seria superior às teorizações, mesmo que aparentemente não seja prospectiva. Albert Camus põe na boca de dois médicos a percepção da volta do mal inominado. Os ratos morriam em Orã e não eram brincadeiras de crianças. Era o que não devia, não podia haver, pois estava extinto há séculos, mesmo que o bacilo fique guardado na poeira, à espera da ocasião para mandar os ratos à morte…

A tal democracia liberal, esta coisa inventada na Ática como reação aristocrática, é tão necessitada de prestar serviços ao processo de acumulação que estimula suas próprias crises ou, pelo menos, faz tudo para que elas sejam mais constantes e próximas.

O fascismo é a crise por excelência da democracia recente. Fazer de conta que a vitória militar em 1945 extinguiu o fascismo foi das coisas mais geniais que se viram nos últimos tempos. É algo semelhante à quase proibição da palavra problema pelos norte-americanos, substituída pela moralista desafio.

Foi interditado dizer fascismo, como foi dizer peste. A forma sócio-política teria de ser de impossível retorno, assim como a infecção pelo bacilo gentilmente passado adiante pelos ratos. Nenhum dos dois está banido, nenhum dos dois impossibilitado de retorno, todavia. Na verdade, o fascismo retornou onde seria supostamente improvável, nos Estados Unidos da América e nos seus satélites, regionais ou não.

O triunfo do homem-massa, tipo social dominante, deu solo fértil para retorno dos fascismos. Seguro de si, esta figura não pensa nem desconfia do que afirma. Sensibilíssimo, por gestado na abundância material que crê estado natural – um ponto divergente do homem-massa fascista de 36 – reage a tudo que seja discreto regresso material com fúria. É capaz de ódio por não ter podido acrescentar um alfinete à sua vasta coleção de alfinetes todos inúteis.

A sua linguagem é a do corpo. Portanto, sua última razão é a violência, o ponto final a que a linguagem corporal pode conduzir.

À máxima intumescência deste quisto sucede o esvaziamento aliviado. Mas, até que o tumor exploda, muitos pereceram. O roteiro do fascismo é semelhante mesmo ao da peste e, num, como noutro, há quem ganhe. A peste é um enorme ganho para os que a sobrevivem. O fascismo é enorme ganho para os esquemas financeiro e bélico.

Ambos são ruins para os que morrem sem o terem querido, porém…

Porque o golpe está em regime de urgência.

O golpe de estado atualmente tentado no Brasil, contra o governo eleito legitimamente, segue em ritmo frenético e, por isso mesmo, confuso. A pressa constantemente tem por consequência a confusão, o que pode ser bom ou ruim estrategicamente, a depender das habilidades dos agitadores e operadores.

É fundamental dizer claramente que este processo golpista – assim como seus precedentes – é preponderantemente exógeno. Internos são os agentes operadores localizados na imprensa, congresso nacional, poder judicial e movimentos supostamente populares que ninguém sabe como se financiam.

Sozinhos, estes operadores internos pouco podem. As elites locais sempre atingem acordos em que mantém quase intocados seus altos níveis de apropriação, mesmo em períodos de concessões mais ou menos tímidas às maiorias. Elas ganham em todas as situações, com algumas variações poucas que não invalidam a lógica capitalista. Logo, o núcleo da burguesia nacional, na ausência de estímulos externos, não patrocina golpes.

Provenientes da grande burguesia nacional envolvidos diretamente como agentes do golpe temos apenas os patrões da imprensa. Todavia, essa gente não é propriamente nacional. Historicamente, têm alinhamentos ideológicos fortes com os norte-americanos, além de participação capitalista externa. A imprensa é formatada de tal maneira que serve, queira ou não, aos interesses norte-americanos. É filha do modelo TV – Hollywood do pós-guerra; um modelo de propaganda, basicamente.

Cabem aos agentes locais do golpe duas missões básicas: dar formato jurídico à violação da institucionalidade e cevar o ódio difuso da pequena-burguesia. A segunda missão é de uma irresponsabilidade profunda, porque é a semente do fascismo, mas eles a levam a cabo, sem cálculos de futuro. Estão imbuídos em uma cruzada religiosa; sua tenacidade é quase de devoção.

A pressa explica-se por fatores geopolíticos e pela perda gradual de fôlego financeiro da imprensa local. Á medida que segue a decadência norte-americana – algo que se sabia seria terrível para o mundo e dramático para os vizinhos continentais – encurtam-se os prazos para fazer tudo que do apoio norte-americano dependa.

As decadências tem vários paradoxos aparentes. Um deles é que à perda de influência corresponde a abertura de mais frentes de combate, sejam políticos ou propriamente bélicos. Nisso, a analogia já feita aqui com a morte de uma estrela, creio ser bastante adequada.

Sucede que a perda de capacidades de enfrentar numerosas frentes de combate, a par com o crescente desejo de as aumentar, cobra seu preço em termos de realidade. A capacidade norte-americana de desestabilizar o mundo reduz-se. Recentemente, a entrada da Rússia na Síria, para dar cabo do Estado Islâmico criado pelos EUA, Israel e outros sócios menores, dá provas disto. Além de encurralados na exposição flagrante de suas hipocrisias, os associados da OTAN vêm-se diante de limites objetivos.

Por maior que o Brasil seja economicamente, não é mais importante que o jogo no tabuleiro do oriente próximo e da estepe asiática. Naturalmente os maiores esforços estão lá concentrados e, considerando-se que os recursos são finitos e decrescentes, fica claro que reduz-se sua capacidade de investir na desestabilização nas áreas menos importantes. Por isso a urgência em consumar o golpe no Brasil, pois será cada vez mais difícil financiá-lo e cada vez mais remota a possibilidade de emprestar a sexta frota para o impor na forma clássica.

As forças armadas brasileiras, hoje, não têm interesse no golpe de estado. Seus oficiais generais não estão dispostos a entrar na aventura. A experiência recente com governos da gente que está à frente do golpe mostrou-lhes que perdem dinheiro. Realmente, o período fernandino, de tão entreguista que foi, quase liquida com as forças armadas. Ora, os oficiais superiores tem honorabilidade no que tange às suas capacidades bélicas reais e não acham muita graça no sucateamento das suas armas.

Por outro lado, uma personagem central do esforço golpista parece ter sido muito mal escolhida. O presidente da câmara dos deputados é alguém muito sujo até para ser protegido pelos fortes esquemas da imprensa e do sistema judicial. Fazer sua integral blindagem mediática e jurídica é esforço semelhante ao de segurar água com as mãos. Sempre vazará por todos os lados.

Mesmo que a pequena-burguesia seja terreno fertilíssimo para a propaganda golpista escrita e televisiva, há níveis de contradições que tumultuam o processo e podem implicar massa crítica para uma reação sem quaisquer controles. As contradições da ponta-de-lança do golpe de verniz jurídico tornam-se muito evidentes e fica difícil escondê-las todas. O presidente da câmara é figura complicadíssima. Tirá-lo da posição será também complicadíssimo, porque ele tem apego pessoal à posição e sabe onde todos os outros possíveis substitutos almoçaram no passado.

Há razões para crer que se o golpe não se consumar neste ano de 2015, será inviável ao depois. Perderá inércia, porque os EUA não terão tempo de o ajudar tão intensamente quanto necessário, a imprensa terá de cuidar da sua situação financeira caótica e os agentes imediatos terão de cuidar de inúmeras defesas na arena judicial. Apenas espero que esse eventual fracasso do golpe não deixe em seu lugar algo tão ruim quanto: o desgoverno.

O altar da Metafísica.

Júpiter enlouquece primeiro aqueles a quem quer perder.

Supostamente Eurípedes.

As Luzes, no século XVIII, tiveram a extravagante pretensão de ter expurgado do âmbito legítimo de cogitações a metafísica. Alguns, menos audaciosamente, pretendiam tê-la mantido no seu lugar próprio, na zona localizada entre o mito e a fé. De qualquer forma, a ela não era mais dado postular o lugar sagrado agora ocupado pela ciência.

O que aconteceu, desde então, parece ter sido precisamente o inverso, contudo. A Metafísica desceu dos céus e instalou-se confortável entre os homens. Passou a inspirar-lhes as ações mais cotidianas, a impregnar todos os juízos, mesmo os mais supostamente epistemológicos.

A ciência não passa de uma religião, tamanha a carga axiomática que carrega nos pressupostos a partir de que as teses supostamente neutras são desenvolvidas. A economia, esta principalmente, é um credo permeado por equações matemáticas a serviço de conclusões desejadas previamente.

Quem apontou algo interessantíssimo a aclarar a presença entre nós da metafísica – aquela que teria sido sepultada pelas luzes – foi Carlos Marx, ao tratar o fetiche da mercadoria. Esse fetichismo não poderia surgir de outra coisa senão da impregnação metafísica no cotidiano. Não é apenas resultante de um processo consciente e muito ordenado para apropriação capitalista.

Ou, melhor dizendo, um tal projeto, concebido à semelhança do que hoje chama-se marketing de massas, não teria tamanho êxito se o terreno não fosse antes fértil. Ele é fértil, ou assim foi tornado, exatamente pela incorporação da metafísica a quase tudo que move as pessoas.

O fetiche é antes de tudo o estado da ausência de razão, de razão entendida mais sob o aspecto utilitário. Nisso diverge um pouco da metafísica, que é por demais utilitária, mas convergem na ausência de razão. Nessa convergência encontra-se uma quase sinonímia entre os termos.

A metafísica no cotidiano forneceu a base segura da fetichização da mercadoria, pois a valoração para além do uso e a partir de balizas míticas ou simplesmente inexistentes somente pode amparar-se numa crença. Capitalismo acumulador e crença são, portanto, inseparáveis…

Embrutecidos e atemporais.

Faz imensa falta ao Brasil uma direita bem alfabetizada, detentora de alguma cultura formal, liberal, capaz de juízos estéticos, capaz de ser delicada. Isso, ou o pouco disso que havia, extingue-se a pouco e pouco. A delicadeza, esta entrou no rol das coisas fora de moda, anacrônicas, aptas a causarem vergonha, associada à tibieza de caráter e à incapacidade de ação.

O espaço que poderia ser ocupado por tal direita bem alfabetizada não ficou vazio, evidentemente, que a sociedade não tende ao vácuo. Foi ocupado por uma gente embrutecida e que parece viver o presente constante, ou seja, são profundamente anti-históricos. Incultos, indelicados, incapazes de passar por um simples cotejo de contradições, essa gente ocupou todo o espectro ideologicamente direitista.

Em grande maioria vivem na dependência do Estado, seja direta ou indiretamente, mas não sentem vergonha de reproduzir um discurso anti estatista raso, que lhes é ofertado por uma imprensa tão ou mais envilecida que seu público. Chegou-se a tal nível de impermeabilidade intelectual que nada adiante expor este pequeno-burguês embrutecido às suas contradições gritantes: ou ele não compreende, muito simplesmente, ou torna-se irracionalmente reativo, dando mais uma volta ao parafuso da incoerência.

Mas, o inconveniente desta malta não se resume às opiniões políticas rasas e filonazis. Seu embrutecimento significa a perda de qualquer sensibilidade estética, a par com a idéia de que ele é o tipo único e invariável. Assim pensando, o embrutecido age como se o mundo todo fosse igual a ele.

Tenho a infelicidade de conviver obrigatoriamente com um número de pequenos-burgueses brasileiros, cotidianamente. O silêncio pauta minha conduta, por medida de segurança e higiene mental. Abro-me para coisas de pouco risco, tais como futebol, carros, piadas de salão, pois falar a sério é a antesala da guerra.

Acontece que certos espécimes são proativos e vivem a tolice afirmativa. Nem percebem o silêncio, nem o apreciam, nem apreciam algo falado a sério se não for a confirmação linha por linha das vulgaridades que apreende nas revistas e TVs. Esse tipo é cansativo e perigoso e mais frequente que seria de imaginar.

Outro dia desses, o pequeno-burguês proativo e incontido típico quis mostrar-me umas fotografias no telefone. Tão logo fez menção de passar-me seu telefone, para que eu recebesse o presente das imagens, compreendi o que viria: cenas de algum acidente, corpos mutilados, rios de sangue, carnes cortadas, ossos partidos. Não poderia ser diferente e não era.

Caso é que há poucos dias ocorrera uma tragédia. Um rapaz com problemas mentais matara as duas irmãs degolando-as e, depois, matara-se. Os pais perderam três filhos na mesma ocasião e desta forma realmente trágica. Não é algo agradável nem de supor, quanto mais de revirar-se no assunto, como se se pudesse descobrir novas nuances.

Pois as tais fotos eram precisamente da cena das três mortes… Afastei o telefone com a mão, não me contive. Afastei-o e afastei-me, não consegui disfarçar a repugnância. Sai sem falar nada, simplesmente sai de perto.

Não aprecio essas imagens, não tenho inclinações mórbidas, mesmo não vendo nada demais em quem as tem. O caso é que esse tipo de imagens não me desperta um juízo estético, nem me ensina coisa alguma. Ou seja, não me diverte, nem me educa. Nem é exemplo de coisa alguma, como os moralistas gostam de dizer para disfarçar suas inclinações mórbidas.

Neste nível de embrutecimento encontra-se grande parte da gente e acham que este é o estado normal das coisas, não cogitam de algum gosto diverso, não cogitam que são bárbaros, superficiais, tendentes ao julgamento sumário, à abominação da arte, ao retrocesso civilizacional.

A ocultação da ideologia por meio da objetividade fraudulenta. Narrativa da direita.

Os números, todos sabem, dizem o que quisermos que eles digam. A direita, por outro lado, sente enorme dificuldade de abrir-se na sua coloração ideológica própria, numa espécie de vergonha mal-disfarçada. Precisa então construir uma narrativa que pareça ideologicamente neutral, ou seja, que remeta apenas a aspectos gerenciais, supostamente objetivos, de uma realidade que é naturalmente imutável.

Precisa, mais que tudo, ocultar e negar a existência de classes com interesses diversos e conflitantes, tanto relativamente à divisão e apropriação das riquezas, quanto culturalmente. Precisa, vistas as coisas por outro lado, construir e servir-se de um discurso de naturalizada objetividade e negar as experiências bem sucedidas de alteração das desigualdades.

Resulta que a pequena burguesia urbana, profundamente descontente com a melhora dos que estão abaixo de si e alimentada pela imprensa mainstream, reproduz um discurso de objetividade fraudulenta, que parece tratar de um mundo onde inexistem opções guiadas por ideologias.

Quem escuta essa narrativa fria e aparentemente sem juízos valorativos percebe que ela foi purgada de qualquer elemento de escolha, como se opções não houvesse e tudo se limitasse a aspectos gerenciais. Eis o grande fetiche da narrativa direitista: tudo é questão de gestão.

De carta forma, a base deste discurso é já meio antiga, pois cuida-se do triunfalismo que emergiu no final da década de 1980, quando alguns aspirantes a profetas anunciaram o fim da história. O fim da história seria o resultado de um consenso nunca havido, em que o liberalismo absoluto ter-se-ia afirmado como verdade revelada.

A desonestidade dessa gente saltava aos olhos já naquela época, porque nem mesmo o tal liberalismo tem a realidade que nos papéis é fácil aparentar. Realmente, os profetas liberais nunca abdicaram de apropriar-se do Estado para que seu liberalismo funcionasse na medida correta de apropriação, o que significa dizer sempre em maior medida.

Discutem-se números, indicadores, resultados de balanços de empresas estatais, variações da bolsa de valores, estatísticas, tudo quanto possa parecer sintoma de uma coisa natural a funcionar melhor ou pior conforme a administração que tenha. Isso, todavia, além de mesquinho é fraudulento.

Mesquinho porque é micro demais e nega o planejamento e possibilidade de alterar-se a realidade social. Fraudulento porque os números, a depender do ângulo porque se os vejam, dizem qualquer coisa. No fundo, trata-se de investir contra os movimentos de desconcentração de rendas com um discurso que não pareça ideológico.

Tudo que for aparentemente sem valor ideológico, que for terceira via, que for apolítico, que for gerencial é discurso de direita. Isso fica evidente porque o núcleo do discurso direitista é a instalação de um modelo que só resulta em aprofundamento das desigualdades e não sou eu que o digo de forma inovadora, é a história que o prova fartamente.

É compreensível a dificuldade que se põe para um discurso sinceramente direitista, porque a enorme maioria das pessoas não se sentirá atraída por uma proposta de empobrecimento, nem mesmo se ela vier cuidadosamente embalada em palavras complicadas. Daí a necessidade de se recorrer à objetividade fraudulenta e acusar os promotores da redistribuição de gestores ruins.

Interessante é perceber como a pequena burguesia que repete o recebido da imprensa sem pensar incorre em contradições a cada dois ou três meses. Fosse eu da imprensa e fosse mais refinadamente pérfido, teria muito prazer em divertir-me assim com as classes médias, levando-as a dizerem as maiores asneiras e a desdizer-se mês depois com outra asneira ainda maior.

Se se anuncia uma redução de um preço administrado, de um serviço prestado por alguma empresa concessionária de serviço público, correm todos a dizerem que isso é ruim porque a empresa perderá dinheiro e prejudicará seus acionistas! O sujeito vai pagar menos, mas reclamará disso porque foi ensinado que isso é ruim, embora seja… bom.

Pois bem, se este mesmo preço sofre uma elevação alguns meses depois, isso é ruim, o que é mesmo óbvio. Mas, isso é ruim como uma enviesada confirmação da profecia anterior de que baixar o preço também era ruim. A imprensa joga o jogo do ganha-ganha e leva seus alunos a repetirem felizes e lépidos as contradições mais atrozes.

Essa crítica mediática que sempre desagua no ruim, mesmo que duas coisas estejam nos extremos de uma escala – e pensemos no preço da gasolina, por exemplo – revela que se trata puramente de ideologia. Não há objetividade em ser contra a redução do preço da gasolina e contra o posterior aumento pelas mesmas razões. É ilógico para qualquer pessoa que pense com sua própria cabeça.

Detenho-me neste particular dos preços administrados e concernentes a empresas públicas porque o principal objetivo da direita brasileira é vender duas jóias cujo capital ainda é maioritariamente público: a Petrobrás e o Banco do Brasil.

Para vendê-los, caso a direita tenha êxito nas presidenciais de outubro, será  necessário algum discurso, porque não haverá condições, nem coragem de simplesmente vender porque é melhor entrega-las que receber os dividendos que repassam ao Estado como detentor da maior parte do capital social. É preciso dizer que estas empresas são um mau negócio para o Estado, mesmo que isso não faça qualquer sentido, principalmente quando se pensa na Petrobrás.

 Semelhante acontece com programas e órgãos voltados à segurança social e a ações redistributivas. É moda falar das contas da seguridade social como se se tratasse de uma sociedade anônima exploradora de atividade econômica, ou seja, como algo que persegue lucro. Aqui a fraude é enorme, porque os objetivos e a natureza dos órgãos e programas são totalmente esquecidos na construção da narrativa.

Esta narrativa aquela velha estória do Estado mínimo, que é recontada com tênues variações em todas as latitudes e em todos os tempos. Esse Estado só deve ser mínimo para as maiorias, porque ninguém da classe média para cima sobreviveria nos mesmos padrões sem parasitar o Estado de alguma maneira, seja por isenções fiscais, seja por salários, seja por empréstimos a juros baixos e mil outras formas criativas.

Absolutamente tutelados.

A rebelião das massas é indissociável do mito da invulnerabilidade e da crença irracional e fetichista no progresso. Portanto, é indissociável da pequena-burguesia, seu meio de cultura por excelência.

Essas crenças, hoje triunfais a ponto de não se indagar do estado anterior de coisas, como se estágio anterior não tenha havido, não resultaram de alguma evolução natural. Realmente, a história e as conformações sócio-culturais nada têm de naturais, assim como não há natureza humana. Essas coisas são criadas dentro das possibilidades e da plasticidade social.

Aquilo que uns anteviam nos anos de 1920, estabeleceu-se avassaladoramente depois da segunda grande guerra. O modelo norte americano de superficialismo, consumismo e auto-engano triunfante dominou os dois lados do Atlântico e parte da Ásia. E fez estragos duradouros, que não mostram sinais de reversão. Antes, contrariamente, a rebelião das massas continua a dar seus mais patéticos exemplos.

Não é no povo mais pobre que a massificação revela-se no seu mais profundo ridículo, mas na classe média alta. Está última adotou o plebeísmo supremo que é viver conforme à moda como estratégia constante de uma ação que parece pressupor a inexistência de história, ou seja, o presente contínuo. Há um aparente paradoxo em viver na moda e estar como em um presente contínuo. Mas, como dito, somente aparente, basta pensar um pouco.

Incapaz de construir a própria narrativa de suas aspirações e defesa de seus interesses de classe – por demasiado ignorante e insincera – ela recebe da imprensa o que reputa ser um discurso a revelar absoluta comunhão de interesses entre os emissores e os receptores. Não percebem que os pontos de contato são esporádicos e que a imprensa defende-se apenas a si própria.

Essa incapacidade de percepção decorre de ter acreditado – entre outras dezenas de tolices – na inexistência de classes. Assim, recebem discurso pronto desde cima e creem que ele representa a defesa de interesses comuns a vários grupos muito diferentes. Há nisto, obviamente, algo mais patético, que é o constante achar-se parecido com o 01%, ou seja, o identificar-se por cima, que é muito revelador do espírito do servo.

A moda, a poucos dias do início do mundial de futebol no Brasil, é torcer contra a seleção nacional. Torcer contra a seleção brasileira é, para a classe média alta, uma forma de reclamar do governo central, porque queriam apropriar-se do que é gasto com os mais pobres. Foi-lhes ensinado pela imprensa que esta é atitude eficaz e de gente cosmopolita, ou seja, de gente que já foi comprar tudo que podia em Buenos Aires e Miami e aborrecer-se em Paris sem poder dizer isso, claro. Mas, esse discurso soa moderninho apenas dentro da classe média alta, embora ela não o perceba.

Acontece que a imprensa faz e desfaz o discurso anti seleção brasileira conforme seus interesses comerciais e é certo que ganharão muito dinheiro neste mundial. Ou seja, há um momento em que se mostra necessário recuar desta estupidez, sob pena de, além de perder dinheiro, indispor-se com outros setores que também ganham muito e com a maioria da população, que não acha muita graça nesse sentimento contra a seleção do país.

Dos aspectos mais curiosos é que a classe média alta não se sentirá traída quando a imprensa esquecer-se do besteirol de torcer contra a equipe nacional. Sim, porque ela crê sinceramente que a idéia é sua e não algo recebido de fora e assimilado perfeitamente porque a mensagem tinha destinatário certo.

Não apenas ignorante e insincera, esta classe caracteriza-se pela covardia frente ao grandioso a par com a disposição para fazer muito barulho por bobagens. Assim, ela não tem coragem para ir brandir seu espírito anti-copa e anti seleção nacional em frente aos sindicatos dos hotéis, bares, restaurantes, aeronautas, trabalhadores nos transportes em geral, por exemplo. Seria interessantíssimo que o fizesse…

Interessantíssimo também, a revelar que replicam com defasagem o que se lhes ensinou, é que nunca houve coisa semelhante, nas mesmas dimensões, nos outros mundiais de futebol, disputados em toda parte. Ora, se se tratasse de algo pensado e original, sua ocorrência seria mais ou menos estável ao longo do tempo. Mas é histeria e tem todos os ingredientes disto.

Uma parte dos alto médio classistas abandonará esta tolice e torcerá pela equipe nacional, esquecendo-se da anterior fúria discursiva e atendendo à temporária suspensão do discurso pela imprensa, que estará ocupada em ganhar dinheiro com publicidade. Outra parte permanecerá como está, mas não acusará a imprensa de ter cessado a carga, porque é fiel à crença de que este anti seleção saiu das suas próprias cabeças.

Agora, engraçadíssimo será se o Brasil for campeão….

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