Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A outra face da narrativa meritocrática: a culpa.

Não é simples o sistema que subjaz ao estado de aceitação pelas massas de medidas que pioram evidentemente suas situações social e econômica. Há uma narrativa bem construída com técnicas consagradas de engenharia psico-social, que prepara o terreno para que as pessoas – em maiores e menores proporções, consoante suas porosidades à imprensa corporativa – aceitem o saque do pouco que têm.

Apenas o discurso das medidas amargas necessárias para que se abra uma era futura de bonança não é suficiente para que alguém aceite perdas drásticas. É preciso que uma narrativa mais sutil instile nas camadas psíquicas menos dependentes de linguagem a tendência a aceitar o discurso da necessidade do que é contra si mesmo.

Esse papel cabe à culpa, a face reversa do mérito. Se Deus dá tudo e tudo retira, o mérito dá e a culpa retira. Ou, mais precisamente, a culpa permite que se aceite a retirada e o seu discurso de justificação. É o alicerce pouco consciente – mas já conformado em linguagem, evidentemente – sobre que serão depostas e assimiladas as camadas narrativas da necessidade de sofrer.

É sofrer a expiação de um mérito que a sinceridade mais interna – aquela que aqui e acolá revela-se involuntariamente – sabe inexistir. O mérito que pouco é mais que inércia, que é muito próximo a acaso ou que é realmente mérito na detenção da arte de tripudiar, esse mérito o meritocrata tem contato com ele, intimamente, dentro de si mesmo. Nessas ocasiões, não há mentiras.

Essa sinceridade – digamos interior, por falta de palavra melhor – entre em choque com a narrativa cuidadosamente arrumada em linguagem, a que se projeta. Desse choque surge a culpa e estão dadas as condições para a aceitação da piora, quase como uma penitencia ritual.

 

 

Condutores conduzidos.

Os mitos da racionalidade objetiva e do controle e previsibilidade integral dos processos históricos, políticos e econômicos levam muitos à perplexidade, porque a história insiste em desautorizar o sacrifício em homenagem a estas crenças. Esses mitos seriam atributos inerentes aos detentores do poder, sendo indiferente que se acredite terem poder por terem essas qualidades ou, antes, terem essas qualidades por terem poder.

O poder não se encontra onde parece evidente; ele é fugidio como são as forças difusas inerciais. Não é a reunião de núcleos individuais, embora as forças individuais intensas sejam um dos componentes a lhe dar inercia. Não provém, tampouco, apenas da detenção de riquezas imensas, porque as riquezas sem uma narrativa de justificação não produzem poder ou o produzem fraco.

A perplexidade que frequentemente se produz advém de se ver gente supostamente integrante de núcleos de poder – mesmo que em escalões baixos, como minions – a agir contra os próprios interesses econômicos, o que, de acordo com o senso comum, é a negação da racionalidade objetiva.

Isto significa que eles – os detentores e exercentes do poder – guiam-se por atitudes religiosas e desejos, a par com o que se consagrou chamar racionalidade objetiva. E significa também que a previsibilidade e o controle, se existem e são possíveis, são coisas distintas do que se diz serem. E, mais importante, significa haver muito de inércia e acaso por trás das situações privilegiadas destes detentores de poder, pelo menos daqueles de escalões médios e baixos.

Há uma metáfora que se aplica a isto: a do traficante de cocaína que é viciado em cocaína. O sujeito que vende o que acredita bom.

Mas, não há indicativos de que este processo difuso inercial, que é o poder, pudesse ser diferente. Até porque ele é essencialmente concentrador e livra-se por centrifugação dos integrantes acessórios, em velocidades cada vez maiores. Curioso é que estes indivíduos acessórios, mesmo após expurgados do processo, seguem a professar sua fé no sistema que os veio a descartar, o que é mais um elemento a desdizer a incensada racionalidade objetiva a presidir as ações.

Viram-se muitos indivíduos pequeno, médio e grandes empresários brasileiros fervorosamente a favor do afastamento do modelo de capitalismo meio inclusivo com foco em mercado interno promovido pelo Presidente Lula e, em menor escala, pela Presidente Dilma. Festejaram o êxito. Agora, seus negócios tornam-se menos rentáveis, porque o golpe só visou a favorecer, em larga escala, o esquema financista, o que era previsível.

Nada obstante, ao contrário de arrependimentos, como muitos querem ver, há perplexidade, como se algo tivesse dado errado por razões nebulosas de políticas econômicas. Nada deu errado, na verdade, porque o anunciado e realizado destinava-se, no plano interno, à destruição do poder de compra das massas, em detrimento delas – evidentemente – e de quem a elas vende.

Mas, significativa parcela dos que tem o poder econômico é, ao mesmo tempo, condutora e conduzida e incorporou o que a imprensa difundiu, sem qualquer filtro crítico. O ódio, algo que os realmente dominantes terceirizam para os médios e pobres, passou a guiar gente que se supunha capaz de racionalidade objetiva. Agiram como se comungassem dos interesses do sistema financeiro, como se fossem todos banqueiros ou se pudessem tornar.

À semelhança do que ocorre com a maioria das classes médias, seu único consolo será ver os pobres e miseráveis perderem mais…

 

 

O incêndio extingue-se quando se extingue o oxigênio.

A afirmação do título não chega a ser uma contradição, senão algo aparentemente contraditório apenas à partida, antes de se pensar um pouco. O fato é que explosões são meios eficazes de extinguir incêndios em ambientes fechados, por causa do súbito consumo do oxigênio disponível.

Essa forma de extinção pode ser extrapolada para os processos históricos e políticos, que podem ser detidos por causa de sua aceleração vertiginosa por forças caóticas internas. Contudo, não é de catarse que falo, pois não há nisso purificação, nem ocorre no âmbito de uma tragédia. Trata-se de um drama.

O golpe de Estado dado no Brasil, em 2016, implicou, basicamente, a presença simultânea de dois elementos: a cobiça externa pelas reservas brasileiras de petróleo e a demofobia das classes média e alta. Sem qualquer um destes elementos, não teria sido possível a deposição da Presidente Dilma. Isoladamente, um e outro não seria suficiente para o processo golpista ter êxito, porque a propaganda mediática dependeu fortemente da demofobia.

A imprensa e a corporação judiciária catalisaram estes dois elementos astuciosamente, a partir de tecnologias adquiridas externamente. O caldo do golpe cozinhou longamente. As classes médias foram deformadas – para além de seu normal – por uma narrativa mediática moralizante, que rendeu bons frutos porque semeada em bom solo. Esse moralismo seletivo demonizou, tanto personagens de ideologia nacionalista, quanto a cadeia de produção de petróleo.

As classes médias são profundamente demofóbicas e identificam-se por cima, como se comungassem os interesses do 01% e este é, dentre muitos, seu aspecto mais estúpido. Essa característica tornou fácil instilar ódio por quem, mesmo pouco, melhorou as vidas dos mais pobres, algo essencialmente imperdoável. A redução de desigualdades sociais apavora as classes médias mais até que as perdas sofridas por ela mesma.

Então, todo o discurso sobre corruções com dinheiros públicos – exclusiva de certo partido, claro – é apenas a capa narrativa de um alerta e de uma promessa mais profundos. O que se diz subrepticiamente é: os de baixo chegam perto de vocês. O que se promete é: deteremos este avanço. O aviso e a promessa, assim como o disfarce moralizante delas, seduzem profundamente o público específico a que visam.

Ocorre, porém, que o golpe não foi nem é algo que se compreenda pelas balizas tradicionais. Não foi apenas um movimento de instalação de ultra liberalismo. Ora, o golpe traz a destruição do mercado interno brasileiro e de milhões de empregos e isso, evidentemente, não é coisa interessante do ponto de vista capitalista. É simples: não se vende na ausência de quem compre.

Tampouco transformará o país em plataforma exportadora, como uma espécie de México em segundo grau, porque os juros praticados não permitem a depreciação do real, moeda brasileira, e encarecem os produtos feitos no Brasil. Assim, o golpe como promotor de vantagens para quem o fez só se compreende como saque de riquezas naturais, nomeadamente minerais. No curso deste saque, os agentes operadores internos recebem suas comissões.

Nada do que se faz como política econômica, pelo governo golpista, resultará em crescimento e, muito menos, em justiça distributiva. Não resultará porque não visa a isto, na mesma medida em que não se ministram venenos a alguém para preservar-lhe a vida ou melhorar a saúde. Ou seja, o programa é, realmente, de terra arrasada.

A destruição de um país com 200 milhões de habitantes, dentre os quais dezenas de milhões aumentaram sensivelmente seus níveis de vida e de consumo nos últimos doze anos, não é algo que possa acontecer muito placidamente, por mais esforço ilusionista da imprensa corporativa.

Não é ocioso repetir que há diferenças entre negar a concretização de expectativas e fazer retrocederem as pessoas a situações materiais precedentes. Enfim, impedir de melhorar é diferente de obrigar a retroceder e a segunda tarefa é muito mais díficil de ser levada adiante com pacífica aceitação, por mais estúpido e anestesiado que seja um povo.

Nem mesmo a atual festa promovida por algumas corporações de servidores públicos, que resolveram pilhar tudo o possível, o mais rápido possível, será viável, em breve. Tanto faltará dinheiro, por um lado, quanto faltará apoio mediático a este saque, uma vez cumprido o papel dado a estas corporações pelos articuladores maiores do golpismo. O divórcio do judicial e da imprensa é algo certo, apenas a data é incerta.

Esta situação permite especular sobre a explosão no processo histórico-político. E creio que mais prováveis são, ou a convocação de eleições diretas, ou um golpe militar.

 

 

 

 

Advertência, punição, eliminação.

Para saber quem manda em você, apenas descubra quem você não pode criticar.

Essa frase é atribuída a Voltaire equivocadamente. O equívoco de autoria, pouco importa se voluntário ou não, não retira a genialidade da proposição, que é de poucas a fazerem sentido independentemente de contexto. Um belo aforismo, portanto.

A imunidade à crítica é o signo certo da presença do poder real. Um critério que pode ser usado gradualmente, a revelar na proporção da imunidade a intensidade do poder de que se cuida.

As investidas contra o poder, desde que sejam sérias, fundadas, contínuas e encontrem grande difusão e aceitação, receberão, gradualmente, advertência, punição e eliminação. Convém advertir que são raras as investidas contra o poder real que o levam a reagir. Isso porque conseguiu conformar uma sociedade de massas tanto incapaz de perceber onde ele está, quanto de dizer ou fazer algo eficaz contra ele.

Outra causa da relativa raridade de reações – principalmente das sanções mais drásticas – é a eficácia com que o poder real delimita um campo de reações padrões contra ele mesmo. Ou seja, fornece os modelos dos ataques que por ele são aceitos, fornece os modelos de narrativas para as investidas contra ele.

Isso percebe-se muito facilmente nos grupos que conseguem predeterminar as piadas que relativamente a eles se farão. Assim, sua tolerância aparente é mantida , enquanto detém o controle quase absoluto do discurso sobre si mesmos e evitam que se vá ao cerne das coisas.

O núcleo do poder real é o sistema financeiro sem fronteiras e suas articulações com a indústria bélica. A mandar nesse sistema está majoritariamente gente que jura perder mão e olho, para que não se perca Jerusalém. Daí evidencia-se que falar dessa gente traga, desde que haja alguma consistência e não se trate do humor por eles mesmos autorizado, a primeira sanção: ser caracterizado como louco ou adepto de conspiracionismo, o que, ao final, dá no mesmo.

Para a enorme maioria dos faladores, o sancionamento pára por aí, pois 90% do que se diz é meio maluco mesmo. Nem é mesmo necessário deter uma evolução no discurso, porque este discurso circular não evoluirá e ficará realmente a parecer paranóia conspiracionista.

Na hipótese de haver uma escalada no discurso, com ganho de consistência teórica e fática, com colheita de e associação de fatos provados e sem embalagem emotiva ou exagerada, entra em cena a segunda etapa sancionatória. Será, então, lançada a maior de todas as acusações, aquela que destrói sem possibilidades de recursos, sem admitir objeções racionais: antisemita!

Hoje, como na verdasde há muito já, é pior que ser considerado abusador sexual de menores, genocida ou traficante de órgão humanos. Estas três acusações que dei como exemplos admitem contradições, objeções quanto à realidade de fatos; a acusação de antisemitismo é absoluta, ela basta-se, é o banimento total e irrecorrível, que nunca se analisa racionalmente.

A última e mais grave sanção é reservada para grandes agentes detentores de alguma capacidade efetiva de criar dificuldades materiais aos interesses do conúbio finanças – indústria bélica. São presidentes, ministros de Estado e que tais. Geralmente ao agiram em contrariedade aos interesses do poder real, já previram o uso dos dois primeiros graus de sanção e estão dispostos a seguirem adiante mesmo assim.

Para estes, resta a eliminação física…

Convenceram-te de que eras rico.

É relativamente fácil – e verdadeiro na essência – enunciar que as pessoas são levadas a agirem politicamente contra si mesmas por conta dos efeitos da propaganda que se convencionou chamar jornalismo. É demasiado óbvio, mesmo. Contudo, não é tão óbvio com qual narrativa isso foi atingido.

Ou seja, o agente é a imprensa e o meio a propaganda, mas o conteúdo material desta propaganda merece ser analisado. Não seria qualquer discurso apto a conduzir vastas camadas ao entorpecimento e a posturas verdadeiramente ilógicas, nem seria suficiente apenas a supressão de informações ou sua fragmentação, duas técnicas tão comuns quanto eficazes.

A supressão e a fragmentação desestruturam a informação, fazendo-a insignificante, no fundo. As possibilidades de compreensão ampla e de inserção de cada porção no todo, adequadamente contextualizadas, são afastadas. Essas técnicas confundem e impedem a compreensão defensiva. Porém, não levam ao desejo positivo do desfavorável.

Uma coisa é não perceber o desfavorável, por falta de elementos ou por elementos misturados confusamente, outra é desejar o desfavorável. Conseguir produzir o segundo estado é o objetivo sempre sonhado da engenharia social.

Pois bem, o governo brasileiro atual adotou uma medida que consiste em congelar todas as despesas públicas por vinte anos, exceto o pagamento de juros da dívida pública. Isto é algo que não se insere, nem se compreende, pelas perspectivas teóricas da teoria econômica liberal ortodoxa ou heterodoxa. Só se compreende pelo prisma do banditismo. Essencialmente, é uma aberração em que todos perdem, exceto os financistas.

Pressupõe que o futuro foi adivinhado com vinte, dezenove, dezoito anos e assim em regressiva sucessão. Supõe também que uma das partes do agregado demanda é desprezível e que o total pode crescer com um dos elementos paralisado, como se os fatores não se influíssem reciprocamente.

Que se proponha algo assim, compreende-se. Que se o aceite e deseje por parte de quem certamente perderá, é algo já desafiador. Pois observa-se que grandes contingentes desejam a medida, como se não percebessem que pela parte do vendedor não é bom que se reduza o poder do comprador.

A mágica, creio eu, passa por terem sido as pessoas – e principalmente aquelas que teriam a mítica racionalidade empresarial – levadas a crerem-se inatingíveis por se terem identificado por cima. Convenceram-nas de que são muito ricas para sofrerem os efeitos do congelamento das despesas públicas; convenceram-nas que não vivem ou dependem de despesas públicas.

O mais divertido disto tudo é ver que os interessados em promover tal convencimento são os que ganharão – e até aqui é óbvio demais – e que esses também vivem de despesa pública. Ora, na origem deste movimento – tanto da medida em si, quanto da guerrilha da propaganda – estão os bancos, que devem a maior parte dos seus lucros no Brasil exatamente aos obscenos juros que o Estado paga para obter financiamento!

Daí surge uma contradição deliciosamente não original: o problema não é de aumentar ou reduzir a despesa pública, mas de canaliza-la apenas para um reduzidíssimo grupo, sob os aplausos da enorme maioria, que perderá em maior ou menor graui, conforme a classe social de que se trate.

É necessário reconhecer que foi um trabalho excepcional!

Terra arrasada, implosão e caos.

Para liquidar um grupo político que se definia basicamente como nacionalista e afastá-lo do governo, deu-se um golpe de Estado judicial, no Brasil. A origem mais remota do movimento golpista é externa, assim como a tecnologia usada, que foi inovadora na nossa história.

A fermentação de grupos burocráticos estatais compostos de fariseus a bradarem méritos, superioridade intelectual e insuscetibilidade de controle social é a técnica da gulenização, que encontra terreno propício nas classes médias altas que infestam as corporações estatais de topo.

Eles fizeram o papel que o parlamento não poderia fazer: demonizaram a política a partir de um moralismo rasteiro e assassino da legalidade. A imprensa ofereceu a ajuda necessária e atuou num conúbio explícito com os gulenistas locais. Esse trabalho serviu e serve aos desígnios de entregar as riquezas nacionais aos grandes interesses externos, cessar as políticas de equalização de distribuição de rendimentos e interditar tentativas de retomada do poder pelos grupos nacionalistas.

O golpe foi resultado de um longo e insistente trabalho de intoxicação das massas pela imprensa mainstream, balizada por um maniqueísmo profundo e indisfarçado. Próximo ao desfecho, o consórcio golpista apostou na estratégia de terra arrasada, que, obviamente, cobrará seu preço.

Um país que ia relativamente bem economicamente – em tempos de crise mundial – foi levado ao caos econômico, tanto por cavalos de Tróia – como o ministro Levy – quanto por um pessimismo mediático diário, parcial e infundado e pela destruição judicial de grandes empresas brasileiras. O parlamento fez sua parte ao instalar a ingovernabilidade, ao trancar as ações governamentais, ao lançar uma chantagem por dia.

As classes médias – já por demais ignorantes e lastimosas da evolução dos mais pobres – foram estimuladas ao exacerbamento das suas piores inclinações originais. O que poderia parecer remoto e absurdo houve afinal: a imprensa levou parte de um grupo geralmente apenas tolo e autorreferente a adentrar o fascismo explícito. Hoje, o ódio cego caracteriza-lhe tanto quanto a tolice e o medo dos pobres.

Sob domínio da narrativa moralizante mediática, as camadas médias vivem o grau zero do pensamento autônomo. Não se sentem privilegiados, porque se acham merecedores. Mas, contraditoriamente, sentem-se quase ricos, porque identificam-se por cima, postura necessária para que temam e repilam fortemente os de baixo. O médio classista assimilou a luta de classes ao contrário, essa é sua tolice fundamental.

O consórcio golpista usou estratégia de terra arrasada: parou o país, fez tudo para uma crise econômica mediana ser uma grande crise, estimulou violações judiciais a garantias fundamentais, cantou a exceção jurídica como algo admirável, estimulou a demonização e criminalização da política, nomeadamente de um partido.

Isso teve consequências: a institucionalidade implodiu. Tratado como uma republiqueta bananeira, o Brasil respondeu à altura, ou seja, como uma republiqueta bananeira. Todo o esforço de propaganda da imprensa para destruir exclusivamente o PT foi parcialmente exitoso, pois não foi apenas este partido o atingido. A histeria moralizante, como estratégia, é algo tão estúpido quanto o quimioterápico, pois a seletividade não passa de aparência, já que tudo e todos morrem.

A democracia representativa está deslegitimizada. Nas eleições municipais no Rio de Janeiro, por exemplo, as abstenções, os votos nulos e brancos somaram 38% do total de aptos a votar, algo sem precedentes e mais que o atingido por algum candidato, em termos absolutos. Ora, em um sistema de voto obrigatório, isso não reflete a raiva contra o partido a, b ou c, isso espelha a raiva contra todos.

Todavia, exceto se rumarmos para um regime abertamente corporativo – um neo fascismo – esse resultado é dramático para quase todos os agentes intermediários que habitam o território da política. Eles não conseguirão movimentar-se em meio à incerteza total gerada pelos plenos poderes de chantagem da imprensa e da inquisição.

Por outro lado, o grupo inquisitorial não quer exercer o poder senão da forma mais cômoda possível, ou seja, sem assumir riscos próprios da atividade política e aqui não falo apenas na indisposição a submeter-se a eleições. É algo mais profundo, algo que se assemelha ao capricho das crianças mimadas, imunes a críticas, imunes ao contraditório pouco mais que formal. Para exercer o mando desde posição tão distante, esse grupo precisaria de uma blindagem mediática ainda maior que a conferida a certo grupo puro sangue de São Paulo.

A imprensa não empenhará tamanha solidariedade a este pessoal, pois é mais arriscado que tratar com os tradicionais políticos, mais habilidosos e mais confiáveis. Além disso, entre os interlocutores privilegiados dos grandes interesses capitalistas externos há muitos que cultivam sincero desprezo por burocratas estatais profissionais, quaisquer que sejam eles, em qualquer nível que estejam. E essas figuras serão ouvidas.

O que se anuncia, em resultado das estratégias usadas para depor um governo legítimo e impedir que ele retorne, é o estado de terra arrasada, o caos, a implosão da institucionalidade, a guerra de todos contra todos pelo butim, a lógica do saque a Constantinopla. Isso em um país com mais de duzentos milhões de habitantes não é repetição de nada, não é farsa, não é tragédia.

São quarenta anos de regresso, numa perspectiva mais ou menos conservadora a partir de quantos anos mais serão necessários para recompormos alguma estabilidade. Isso não é algo que se perceba por balizas ortodoxas, sejam históricas ou ideológicas. É do âmbito do matar para roubar, atitude sempre problemática na economia do roubo, porque um dia faltam aqueles a serem roubados.

Entrega total e democracia seletiva.

O golpe de Estado acontecido no Brasil, agora que consolidada a fase da deposição da Presidente legítima, visa a dois objetivos primordiais: 1) a liquidação dos serviços privados e públicos nacionais, a liquidação das grandes empresas de infraestrutura nacionais, a liquidação de direitos sociais e a venda das jazidas de petróleo; e 2) a inviabilidade de eleições posteriores de quantos forem contra os objetivos descritos no item 1.

Como alguns perceberam e apontaram, o grupo golpista joga na emergência e na conhecida janela de oportunidade de mais ou menos seis meses para a adoção das medidas mais drásticas e nocivas. Há muita pressa para fazer a entrega e o desmonte do Estado enquanto ainda se vive a confusão pós-golpe e o público está inebriado com o discurso histérico de que o mundo está a acabar-se.

Há, todavia, complicadores internos ao grupo que assumiu o poder, posto que não é homogêneo. A interlocução direta com os interesses externos é exclusiva de uma parte da nova sociedade instalada no poder governamental e esta parte, precisamente, quer as privatizações de riquezas e serviços, a quebra das grandes companhias nacionais e a liquidação dos direitos sociais o mais rápido possível.

Este grupo que tem entrada franca em Washington e nas diretorias do grande capital externo não tem a maioria parlamentar, nem consegue seduzir a maioria do povo votante, embora disponha do aparelho mediático e de parte das corporações judiciárias. Os outros sócios do novo poder conseguem fazer maiorias parlamentares e dispõem-se a jogar no tabuleiro da democracia formal.

Em suma, o desmonte do Estado, a entrega das riquezas minerais e o desmonte do sistema de garantias sociais mínimas não interessa na mesma proporção aos dois grandes grupos sócios da tomada do poder governamental. Mas, por um dos grupos deter a imprensa tradicional e o suporte do capital estrangeiro, o balanço de forças mostra-se assimétrico. Assim, o grupo provindo do maior partido político do país vê-se compelido a seguir os ditames dos outros sócios, sob pena de ataques mediáticos  e judiciais insuportáveis.

Ao contrário do que alguns supuseram, a máquina de inabilitação política judicial não estancou, nem estancará agora que se consumou o golpe, pois ela não perdeu a serventia. Essas ameaças continuarão a pesar sobre os integrantes do maior partido, a lembrar-lhes que devem conduzir e implantar as medidas mais duras, impopulares e de lesa-pátria, porque há o risco de serem também expurgados política e criminalmente.

Essa situação leva a concluir que a recolonização do Brasil será, sim, rápida e devastadora, porque o grupo que a queria mais suave não terá como resistir às chantagens dos interlocutores preferenciais dos interesses entreguistas. Nesta perspectiva, apenas reações populares intensas e insistentes poderão travar ou retardar esse processo destrutivo do país minimamente soberano, se houver quem confira coesão à reação.

A par com a chantagem de contenção, feita por um grupo golpista a outro, continua a caça ao ex-Presidente Lula, para inabilitá-lo politicamente e afastá-lo de eleições em 2018, pois teria chances boas, mesmo tendo sido alvo da maior campanha mediática de difamação da história do Brasil. Assim, qualquer candidato que se ofereça para as eleições contra o modelo entreguista que se instalou, deve fazê-lo cautelosamente e a pouco tempo do certame eleitoral, para dificultar a tentativa de destruição de sua imagem ou inabilitação judicial.

 Também é plausível que o novo modelo instalado após o golpe reduza a democracia apenas ao nível formal mais puro. Ou seja, ante o risco de perda eleitoral – porque as propostas são impopulares demais até para quem detém a imprensa – pode-se instalar um sistema seletivo, em que as candidaturas sejam ceifadas judicialmente conforme o risco que apresentem à manutenção do sistema recolonizador.

Assim, a aparência de democracia poderia ser mantida, ou seja, mantidas eleições periódicas em que só concorreriam os previamente autorizados. Seria uma forma clássica de oligarquia de aparência democrática, como nos EUA, por exemplo, em que as restrições de acesso ao poder fazem-se por filtros prévios ao acesso à disputa.

Narcisismo é a neurose do tempo espetacular.

Não disponho de conhecimentos em psicanálise freudiana e lacaniana que me permitam, nem me sugiram, falar de narcisismo sob esta perspectiva pura. Narcisismo, embora impreciso e ambíguo conceitualmente, será usado sem pretensões de rigor teórico, portanto.

Identifico muito essa subjetividade narcísica com puerilidade, com desenvolvimento incompleto das pessoas mental e corporal. Pode ter algo a ver com substituição de pulsões e parece-me razoável supor que o narcísico tem muito a ver com a ausência de uma erótica, por ele substituída.

Em perspectiva psico-social, o espelho não é sua melhor metáfora, embora pictoricamente não haja outra mais bela e sugestiva. A parede é sua melhor metáfora, porque é o que faz a reflexão do som, veículo físico do discurso. No discurso, mais que na gestualística ou na indumentária, manifesta-se evidentemente o narcisismo como motor da ação. Esse discurso, na verdade, não é comunicação, ele não tem nem precisa de dialeticidade alguma.

O narcísico não precisa de aprovação ou desaprovação, ele precisa discursar, deitar fora uma narrativa que ele escuta atentamente, para ajustá-la mais e mais à sua satisfação, ao seu gozo de impor um discurso que não demanda feed back. Ao prazer narcísico basta obrigar o outro a escutar o discurso, via de regra uma narrativa dentro do acervo de taras normalizadas do emissor.

Nisso, faço um pequeno parêntesis para dizer que precisamente no aspecto antes apontado o narcisismo é muito cansativo nas relações cotidianas, pois leva pessoas a falarem longamente e frequentemente suas invariáveis taras.

Confunde-se com oportunismo, se pensarmos em móveis da ação humana que visa a prestígio e protagonismo, principalmente em momentos de confusão que, na dinâmica espetacular, tendem a ser todos. O discurso narcisista destaca-se, nesses dias atuais de golpe de Estado no Brasil.

A forma que assume é de análise arguta das sutilezas dos movimentos táticos acontecidos no processo. E esta análise é sempre conduzida no âmbito jurídico, segundo a lógica de tribunal, numa dialética previsível em que antecipações de movimentos pequenos são anunciadas como o caminho para as Índias.

 É interessante notar que essas análises descritivas são muito sagazes e corretas, no que são descritivas de um aspecto marginal do processo, geralmente bastante previsível, o jurídico. É o prazer do jogador de tabuleiro, enfim, de que o enxadrista é o protótipo. Jogo chato e tendente à autocelebração, foi alçado a grande metáfora da inteligência…

Esse despejar de analises descritivas argutas, precisas, que apontam o que houve e porque e dizem o que haverá em seguida no microssistema jurídico, é muito narcísico e o não comportar objeções evidencia-o. Não são coisas objetáveis porque geralmente exatas, factuais e não teóricas ou argumentativas. Claro que o analista não aceitará que sua análise descritiva não é uma proposição teórica ou mesmo que não é mais que constatação pontual, mesmo que inteligentemente construída.

Na situação política atual do Brasil, o predomínio deste jogo circular que toma o jurídico como âmbito exclusivo será danoso para a compreensão do processo político e histórico e retardará, senão impedirá, alguma reação ao projeto entreguista do país. Por outro lado, é receita quase certa de sucesso fugaz para seus praticantes, que brilham no ambiente espetacular que adora os narcisismos difusos.

Moralismo, a condição da pendularidade.

A regra do jogo está dada há mais de dois mil anos; o neo-platonismo do cristianismo nascente consolidou-a com o matrimônio de helenismo tardio mistificante e judaísmo. Essa é nossa condicionante mais ampla e, dentro dela, o moralismo a mais presente.

A perplexidade de muitos com o golpe de Estado acontecido no Brasil, a vitimar a democracia, a antecipar o perecimento da soberania, do patrimônio nacional e dos direitos sociais tem ensejado análises variadas. Claro que análises a partir da perplexidade ou surpresa provém do que se pode chamar campo esquerdista.

Algo é comum à maioria destas análises: a afirmação de erros do PT – partido alvo do golpismo de inspiração externa – e da consequente necessidade de realizar mea culpa. Ora, a presença constante destes dois elementos revela que as análises não percebem o modelo maior em que tudo está inserido e são impregnadas de moralismo.

A questão do cometimento de erros é de uma banalidade imensa e os analistas parecem esquecer-se que o erro, além de sempre presente nos processos históricos e políticos, é algo que individualmente dilui-se a ponto de apagar-se. O erro, como opção equivocada, é algo muito micro no contexto geral. O processo, visto de longe, já trás os erros, na medida em que traz suas condições prévias.

A conquista do poder e a tentativa de sua manutenção operando-se dentro das balizas discursivas da normalidade aceite traz o risco da pendularidade. Cedo ou tarde, a mesma base discursiva usada para alcançar o poder será usada para a derrubada do primeiro grupo. Ora, no caso específico, o PT serviu-se de discurso moralizante, acusando a cleptocracia que ele veio a apear temporariamente.

Foi deposto o governo a partir de uma situação de histeria generalizada criada pela mesma matriz discursiva moralizante. Pouco importam as diferenças qualitativas e quantitativas entre os dois grupos, ou seja, que um deles não tenha praticado desvios ou os tenha praticado em menores níveis. Um dos grupos dispõe da imprensa e, portanto, a verdade dele constrói-se como se quiser.

Mas, a política como campeonato de moral é um sistema que traz ínsitas as condições da pendularidade e assim os golpes nada têm de estranhos, mesmo quando vestem poucos disfarces. Eles ocorrerão sempre que a conquista e a manutenção do poder fundar-se na lógica do campeonato de ladroagem. A política assim baseada fragiliza-se e dá as condições para as ruturas periódicas.

Há uma diferença de oportunidades, porém. Aquilo que se chamam esquerdas – nacionalistas acho melhor – leva muito tempo a fermentar o caldo da narrativa acusatória moralista contra os grupos políticos que servem majoritariamente aos interesses do grande capital interno e externo. Ela não dispõe da grande imprensa, como é óbvio, e por isso seus períodos no poder são fugazes.

Depois de depostos governos nacionalistas, viceja o discurso do mea culpa e a piedosa assunção de erros. Isso, como é feito dentro do modelo moralizante, sem muita inteligência e sem nenhuma sinceridade, portanto, é uma inutilidade, tanto tática, como estratégica.

Mas, as personagens sentem-se reduzidas sem erros e sem pedidos de desculpas, porque o homem prefere dizer-se pecador a reconhecer-se mera engrenagem histórica; prefere o protagonismo, mesmo que seja na afirmação do cometimento de erros que nem compreende bem, a dizer que os erros são nada mais que consequências necessárias de causas previsíveis. É óbvio que pautar tudo pelo moralismo é andar numa linha de sucessivas quedas.

Os poderes longamente mantidos nunca se apoiaram no moralismo. Apoiaram-se na conquista, nas forças armadas, no domínio das corporações burocráticas estatais e no domínio da imprensa. A política consiste em escolhas que devem ser impostas por um grupo a outro e na exposição de quais benefícios resultarão destas escolhas e para quem; ela não é, enfim, uma disputa de probidade ou de moralismo.

A probidade dos gestores públicos é, de forma geral, em perspectiva histórica, um problema menor. Sempre houve e sempre haverá que se corrompa e quem desvie dinheiros públicos e isso obedece a um padrão relativamente estável. No caso de gestores públicos, a raiz do problema está no financiamento de campanhas eleitorais e na promiscuidade público privada: onde houver dinheiro e contratos, haverá subornos.

É previsível que os nacionalistas – esquerda, se se preferir – tentarão reerguer-se atuando no mesmo modelo, o que significa que, sem dispor dos construtores de narrativas – imprensa e corporações judiciais – isso demorará muito.

Empobreçam, pelo bem do mundo!

Uma idéia inteligente pode ser enunciada como pérola de hipocrisia, se forem relativizadas as condicionantes históricas que gravitam em torno a ela. Os tempos presentes fornecem um exemplo: o esgotamento de recursos naturais do planeta e a degradação de qualidade de vida e o que seriam causas e soluções.

A degeneração das proposições encontra-se com alguma facilidade se se puserem as coisas em perspectiva cronológica, se se indagar quem deu causas e de quem é razoável pedir que dê soluções ou aja para minimizar efeitos. A estas ponderações matizantes opõe-se a propositura da idéia e das soluções como absolutos atemporais.

De tempos em tempos repete-se a obviedade – pouco percebida pelo grande número, é verdade – de que o modelo consumista esgota as possibilidade naturais do planeta e degrada a qualidade de vida das pessoas, sobretudo no plano psicológico. Em sequência a esta enunciação, vem a conclusão: a única saída para estancar estes processos é consumir menos. Isso é evidente.

Ocorre, inicialmente, que esses discursos não distinguem, na maioria das variações disponíveis, consumismo como fetiche inercial da sociedade de massas de consumo dos que recentemente passaram a poder consumir. Esta última ocorrência dá-se nos grupos dos que ascenderam economicamente em dado lugar e época e puseram-se a suprir necessidades que, para os grupos superiores, já haviam sido supridas e incorporadas ao normal da vida.

Contingentes enormes, na Ásia, na África e na América do Sul foram apresentados à possibilidade de terem coisas em suas casas, daquelas consideradas básicas nas classes médias de seus países e básicas em quase todas as classes nos países europeus e norte-americanos, exceptuando-se o México, claro. Esses contingentes tinham e têm uma imensa propensão marginal ao consumo, na medida em que partem de patamares muito baixos.

Assim, o discurso contrário ao consumismo – sem fazer a distinção para consumo, porque esta sutileza esclareceria o alcance da idéia – é profundamente desonesto, porque é uma proposta de moratória geral excludente. O geral aplicado a situações díspares e assimétricas é nada mais que desonestidade e hipocrisia.

Não haverá como exigir da China e da Índia, para ficar em dois exemplos, que travem o processo de melhora de condições materiais de centenas de milhões de pessoas que, há muito pouco, viviam deveras precariamente. Nem se lançando mão da chantagem ecológica será possível convencê-los a estancar este processo. Digo chantagem ecológica porque este argumento, usado nestas condições e com estas finalidades, é chantagem mesmo.

Os lugares que primeiramente viram o desenvolvimento industrial e que proveram as massas com máquinas de utilidade rapidamente integradas ao normal de subsistência são os responsáveis pelas maiores agressões ao meio ambiente, o que é uma obviedade. E, a agravar, observa-se que as degradações provenientes de exploração direta de recursos naturais foram mais intensas fora desses países.

Nesse panorama, é muito hipócrita até pelos elásticos parâmetros da nossa cultura judaico-cristã, que tem a hipocrisia como um dos pilares, exigir de todos sacrifícios iguais, como se todos se tivessem beneficiado igualmente da extração de recursos naturais do planeta.

O empobrecimento – forma alternativa de dizer travagem ao consumismo e ao consumo – é a única resposta eficaz para o problema do esgotamento do planeta e da qualidade de vida inclusivamente psíquica. Todavia, sua proposta, assim muito simplesmente, como um absoluto, sem exceções ditadas por condicionantes histórico econômicas, é mais do mesmo banditismo imperialista de sempre.

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