Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Um texto (Page 7 of 10)

Para a minha avó. O acordo ortográfico é uma merda.

Falei com meu pai ao telefone e ele disse-me: tua avó está mais surda que tu, vai ser uma conversa complicada. Mostrei a ela aquela crônica sobre o acordo ortográfico e ela riu. Ela disse ele chamou o acordo ortográfico de merda… e riu.

A conversa foi porque ontem minha avó paterna completou 90 anos. Não pude ir a Recife vê-la e meu pai telefonou-me e contou-me da reação dela a esta crônica. A idade avançada faz mais mal que bem, mas algum bem faz. Ela, uma senhora velha, pode relevar o  nome feio e achar graça no texto.  A idade permite desprezar nomes feios.

O texto é o seguinte:

Impressões luso brasileiras. O acordo ortográfico é uma merda.

Antes que seja acusado de alguma coisa pela palavra mais vulgar do título, quero defender-me com dois argumentos. O primeiro é de bagatela, pois há muito mais vulgaridade escrita por aí, tanto nas formas, como nos conteúdos. O segundo é a autoria da assertiva. Foi Millôr Fernandes quem disse isso, em resposta a um jornalista do Diário de Notícias. Portanto, invoco a proteção devida aos que citam de fonte certa. Não fui eu, mas concordo.

Pretendia escrever sobre outras coisas, mais precisamente a respeito de viagens por estradinhas secundárias, estreitas, daquelas que passam em aldeias e vilas, que serpenteiam nas encostas dos montes, que não têm viadutos enormes. Estradas boas, mas cheias de curvas, que reclamam atenção redobrada e velocidades baixas. Em troca, recompensam com vistas magníficas do interior desta região minhota.

As auto-estradas com pagamentos são mais rápidas, talvez mais seguras, seguramente muito mais caras, e menos propícias a equívocos no trajeto. Se há pouco tempo e há dinheiro, são a melhor escolha. Todavia, se o tempo não é problema, é melhor seguir pelas estradas secundárias. A impressão é de estar-se mais em contacto com o mundo real, passando rente às casas, aos riachos, às matas.

Para todos os destinos há estradas públicas e para quase todos há auto-estradas pagas. Bastante diferente das idéias de concessão que vicejam no Brasil, em que os defensores das estradas pagas nunca se preocuparam em que essas fossem uma alternativa. Já me cansei de ouvir os propagadores das maravilhas da via paga defenderem a concessão de estradas existentes. Curiosa visão essa. Por que raios não concedem a construção de algo novo?

Mas, embora fosse falar destas viagens, acontece que tenho o hábito de comprar jornais, todos os sábados e domingos. E esse hábito é menos danoso aqui que no Brasil, pois os jornais são menos ruins. Os jornalistas são menos atrevidos nas suposições, editorial é editorial, reportagem é reportagem, crítica de cinema ou de livro é isso mesmo e por aí vai. E dei-me com uma matéria de página inteira sobre Millôr, com meia dúzia de perguntinhas, respondidas com o habitual bom-humor.

Sobre o acordo, a resposta foi a frase que titula esta crônica, seguida de outra: A Academia é uma excrescência de velhos tempos. O entrevistador tinha perguntado se o acordo ia colar e se tinha sido uma imposição da Academia de Letras. Parece que Millôr acha mesmo que foi invenção da academia e que acha os dois, a invenção e o inventor, a mesma coisa, que não precisa mais ser repetida.

O autor entrevistado tem já seus oitenta e seis anos e não precisa ficar aos volteios em explicações de obviedades, ou pedindo desculpas ao responder a perguntas de respostas previsíveis. Na verdade, nunca foi dado a isso, nem quando era mais novo, e o assunto é uma grande bobagem, no final das contas, seja-se a favor ou seja-se contra. Talvez Millôr tenha dado uma grande resposta pelo que deixou de falar, pois não disse se ia colar, ou não.

A mim, parece-me que governo português algum, de direita, centro ou esquerda, vai perder tempo e popularidade a tentar impor uma mudança que as pessoas não querem, que não muda coisa alguma nas suas vidas e que não as impede de ler livros em potuguês brasileiro ou africano. E que essa estória toda tende a ser simplesmete um desassunto, à medida que o tempo passa e as coisas mantém-se como sempre. Visto por outro lado, pelo lado brasileiro, fica mais claro ainda que se trata de preciosismo de acadêmico a serviço de editoras.

Nós devíamos fazer um acordo nacional para afalbetizar as pessoas, em português pré ou pós acordo, para além de ensiná-las a desenhar seus nomes. E não sucumbir a argumentos de que essa alfabetização seria mais fácil com uma ortografia purgada de meia dúzia de acentos, hífenes e consoantes. O difícil da estória é a sintaxe e essa muda muito lentamente e independentemente da ortografia.

Mas, é realmente curioso colher as opiniões de escritores sobre isso. Há pouco tempo, esteve aqui em Braga Mia Couto, o fabuloso autor moçambicano. Lançava o livro Jesusalém da maneira como lhe apraz, ou seja, em contato próximo com as pessoas. Chegou à livraria Centésima Págima e conversou com os presentes nos belos jardins. Estava cheio de gente e todos faziam-lhe perguntas, à vontade.

Lá pelas tantas, a pergunta inevitável sobre o tal acordo. A platéia certamente era maioritariamente contra, porque predominavam os portugueses. O autor fez cara de cansado, mas respondeu, e respondeu genialmente. Parou, tomou um pouco de ar e fez um discurso, daqueles pré fabricados, contra o acordo. Quando terminou o discursozinho, a platéia aplaudiu entusiasmada. Ele esperou terminarem os aplusos e entoou um discursozinho, daqueles pré fabricados, a favor do acordo, quase do mesmo tamanho e com os argumentos inversos.

A platéia deu uma incomum demonstração de inteligência, aplaudindo o segundo discurso também. Deve ter percebido a piada e o enfado do escritor em ter que responder a uma bobagem daquelas. Um escritor escreve, com acordo ou sem acordo. A economia de dinheiro das editoras é outro assunto.


A campanha de Juscelino Kubitschek.

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O homem que seria eleito em 1965 novamente presidente, se os militares não tivessem imposto ao Brasil 21 anos de exemplos de violências, de desprezo pelas leis e por eleições. Se a nossa democracia sempre fora meramente formal, depois do golpe militar de 1964 deixou de ser qualquer coisa.

Inclusive, a popularidade imensa de Kubitschek, que deixara o governo em 1960, depois de inaugurar Brasília, devia ser lembrada por quantos crêem que haveria um golpe de estado dos partidários de João Goulart e classificam o golpe militar – esse que realmente houve – de contragolpe.

Ora, João Goulart ia cumprir o mandato que herdara por conta do fracassado golpe de Jânio e provavelmente entregaria a presidência a um triunfante Kubitschek.

Realmente, quando se afirma algo, convém indagar-se de suas possibilidades. Na ocasião, havia dois campos políticos conflitantes e dispostos à disputa eleitoral. Um era capitaneado por Carlos Lacerda, prócer do direitismo mais profundo e anti-nacional. Outro era capitaneado por Juscelino Kubitschek, prócer de um direitismo nacionalista.

No âmbito político-partidário pouco ou nada havia fora dessa polarização. Os eleitores brasileiros dividiam-se entre essas duas vertentes e não empenhavam apoio, senão residualmente, a outras inclinações políticas.

Então, se Goulart alinhava-se a uma dessas vertentes, não tinha porque tramar golpe algum. Por outro lado, se perfilhava o entendimento politicamente residual, não tinha como dar golpe algum, porque isso é fadado ao fracasso sem apoio popular ou militar.

Ou seja, a suposição de que Goulart pretendia um golpe de estado – suposição que subjaz à tese de que o golpe de 1964 foi um contragolpe – implica supô-lo, a ele Goulart, burro.

O Mendigo Maltrapilho da Rua do Mercado.

Texto de André Raboni.

CHOVIA. A rua, deserta e fria, não estava convidativa. Sair era uma provocação ao bom senso. Em verdade, não chovia: gotejavam poucos pingos de umidade repulsiva. Trajei-me apropriadamente como se deve trajar um filósofo experimental: ao modo da ocasião. Enfastiado da ausência de perigo e do conforto de meu aquecido lar, vesti-me ao tom do clima e parti de minha caverna para ter com os outros.

Na rua poucas almas caminhavam. Menos paravam recostadas em postes ou árvores: cálidas de fungos úmidos.

O pedaço de rua, que, aqui, convém-nos saber: asfaltada, com velhos sobrados reformados, postes como pilares de fiações caóticas, canaletas de meio-fio embalsamadas por água e lodo, duas árvores na calçada mal conservada, separadas uma da outra dez metros – os dez metros que serão palco de nossa estória.

Nada nos custa gastar mais algumas linhas na descrição de nossos dez metros de rua e calçada: olhando na direção norte-sul: ao lado direito vêem-se seis sobrados. O primeiro deles, uma pequena venda, com fachada em azulejo português envelhecido; o segundo, em péssimo estado de conservação, cor de verde-nojento: em sua parte baixa habitava um lodo já vivido e caduco, porém não tão decrépito quanto o restante da fachada deste repugnoso sobrado.

Após este, outro sobrado cor-de-rosa murcha: duas janelas e uma imensa porta de madeira (a partir da qual julgava-se que ali deveria viver um gigante!…). Dali até a segunda árvore, mais três sobrados: um azul, outro rosa e o terceiro e sexto e último de nosso cenário, amarelo recém pintado.

Conforme o céu foi clareando, as pessoas foram-se atirando à rua; a umidade, reduzindo pouco a pouco. Passos e vozes movimentavam-se no ar e na calçada turva de acontecimentos.

No pé da árvore em frente à venda, sentou-se um mendigo maltrapilho fumando um filtro de cigarro.

Na venda, homens conversavam sobre o ocaso da puta da esquina, degolada por um cliente desconhecido. Tal conversa era atravessada pela rouca voz do mendigo maltrapilho – que trabalhava e pedia cigarros nos seus minutos de folga.

“Me dá um cigarro!” – Falava penosamente, estas que pareciam ser as únicas palavras conhecidas pelo pedinte. Toda vez que soava esta voz um cachorro sarnento deitado tranqüilamente ao lado dele levantava as orelhas, num gesto de cumplicidade.

Do lado esquerdo da rua, estendia-se toda a parte frontal de um mercado, cuja fachada, cor de vermelho-velho-alaranjado, abrigava diversas lojinhas.

Ao passo que avançavam as horas, mais transeuntes saíam às ruas: mais demanda para o mendigo-maltrapilho… Que fumava e prestava seus serviços de Demiurgo-do-perdão, arauto da caridade piedosa.

Vá lá! uma moedinha para o mendigo-maltrapilho ser um fio de indulgência!

“Aqui se faz, a tu se paga!”

Passavam neste instante seis humanistas pela frente da venda. Sentindo compaixão daquele ser recostado ao pé da árvore, quatro deles se abaixaram para ter com o mendigo:

– “Estás bem, amigo?” Disse um deles, repousando sua mão direita sobre o ombro do mendigo-maltrapilho, que fumava.

– “…!”. Respondeu o mendigo, atirando-lhe um olhar oblíquo, dando o último trago em seu filtro de cigarro e o atirando por cima do braço do humanista pousado sobre seu ombro, em um gesto que afastou assaz a mão do homem.

– “Estamos aqui para lhe ajudar.” Argumentou o segundo.

– “Me dá um cigarro!” Disse-lhe, olhando raso, rápido e sincero, olho no olho, como quem cativa a permanência do outro com a discrição própria de um ser refinado.

Os outros dois humanistas ficaram em pé, alertando aos transeuntes o absurdo de haver um homem naquelas condições, em pleno século XXI.

Da venda, eu, de soslaio, pesquei alguns trechos do discurso dos dois humanistas que estavam em pé: “Vejam como este homem sofre! Isto é fruto do capitalismo!” e, “O sistema corrói a dignidade humana!” ou, ainda, “Temos que destruir o… e implantar uma sociedade…!”

Perdoe-me o leitor pela falta de empenho em transcrever todo o discurso; confesso que a conversa ao lado sobre a degola da puta da esquina estava bem mais interessante.

Aos poucos, a situação em frente à venda foi ganhando proporção intrigante; a ponto de tornar-se mais interessante do que o papo sobre o destino da puta.

Mais e mais pessoas se juntavam aos humanistas em redor do mendigo-maltrapilho. O mendigo, sentado, nada falava, apenas fumava, agradecia algumas indulgências com um breve movimento de cabeça ou piscar de olhos. De quando em quando se ouvia sua voz rouca emitir um diligente “Me dá um cigarro!”.

Pessoas foram se sentando, solidárias ao estado miserável no qual se encontrava o mendigo-maltrapilho. Todos atentos e cegos ao discurso dos humanistas, solidarizavam-se com o estado de miséria surda de toda a situação.

Na esquina, um caminhão acabara de estacionar. O mendigo olhou-o largamente… de tal forma que me pareceu ver sua alma se ausentando do lugar onde se achava seu corpo e indo ter com o caminhão…

Gozando de status elevado, o mendigo-maltrapilho apenas abria a boca e as pessoas em volta lutavam para ver quem conseguiria primeiro lhe meter um cigarro entre os dentes, e outros mais se digladiavam para acendê-lo. Quase sempre, o primeiro humanista conseguia, por estar em posição privilegiada… O que foi, aos poucos, despertando inveja nos demais presentes.

Em poucos minutos a calçada estava lotada de gente piedosa, vinda de todas as partes (até sotaque americano pude identificar!). Todos embriagados de compaixão pelo mendigo-maltrapilho e pelas mazelas do mundo, multiplicavam a dor – supostamente – existenciada pelo silencioso e sofrível mendigo, que pedia cigarros. Até eu tentei (sem sucesso) conceder um cigarro a ele.

Algumas velhinhas choravam, crianças assistiam com olhos esbugalhados de assombro e estranhamento àquele espetáculo inédito na rua. Os homens gritavam enlouquecidos contra o mundo; ouviam-se preces em voz baixa, clamando a Deus que acabasse com aquele sofrimento coletivo…

Uma leve chuva começou a cair como lágrimas de um deus sensivelmente humano e piedoso. De leve, a chuva engrossou em poucos segundos. O mendigo-maltrapilho ergueu-se. As pessoas ao redor se calaram, entreolhando-se interrogativamente como quem espera uma ação – esperavam talvez algum discurso que anunciasse uma fatalidade metafísica e transcendental ?

Um gesto de revolta imanente e revolucionário? Uma convocação para a luta? Mas, para a luta de quem?

Com olhar profético e solene o mendigo disse a todos que ali se achavam:

“Alguém me dá um cigarro!”

E se foi afastando a passos lentos, ultrapassando sobrado a sobrado, até recostar-se sozinho, no pé da outra árvore, dez metros ao sul, aonde contou suas moedas e acendeu seu cigarro. Ergueu a vista e observou a multidão piedosa e intrigada ainda em lágrimas mudas, e viu o cão sarnento vindo em sua direção.

Na esquina, o caminhão ligara seu motor e partiu elegante e soberbo em um movimento ligeiro e preciso diluindo aos poucos todo o cenário e ganhando velocidade rapidamente derrapou na umidade divina da rua subindo a calçada e trucidando 90% daqueles que ali se achavam começando pelos humanistas, depois as velhas, os homens e as mulheres.

As crianças, semelhantes a rodas girando sobre si mesmas, em gestos habilidosos e astutos, salvaram-se para um novo começar.

O mendigo-já-não-tão-maltrapilho (quando comparado àqueles corpos mutilados) parecia divertir-se como nenhum homem jamais se divertira antes! Desde que há homem na Terra! E há tão pouco tempo que existem homens na Terra!

O mendigo passara por entre os homens como por entre os animais!
Assistiu a tudo dez metros ao longe. Dei as costas para o filósofo tentador que eu experimentara e retornei para o minha segura e aquecida caverna cor-de-rosa murcha.

Fernando Henrique por João Ubaldo: o senhor é um sociólogo medíocre.

Um amigo (não lhe perguntei se poderia dar a autoria da indicação) indicou-me a leitura de um artigo de João Ubaldo Ribeiro, publicado em 25 de outubro de 1998. Na ocasião, Fernando Henrique Cardoso acabava de vencer o pleito eleitoral em que reelegeu-se presidente da república brasileira.

Então, dois fatores mostraram-se essenciais para esse sucesso eleitoral. Primeiramente, o congresso nacional aprovara, às pressas, uma emenda constitucional que permitia a reeleição. Fala-se – não à boca pequena, mas explicitamente – que o congresso foi seduzido materialmente pelas hostes fernandinas. Em segundo lugar, o presidente manteve, à custa de caros empréstimos externos, a moeda, o real, artificialmente valorizado, criando artificial riqueza. Pouco depois, a realidade apresentou-se e o real desvalorizou-se!

O artigo voltou à tona, porque cogita-se que a vaidade fernandina vai levá-lo a postular uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Realmente, como aponta Leandro Fortes, de cujo site copiei o texto de Ubaldo, não é escândalo grande a eventual entrada de Fernando Henrique nesse clube de muitos iletrados. Segue o artigo:

Senhor Presidente – João Ubaldo Ribeiro

25 de outubro de 1998

Senhor Presidente,

Antes de mais nada, quero tornar a parabenizá-lo pela sua vitória estrondosa nas urnas. Eu não gostei do resultado, como, aliás, não gosto do senhor, embora afirme isto com respeito. Explicito este meu respeito em dois motivos, por ordem de importância. O primeiro deles é que, como qualquer semelhante nosso, inclusive os milhões de miseráveis que o senhor volta a presidir, o senhor merece intrinsecamente o meu respeito. O segundo motivo é que o senhor incorpora uma instituição basilar de nosso sistema político, que é a Presidência da República, e eu devo respeito a essa instituição e jamais a insultaria, fosse o senhor ou qualquer outro seu ocupante legítimo. Talvez o senhor nem leia o que agora escrevo e, certamente, estará se lixando para um besta de um assim chamado intelectual, mero autor de uns pares de livros e de uns milhares de crônicas que jamais lhe causarão mossa. Mas eu quero dar meu recadinho.

Respeito também o senhor porque sei que meu respeito, ainda que talvez seja relutante privadamente, me é retribuído e não o faria abdicar de alguns compromissos com que, justiça seja feita, o senhor há mantido em sua vida pública – o mais importante dos quais é com a liberdade de expressão e opinião. O senhor, contudo, em quem antes votei, me traiu, assim como traiu muitos outros como eu. Ainda que obscuramente, sou do mesmo ramo profissional que o senhor, pois ensinei ciência política em universidades da Bahia e sei que o senhor é um sociólogo medíocre, cujo livro O Modelo Político Brasileiro me pareceu um amontoado de obviedades que não fizeram, nem fazem, falta ao nosso pensamento sociológico. Mas, como dizia antigo personagem de Jô Soares, eu acreditei.

O senhor entrou para a História não só como nosso presidente, como o primeiro a ser reeleito. Parabéns, outra vez, mas o senhor nos traiu. O senhor era admirado por gente como eu, em função de uma postura ética e política que o levou ao exílio e ao sofrimento em nome de causas em que acreditávamos, ou pelo menos nós pensávamos que o senhor acreditava, da mesma forma que hoje acha mais conveniente professar crença em Deus do que negá-la, como antes. Em determinados momentos de seu governo, o senhor chegou a fazer críticas, às vezes acirradas, a seu próprio governo, como se não fosse o senhor seu mandatário principal. O senhor, que já passou pelo ridículo de sentar-se na cadeira do prefeito de São Paulo, na convicção de que já estava eleito, hoje pensa que é um político competente e, possivelmente, tem Maquiavel na cabeceira da cama. O senhor não é uma coisa nem outra, o buraco é bem mais embaixo. Político competente é Antônio Carlos Magalhães, que manda no Brasil e, como já disse aqui, se ele fosse candidato, votaria nele e lhe continuaria a fazer oposição, mas pelo menos ele seria um presidente bem mais macho que o senhor.

Não gosto do senhor, mas não tenho ódio, é apenas uma divergência histórico-glandular. O senhor assumiu o governo em cima de um plano financeiro que o senhor sabe que não é seu, até porque lhe falta competência até para entendê-lo em sua inteireza e hoje, levado em grande parte por esse plano, nos governa novamente. Como já disse na semana passada, não lhe quero mal, desejo até grande sucesso para o senhor em sua próxima gestão, não, claro, por sua causa, mas por causa do povo brasileiro, pelo qual tenho tanto amor que agora mesmo, enquanto escrevo, estou chorando.

Eu ouso lembrar ao senhor, que tanto brilha, ao falar francês ou espanhol (inglês eu falo melhor, pode crer) em suas idas e vindas pelo mundo, à nossa custa, que o senhor é o presidente de um povo miserável, com umas das mais iníquas distribuições de renda do planeta. Ouso lembrar que um dos feitos mais memoráveis de seu governo, que ora se passa para que outro se inicie, foi o socorro, igualmente a nossa custa, a bancos ladrões, cujos responsáveis permanecem e permanecerão impunes. Ouso dizer que o senhor não fez nada que o engrandeça junto aos corações de muitos compatriotas, como eu. Ouso recordar que o senhor, numa demonstração inacreditável de insensibilidade, aconselhou a todos os brasileiros que fizessem check-ups médicos regulares. Ouso rememorar o senhor chamando os aposentados brasileiros de vagabundos. Claro, o senhor foi consagrado nas urnas pelo povo e não serei eu que terei a arrogância de dizer que estou certo e o povo está errado. Como já pedi na semana passada, Deus o assista, presidente. Paradoxal como pareça, eu torço pelo senhor, porque torço pelo povo de famintos, esfarrapados, humilhados, injustiçados e desgraçados, com o qual o senhor, em seu palácio, não convive, mas eu, que inclusive sou nordestino, conheço muito bem. E ouso recear que, depois de novamente empossado, o senhor minta outra vez e traga tantas ou mais desditas à classe média do que seu antecessor que hoje vive em Miami.

Já trocamos duas ou três palavras, quando nos vimos em solenidades da Academia Brasileira de Letras. Se o senhor, ao por acaso estar lá outra vez, dignar-se a me estender a mão, eu a apertarei deferentemente, pois não desacato o presidente de meu país. Mas não é necessário que o senhor passe por esse constrangimento, pois, do mesmo jeito que o senhor pode fingir que não me vê, a mesma coisa posso eu fazer. E, falando na Academia, me ocorre agora que o senhor venha a querer coroar sua carreira de glórias entrando para ela. Sou um pouco mais mocinho do que o senhor e não tenho nenhum poder, a não ser afetivo, sobre meus queridos confrades. Mas, se na ocasião eu tiver algum outro poder, o senhor só entra lá na minha vaga, com direito a meu lugar no mausoléu dos imortais.

Al pueblo paraguayo. Um texto de Eduardo Guimarães.

El pueblo paraguayo ha sido insultado en una televisión brasileña, la SporTV, que pertenece a la cadena de televisión Globo. Fue un ataque injusto, estúpido, que ha dejado avergonzados millones de brasileños que no comparten del preconcepto de una elite criminal, racista, que no hace lo que hizo solamente con vuestro pueblo, pero con sus propios compatriotas pobres.

Quién firma este artículo es un brasileño, es importante que sepan. Escribo a nombre de la mayoría de nuestro pueblo, estoy seguro. Un pueblo que, también en su mayoría, es sencillo, alegre, amistoso como es el pueblo paraguayo.

Les pido a los paraguayos que entiendan que quién los insultó de esta manera brutal como ha hecho la Globo, fue solamente la Globo, una corporación que ha crecido haciendo favores a la dictadura militar brasileña entre los años 1960, 1970 y 1980, apoyando asesinatos y torturas de los patriotas que enfrentaran aquella dictadura, que se mantuvo en el poder por más de veinte años.

Soy un comerciante que viaja por Latinoamérica para vender repuestos y que ha aprendido a amar la cultura de los pueblos hispánicos de esta parte del mundo. En mis viajes, he hecho muchas amistades, incluso en Paraguay.

A mi me encanta desde la sopa paraguaya hasta el jacaré. La música, los costumbres, las señoritas hermosas, los hombres valientes. He torcido arto por la selección de Paraguay en el juego con España. Me quedé orgulloso de mis hermanos paraguayos, que vendieran caro su derrota a los españoles.

En resumen, mis hermanos, no tengo más palabras para pedirles perdón, no por mi pueblo, que jamás haría lo que hizo la Globo, que es una infección que contamina nuestro país con su programación estúpida, racista, vendida a los intereses del mundo rico y que el pueblo solo mira en la tele por falta de opción. Pido perdón, si, por este país tener esta enfermedad que se llama Globo.

En algunas semanas viajo a Paraguay a trabajo y voy a intentar hablar más a ese pueblo hermano, para que no crea jamás que lo que hizo aquella televisión criminal tiene algo que ver con lo que piensa y siente el pueblo brasileño por sus hermanos paraguayos, a los cuales un Brasil que no existe más hizo tanto mal en el pasado, pero que habrá de reparar tales crímenes en el futuro.

Muchas gracias y mil perdones, mis hermanos paraguayos. Que viva por siempre la amistad de Paraguay y Brasil.

Oswaldo Guayasamín, pintor equatoriano.

Gosto desse retrato de Fidel por Guayasamín. Além de ser grande exemplo de arte pictórica, a figura retratada lembra-me bastante um parente querido já morto.

Guayasamín retratando-se.

El grito. Figuração da angústia.

Não sei o nome dessa tela, mas é da série La ternura. Creio que é Madre y hijo.

Enquanto teóricos discutiam os limites da pintura figurativa – como se não houvesse existido um Picasso – ela acontecia com força em Quito, por quem disse Mi pintura es para herir, para arañar y golpear en el corazón de la gente.

Saramago morreu.

José Saramago, já velho.

Um homem sóbrio. Morre sobriamente, em casa, aos 87 anos.

Há vinte anos, deparei-me com dois livros dele, na casa de minha avó. Eram O evangelho segundo Jesus Cristo e A história do cerco de Lisboa. Não me produziram uma imensa sensação de descoberta literária. Alguma surpresa com a forma, alguma satisfação com a abordagem.

Pus-me a ler tudo quanto encontrasse de Saramago há pouco tempo. E gostava de iniciar a leitura de um depois de terminar a de outro livro. Sempre fica a parecer que o estilo cria alguma familiaridade e que os livros todos são um. E acredito que sejam.

Não consigo dizer de outra maneira, embora vá soar ingênuo. O homem parece que não se vendeu. É isso, não se vendeu; dizer que era coerente é simples, pouco.

Acho que seduzi-me pelos livros do Saramago pelos por quê. E não acho que sejam por quê existenciais, mas mais ao rés-do-chão.

Há um ano, mais ou menos, descíamos, Olívia e eu, da Lapa a São Bento. Podíamos tomar o metro, mas resolvemos caminhar. Boa decisão, pois breve voltaríamos e o pequeno deleite de caminhar tornaria a ser interditado. Chegamos aos Aliados e lá estava a Feira do Livro do Porto.

Andamos a ver uns livros e, pelas tantas, Olívia ouviu anunciar que às cinco e meia José Saramago estaria lá e autografaria livros. Ficou entusiasmada e eu disse que era melhor averiguar, que podia ter escutado mal. Quem escuta mal, como eu, sempre cogita essa possibilidade. Mas, tinha ouvido bem, Saramago estaria ali mesmo.

Formou-se uma fila que logo estaria imensa. Olívia comprou dois livros e ofereceu-me um: Manual de Pintura e Caligrafia. Agora mesmo fui apanhá-lo na estante e vi a data precisa, escrita por ele, assim: 2.VI.2009

À nossa frente havia uns jovens eufóricos. Eram estudantes e alguns eram brasileiros. Fosse o Saramago ou a Madonna quem eles iam ver em breve, acho que dava no mesmo. O velho escrevedor perceberia esse entusiasmo que não era de letras, mas de gente conhecida. Percebeu melhor ainda porque um dos rapazes fez alguma pergunta que não se referia a livros. Olívia deve lembrar que pergunta foi, mas eu não lembro, não escutei.

Lembro que Saramago reteve o rapaz e, com um ar de muito cansado, perguntou-lhe se já tinha lido algum livro seu! Pergunta gentil, cansada e sem precisar de resposta.

Chegou minha hora de entregar-lhe o livro para autografar. Um aperto de mãos, boa tarde, boa tarde, obrigado.

Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei. A tentativa falhou, e não há melhor prova dessa derrota, ou falhanço, ou impossibilidade, do que a folha de papel em que começo a escrever: até um dia, cedo ou tarde, andarei do primeiro quadro para o segundo e depois virei a esta escrita, ou saltarei a etapa intermédia, ou interromperei uma palavra para ir pôs uma pincelada na tela do retrato que S. encomendou, ou naquele outro, paralelo, que S. não verá.

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