Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Um texto (Page 5 of 10)

António Vieira e as minhas condicionantes.

António Vieira, jesuíta, poeta e político, escrevia bem e tinha a grandeza dos que, por um lado poetam e, por outro, fazem grandes planos políticos.

Seu plano amplíssimo ainda não deu errado nem certo. Deu, infelizmente, em ser quase esquecido, ou lembrado somente como uma mística ou uma nostalgia sebastianista. Sua concretude voltará à evidência, todavia, ainda que sob aspectos econômicos.

Sua política imediata, sua microeconomia política, essa deu errado. É com relação a ela que devo afastar-me o possível das minhas condicionantes, eu que sou pernambucano e tive ocasião de conhecer um pouco o que são os jesuítas. Devo afastar-me para não perder de vista o grandioso, por conta da rejeição pelo trivial.

Nas suas proposições de política diária, Vieira esforçou-se contra o fanático dos acontecimentos, ou seja, contra Pernambuco da metade do século XVII. Expulsando os holandeses da Província, os pernambucanos punham abaixo a conformação  política que ele  julgava possível. Tratava-se de deixar a Província para os batavos como escambo pela manutenção de Angola. No fim, o fanático dos acontecimentos expulsou os batavos e manteve Angola!

Sua visão era imediata e precisa, sem circunlóquios ou eufemismos. Argumentava que de nada serviria manter Pernambuco sem os negros de Angola. Julgava que a manutenção de um seria a perda do outro e sabia que sem negros não havia produção de assúcar. Provando que entendia bem de negócios, aduzia ainda que a Holanda precisaria de negros e que por isso convinha mais a manutenção de Angola que das terras produtoras.

Apegado ao milagre de Ourique, nega possibilidade, antes, e miraculoridade, depois, à vitória de tropas pernambucanas mestiças sobre a infantaria batava, que não demanda maiores apresentações. O desconcertante feito tornar-se-ia ainda mais assombroso no redobrado afã de ir terminar a guerra em África, o que ocorreu e resultou bem. Ao fim, o que era inconciliável foi conciliado e mantiveram-se Pernambuco e Angola e os holandeses ficaram com o que os enriqueceria: o financiamento das operações.

Vieira compreendeu mal a restauração ou, pelo menos, os detalhes de como ela se faria. Mas, compreendeu bem que havia um sistema de imenso potencial no Atlântico luso, que era necessário escrever para a Corte, tentar fazer D. João IV agir como ungido de Deus e, principalmente, fazer toda essa política desde a colônia.

Nisso de falar desde o Pará e Maranhão está a grandeza dele. Faltou-lhe, creio, em política, falar pára o Pará, o Maranhão, o Rio de Janeiro, Luanda e Pernambuco mas, talvez julgasse não haver audiência. Sua proposta, impregnada de elementos religiosos como qualquer discurso econômico prático de um jesuíta, é ainda bastante prática.

Mas, prática e econômica, é menos substancial que a imagem sutilmente insinuadora de Pessoa, ou fortemente simbólica de Saramago.

Talvez eu esteja a negar-lhe a força da proposta por distância cronológica do seu tempo e dos recursos retóricos que lhe são próprios. É porque temo inserir interpretações que neguem sinceridade ao que chamava desígnios divinos. Não profano os ditos de um grande autor a supor vulgarmente que quando dizia vontade divina dizia união cultural.

Seria mais arrogante refazer António Vieira de modo a ser o que penso, que achá-lo muito comercial para embasar uma idéia tão grandiosa. Então, com o que ele disse fico eu, sem mudanças. Com as vantagens comerciais de monopolizar o comércio de pretos e a necessidade de entregar uma coisa para manter outra rentável.

Mas, Quinto Império, seja na forma de uma conversa de Deus com o Moisés Dom João, seja em qualquer forma, é uma idéia que se não se realizar não será apenas mais um erro de interpretação do cotidiano.

Mia Couto em João Pessoa.

Olívia disse-me, hoje pela manhã, que Mia Couto estaria em João Pessoa, no Espaço Ciência, às três da tarde. Lamentavelmente, ela não poderia ir, devido a essa prisão que é o trabalho. Eu, depois de verificar que não havia urgências, assumi o risco de acumular o trabalho para fazê-lo na segunda feira, ou mesmo no final de semana.

Convidei Severiano para lá irmos escutar Mia Couto e ele aceitou. Curiosamente, estávamos Olívia, eu, Severiano e Miguel, há dois anos, escutando Mia Couto em Braga. Hoje, vencemos os 130 quilômetros até João Pessoa e chegamos ao tal Espaço Ciência. É um local belíssimo, projetado por Oscar Niemayer, com vistas para o mar.

Breve colocaremos umas fotografias desse sítio bonito e bem organizado, onde há exposições permanentes sobre ciência e um  auditório que acolhe músicos, teatro e outras manifestações. O edifício principal é uma jóia arquitetónica, algo que parece um disco-voador a pairar sobre o solo.

Esperamos um bocadinho, comprei dois livros do autor, e sentamos-nos a esperar sua chegada.  Com pouco, chegou Izabella, vinda de Recife. Organizou-se algo como uma conversa entre Mia Couto e a audiência. Uma conversa meio pautada por duas senhoras professoras de letras, que tentaram conduzir os assuntos academicamente.

Ele é um homem profundamente sensato e firme e delicado. Escapou às investidas – gentis, é verdade – de apreensão acadêmica de si mesmo contando histórias, como se as teses e perguntas não tivessem sido propostas. Não sei se a vasta maioria da audiência composta por estudantes, licenciados e doutores em letras percebeu o alcance das observações dele sobre ser biólogo e ser escritor. Argutamente, ele disse que entre escritores é somente biólogo.

Sábio indivíduo este, que rejeita as associações corporativas e o diz gentilmente, sutilmente. É complicado afirmar uma falta de pertença sem agredir os que se julgam uma igrejinha; a melhor forma é ser dois e dizer-se um, conforme a situação. Se ele dissesse eu sou escritor e vocês estudantes e professores seria indelicado.

E contou que se auto-batizou Mia porque quando era menino pequeno vivia entre os gatos. Pediu aos pais para escolher o nome e ficar com este e eles consentiram. Contou de seus embaraços com o português brasileiro, porque nem sempre as palavras significam as mesmas coisas. Contou várias coisas, enfim, despretenciosamente, por contar, sem querer causar espanto ou riso na audiência.

E afirmou-se muito mais contista que romancista, porque é muito esquecido e os personagens em um romance precisam de mais cuidados. Falou da literatura africana e particularmente da lusófona e de como gera estranheza um moçambicano branco. E, depois de muito falar e responder a perguntas – algumas delas somente afirmações e opiniões do perguntador – autografou livros.

As pessoas ajuntaram-se em torno à mesa em que estava, sem ordem qualquer, munidas dos livros. Ele foi autografando pacientemente, que isso é do ofício. Esperei, com uma calma que me surpreendeu. Chegou minha vez, pus nas mãos dele os livros, pedi-lhe que oferecesse um a Olívia e o outro a Izabella e disse-lhe tu reconheceste meu sotaque nordestino, há dois anos, em Braga. Foi na ocasião do lançamento do Jesusalém, na Centésima Página. Sim, bem que me pareceu que te conhecia de alguma forma. Aquela livraria é muito simpática. É verdade, muito agradável. Obrigado.

O may be man, por Mia Couto.

Existe o “Yes man”. Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar.

O May be man vive do “talvez”. Em português, dever-se-ia chamar de “talvezeiro”. Devia tomar decisões. Não toma. Sim­plesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um “talvez” não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

A diferença entre o Yes man e o May be man não está apenas no “yes”. É que o “may be” é, ao mesmo tempo, um “may be not”. Enquanto o Yes man aposta na bajulação de um chefe, o May be man não aposta em nada nem em ninguém. Enquanto o primeiro suja a língua numa bota, o outro engraxa tudo que seja bota superior.

Sem chegar a ser chave para nada, o May be man ocupa lugares chave no Estado. Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniên­cia. Mas o May be man não é exactamente do partido no Poder. O seu partido é o Poder. Assim, ele veste e despe cores políticas conforme as marés. Porque o que ele é não vem da alma. Vem da aparência. A mesma mão que hoje levanta uma bandeira, levantará outra amanhã. E venderá as duas bandeiras, depois de amanhã. Afinal, a sua ideolo­gia tem um só nome: o negócio. Como não tem muito para negociar, como já se vendeu terra e ar, ele vende-se a si mesmo. E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se “comissão”. Há quem lhe chame de “luvas”. Os mais pequenos chamam-lhe de “gasosa”. Vivemos uma na­ção muito gaseificada.

Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be Man, uma oportunidade de negócios. De “business”, como convém hoje, dizer. Curiosamente, o “talvezeiro” é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enqua­dra-se no combate contra a pobreza.

Mas a corrupção, em Moçambique, tem uma dificuldade: o corrup­tor não sabe exactamente a quem subornar. Devia haver um manual, com organograma orientador. Ou como se diz em workshopês: os guidelines. Para evitar que o suborno seja improdutivo. Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opi­nião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

O May be man entendeu mal a máxima cristã de “amar o próximo”. Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao portu­guês, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o “próximo”. É por isso que, para a lógica do “talvezeiro” é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recen­te: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrup­to: em nome da lei, assalta o cidadão.

Eis a sua filosofia: a melhor maneira de fazer política é estar fora da política. Melhor ainda: é ser político sem política nenhuma. Nessa fluidez se afirma a sua competência: ele e sai dos princípios, esquece o que disse ontem, rasga o juramento do passado. E a lei e o plano servem, quando confirmam os seus interesses. E os do chefe. E, à cau­tela, os do chefe do chefe.

O May be man aprendeu a prudência de não dizer nada, não pensar nada e, sobretudo, não contrariar os poderosos. Agradar ao dirigen­te: esse é o principal currículo. Afinal, o May be man não tem ideia sobre nada: ele pensa com a cabeça do chefe, fala por via do discurso do chefe. E assim o nosso amigo se acha apto para tudo. Podem no­meá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. Podíamos falar de uma elevada densidade humana. Na realidade, porém, essa densidade não existe. Porque dentro do May be man não há ninguém. O que significa que estamos pagando salários a fantasmas. Uma for­tuna bem real paga mensalmente a fantasmas. Nenhum país, mesmo rico, deitaria assim tanto dinheiro para o vazio.

O May be Man é utilíssimo no país do talvez e na economia do faz-de-conta. Para um país a sério não serve.

Uma gente proclítica e intransitiva.

Pronomes pessoais oblíquos querem mandar nos verbos, mas findam por deixar clara sua sucumbência a estes. Por serem oblíquos, não é o agente a comandar a ação, antes é a ação que consente em dar ao sujeito a posição de aparente comando, consente em que fique, obliquamente, na primeira posição, antesposto ao real.

Porém, manda o real e delicadamente permite ao sujeito – que já não é agente – que se insinue afirmando sua pessoalidade, obliquamente: Me dá! Curiosa afirmação de pessoalidade, que prescinde do pronome do caso reto: Me dá fica a parecer mais pessoal que Tu, me dá.

Intransitivos e, consequentemente, reticentes. Sem complementos, diretos ou indiretos, ação pura e, portanto, abstrata! Somos muito mais abstratos do que supomos, nós que nos queremos tão concretos e atuantes.

Queremos domar a ação, afirmar-nos principais em relação a ela, por-nos antes dela. Precisamos, pois, de uma ação sem complementos, aberta à compreensão das reticências, que precise antes da compreensão do sujeito para ser compreensão de qualquer outra coisa.

Assim, os complementos são um estorvo para nós. Eles podem conferir muita objetividade, muita concretude; podem reduzir drasticamente o campo aberto das reticências e as várias possibilidades da ambiguidade.

Se uma pátria – um pertencimento – é sua língua, somos, os brasileiros, isso mesmo: proclíticos e intransitivos.

Lombo de porco com gengibre e mel.

Dia feriado, resolvo-me a ir ao mercado logo cedo. Tenho essa mania, que só encontra obstáculo nas filas imensas que há em todos os mercados, em quase todas as horas. São filas de quem vai a pedir favores, não de quem vai às compras. Um profundo desrespeito com os consumidores, esses seres complacentes e resignados a esperarem muito para comprarem caro.

Essa gente dos mercados deve estar a ganhar rios de dinheiro. A economia avança imensamente, toda a gente das classes mais baixas põe-se a comprar o que sempre quis e não podia. As grandes redes, francesa e norte-americana, praticam a quase escravidão com seus funcionários e contratam poucos.

Ou seja, investem pouco, drenam o sangue dos funcionários e vendem caro. Sim, vendem quase tudo mais caro que na Europa, até os produtos produzidos aqui mesmo. Servem-se da falácia dos custos tributários e da verdade dos custos logísticos para justificarem os preços altos.

A falácia tributária é claríssima, pois pagam-se mais impostos na Europa, além de maiores salários e encargos previdenciários. A questão logística realmente é um fator encarecedor de tudo no Brasil.

Bem, o fato é que cheguei ao mercado às dez horas e já havia uma imensa fila! Quase desisto de comprar as bobagens que buscava; uns sabonetes, desinfetante, água e o que seduzisse a vista. Resignei-me, todavia, a enfrentar a estúpida fila, devida à bestial economia na contratação de funcionários para as caixas.

Pus-me a perambular no mercado e, pelas tantas, detive-me em frente a um bonito lombo de porco. Pensei imediato: esse vai comigo para casa. Vai só, desacompanhado de qualquer tempero, quando chegar penso na forma de cozinha-lo com o que houver.

Havia gengibre em pó, pimenta-do-reino, alho, vinagre, azeite, um pouquinho de mel e laranjas! Cortei o lombo ao comprido, em três partes, que dispus em uma assadeira pequena. Furei os pedaços com uma faca de cozinha, para os temperos penetrarem a carne rapidamente, que não haveria muito tempo para apurarem.

Joguei por cima da carne muito gengibre em pó e pimenta-do-reino, virando os pedaços para que os dois lados fossem impregnados. No vidrinho em que havia um resto de mel despejei o sumo de uma laranja, um pouco de vinagre e um pouco de azeite. Esse caldo doce-azedo foi vertido em cima da carne.

Cortei quatro dentes de alho em fatias, ao comprido, e deitei-as sobre a carne, sem ordem. Deixei tudo a descansar assim por meia hora e levei então ao forno baixo por quarenta minutos. Não podia dar um mau resultado e não deu. Comi com pão integral a carne que ficou suculenta e bem molhadinha, sabendo discretamente a mel e gengibre.

Depois disso? Um cochilo na rede e a certeza de que algumas vezes os deuses conspiram a nosso favor. Algumas, porque nem sempre estão assim bem dispostos.

A gente tem seus pertencimentos.

Acabo de ler uma das deliciosas crônicas de Joca Souza Leão, publicadas no sítio de internet pe360graus. O texto chama-se Pernambuco em Toledo e gira em torno a um episódio passado em 1976. Na ocasião, em Toledo, Joca reconheceu um conterrâneo pela gargalhada.

Pois bem, isso fez-me lembrar de uma coisa interessante e pensar em outras mil desimportâncias. Percebi, no ano que morei em Portugal, que consigo reconhecer brasileiros, principalmente nordestinos. Ora, isso é óbvio? Claro que é, porque passa por identidades culturais, mas são menos óbvias as percepções que as pessoas têm dessa possibilidade.

Por experimentação mesmo, uma e outra vez comentava dessa facilidade de reconhecimento. As reações mais interessantes – muito embora trata-se de uma obviedade – eram duas. Uns escutavam o comentário como se se tratasse da coisa mais exótica do mundo, ou de uma impertinência ou tolice imensas.

Outros, achavam que era a enunciação científica de uma coisa negativa, ou seja, da existência de signos identificadores que seriam basicamente maus-modos. Não é isso, todavia, pois essa percepção negativa é complexo de inferioridade e vontade de emulação do colonizado.

Uma vez que eu apontei uma tremenda falta de educação de um brasileiro, em uma crônica, não foi para dizer que o reconheci como brasileiro pelos maus-modos, foi porque o sujeito falava aos berros na Madeleine, que é uma igreja e em que havia uma missa naqueles exato momento. Identifiquei porque o fulano berrava no telefone celular em português brasileiro. Só não identificaria se fosse mais surdo do que sou!

Seria possível discorrer sobre os sinais que identificam um grupo e, no caso, os brasileiros e nordestinos, mesmo que não digam uma palavra. Mas, isso não é um ensaio científico, são impressões. Seria até arriscado enumerar os possíveis sinais, gesticulação, forma de andar, pois, de tão improváveis as distinções, pode parecer suposição arrogante.

Mas os sinais existem. E para capta-los basta conhecê-los e estar atento, seja involuntariamente, seja por esforço disciplinado. Percebo-os quase sem esforços, intuitivamente, embora isso seja o trabalho de muitos neurônios associando e dissociando memórias e conceitos.

Na verdade, extravagante mesmo seria se isso não fosse possível, porque então seria um mundo de homogeneidade avassaladora ou de pessoas absolutamente incapazes de identificações. E muita gente parece não gostar dessa carga de signos identificadores que carrega e expõe sem poder disfarçar.

São frequentes as figuras do brasileiro que não quer ser reconhecido, seja porque sua situação recomenda a assimilação, seja porque vive aquela presunção do cidadão do mundo que fala sem acento e veste-se como acha que um sueco da mesma idade se vestiria.

Bem, é verdade também que são numerosos os brasileiros que, ao contrário das figuras escamoteadas, afirmam-se efusivamente no estereótipo do simpático, falante, acolhedor brasileiro. Mas também esses, pouco importa que estejam representando um papel ou a si mesmos, estranham que possam ser identificados ainda que se calem ou não estejam com a camisa amarela da seleção nacional.

O fato é que se acredita na possibilidade do disfarce, suprema ingenuidade!

A dignidade do Presidente Lula.

O Presidente no desfile comemorativo da independência.

O Presidente no desfile comemorativo da independência.

Eventualmente ainda surpreendo-me com a adequação de Lula ao exercício da Presidência da República. Claro que minha surpresa é apenas um sintoma da minha ignorância.

Há pouco mais de vinte anos, a emigração de brasileiros tornou-se bastante elevada, destacadamente para os EUA, para o Japão, e para a Europa – principalmente com destino a Portugal e Espanha. Buscavam-se condições econômicas melhores e a especificação vai aqui para distinguirem-se as saídas para estudo ou por outras motivações mais exóticas.

O país era – e ainda é – muito perverso com os mais pobres. Além da histórica precariedade relativamente a serviços básicos e a garantias fundamentais, as duas últimas décadas impusera desemprego e renda baixa.

Pois ontem, nas comemorações da independência, o Presidente Lula instou os brasileiros emigrantes a retornarem ao país. Seria impostura se o convite não fizesse algum sentido. Todavia, hoje faz, sim, algum sentido, pois a economia cresce a taxas elevadas e a oferta de empregos e a renda média crescem.

O Presidente desempenhou precisamente o que se espera de um Chefe de Estado que se dirige aos cidadãos. Disse Lula, em certo ponto do seu discurso:

Nesse momento de celebração, não posso deixar de registar um pensamento por aqueles que deixaram suas vidas ou têm vivenciado situações de penúria na busca de realizações pessoais noutros países. Estamos construindo um país de oportunidades para todos os brasileiros e brasileiras. O Brasil os espera de volta.

Minhas condicionantes pessoais não me farão negar a grandeza dessas palavras. Quero dizer que a fala presidencial não é sedutora para mim, cujos desejos de ir-me deste país não se devem a precariedades econômicas ou financeiras, mas a outras mais sutis.

Mas, é o cuidado que se espera de um Presidente com o número dos cidadãos que se viram obrigados a emigrarem por razões econômicas. Se essas condições melhoram, ele os convida de volta. Isso, definitivamente, não é alguma palhaçada, como supõe o antecessor de Lula.

A ditadura do concurso público.

Em 1998, quando fui aprovado no vestibular para o curso de Direito, as pessoas me parabenizavam como se tivesse alcançado um passaporte para um futuro seguro e promissor.
Naquela época, quando contava com prematuros dezessete anos de idade, os elogios me deixavam com extrema vaidade, faziam-me ter a certeza de que meu futuro realmente já estaria garantido pelo simples fato de cursar a faculdade de Direito.
Em 2004 colei grau e pude notar que a pompa do curso de Direito, tão evidente em 1998, já não era a mesma. A quantidade de cursos jurídicos começava a extrapolar o limite do aceitável. Notei que a realidade seria bem mais dura do que imaginava.
2005 chegou e decidi me dedicar a concursos públicos como sendo minha “tábua de salvação”. Depois de um ano e meio de estudos e cursinhos, consegui a tão almejada aprovação. Hoje sou servidor público, ciente da importância de se ocupar um cargo na esfera estatal, mas preocupado com os rumos e caminhos escolhidos pelos estudantes de Direito nos tempos atuais.
Só em Campina Grande/PB, já são pelo menos quatro cursos. Em João Pessoa/PB, há mais meia dúzia, no mínimo. Em Patos/PB e Sousa/PB, no sertão, e em Guarabira/PB, no brejo, também já é possível cursar Direito. E isso porque, ao contrário de cursos como engenharia, medicina e tantos outros, Direito tem um custo de montagem muito baixo. As faculdades gastam praticamente apenas com os salários dos professores, anunciam mensalidades que cabem no bolso, e, com isso, atraem uma legião de sonhadores que têm por doutrina, na maioria das vezes, ganhar seus R$ 20.000,00 pelo resto da vida, não importando qual função exerça, nem o grau de responsabilidade a ser assumido.
Diante dessa realidade, vem a pergunta: há espaço para todos no serviço público? A resposta, infelizmente, só pode ser negativa.
O Bacharelado em Direito está se transformando no tipo da formação coringa, buscada por quem não vê oportunidades no mercado de trabalho e acha que o curso lhe dará a oportunidade de ser aprovado num concurso público. Muitos se sentam nos bancos da faculdade pensando sentar-se em bancos de cursinhos preparatórios.
Longe de mim condenar os que escolhem o Direito por profissão e o concurso público como opção. Seria, no mínimo, uma grande hipocrisia, partindo de um servidor público, criado e educado por uma servidora pública. Longe de mim querer menosprezar a importância de uma ciência tão importante para qualquer sociedade minimamente organizada.
Porém, a realidade das academias jurídicas em nosso país é estarrecedora. E não falo da qualidade do ensino. O corpo docente é cada vez mais preparado e especializado. O que me perturba é ver um curso universitário sendo alvo de uma legião de cidadãos tão-somente pela chance de lhes proporcionar, após a formatura, a assunção, cada vez mais improvável, de um cargo público dotado do tão sonhado atributo da estabilidade.
A quantidade de cargos públicos e, conseqüentemente, de concursos públicos, já vem diminuindo bastante de uns tempos para cá. São raros os concursos, atualmente, a oferecer mais de cem vagas. Enquanto isso, a quantidade de “estudantes-concurseiros” aumenta em progressão geométrica. Resultado da equação: mais da metade dos bacharéis, seguramente, não conseguirá ocupar um espaço no serviço público.
A esmagadora maioria dos jovens vestibulandos brasileiros, ou seja, aqueles na faixa etária dos 17 aos 20 anos de idade, geralmente de classe média e predominantemente os da região Nordeste, não pensa em empreender, criar, inovar nem transformar a realidade social. No momento de decidir qual caminho escolher, se veem diante de duas possibilidade: prestar vestibular para Medicina ou Direito. Sendo Medicina um curso caro e ainda com poucas vagas, surge o Direito como a válvula de escape. E isso se deve, basicamente, a fatores como a falta de oportunidades noutras áreas, o preconceito de seguir um caminho “alternativo” e a já mencionada possibilidade de se alcançar a estabilidade por meio da aprovação em concurso público.
Infelizmente, ou melhor, felizmente, há inúmeros casos de bacharéis em Direito, com carteira da OAB, trilhando caminhos “alternativos” para sobreviver, e muitas vezes com índices de sucesso e satisfação pessoal muito altos.
Já ouvi relatos de uma advogada que abandonou a profissão para ser empresária. E muitos poderiam pensar, em virtude da pomposa denominação “empresária”, que ela tenha montado uma franquia de cosméticos milionária, ou algo do tipo. Pois acreditem: a “ex-Doutora” é manicure das mais requisitadas! E isso, certamente, também é ser empresária. Com o pensamento de expandir o negócio, já fatura algo entre R$3.000,00 e R$ 4.000,00, bem mais do que boa parte de advogados que matam um leão por dia nos fóruns Brasil afora. E maior do que o salário pago por vários cargos públicos.
Não estou eu pregando a desvalorização do curso de Direito. Seria, repito, pura hipocrisia, já que tudo que alcancei até hoje, tanto do ponto de vista profissional, quanto do financeiro, foi graças ao Direito. Apenas quero deixar claro a milhares de concurseiros, inclusive eu, que nada nos impede de continuar nossos estudos visando o tão almejado cargo público, sem que seja necessário colocar essa opção como exclusiva. Precisamos abrir mais a mente, oxigená-la e pararmos de acreditar que a felicidade, a realização pessoal e profissional e a segurança financeira só virão com a ocupação de um cargo público.
O ser humano é criativo por excelência, e as oportunidades que podem advir das relações humanas são infinitas. Cabe a todos nós concurseiros – até mesmos aos que, como eu, já são servidores públicos – criar e inovar, buscando caminhos alternativos. O Brasil agradece!

O Brasil e a lei dos grandes números.

O Julinho da Adelaide sugeriu-me o vídeo que ensejou a postagem anterior. Agora, Sidarta fez um comentário àquela postagem que, por sua objetividade, concisão e precisão, torno em postagem, abaixo:

Em matemática, a “lei dos grandes números” é soberana. Com base nela, a China passou o Japão em PIB e a India também vai passar em breve. Há também uma função matemática interessante de ser estudada: é a função “logística”, que cresce e tende a uma saturação no tempo. Economias que cresceram muito no passado – alguns países da Europa ocidental e os USA – já estão no caminho da saturação e, como suas populações não crescem significativamente, não podem se beneficiar da ajuda lei dos grandes números e retardar a saturação.

No Brasil, penso que estamos bem no ramo ascendente da função logística e com um empurrão da lei dos grandes números para gerar consumo. Uma população mantida mais “analfabetizada” e dominada pelas ologarquias tradicionais poderia seguir o mais longo caminho que tem seguido o Paquistão, o Egito ou outro país similar, com a manutenção dos privilégios das classes tradicionalmente dominantes.

Alfabetizaram o povo, internetizaram o interior do país e globalizaram as telecomunicações e as elites dominantes não vão mais ter como manter os direitos divinos que imaginavam ter “ad eternum”. A luta de classes está aberta e a lei dos grandes números está aí para alertar aos que preconizam soluções anticonvencionais (um golpezinho de direita, por exemplo) de que em 1964 éramos uns 65 milhões de habitantes no Brasil e agora somos perto de 200 milhões… e bem mais esclarecidos, inclusive os donos temporários dos canhões e das baionetas.

Mia Couto: O jet-set moçambicano.

Esse texto de Mia Couto é delicioso e ao mesmo tempo trágico. Delicioso na sua mordacidade cortante, na sua precisão, na sua ironia. Trágico por sua verdade aplicável não apenas a Moçambique.

A submissão aos modismos, a falta de educação e de modos, a superficialidade e ao novo-riquismo são correntes e dominantes lá como aqui e como em todos os sítios.  Segue o texto:

Já vimos que, em Moçambique, não é preciso ser rico. O essencial é parecer rico. Entre parecer e ser vai menos que um passo, a diferença entre um tropeço e uma trapaça. No nosso caso, a aparência é que faz a essência. Daí que a empresa comece pela fachada, o empresário de sucesso comece pelo sucesso da sua viatura, a felicidade do casamento se faça pela dimensão da festa. A ocasião, diz-se, é que faz o negócio. E é aqui que entra o cenário dos ricos e candidatos a ricos: a encenação do nosso “jet-set”.


O “jet-set” como todos sabem é algo que ninguém sabe o que é. Mas reúne a gente de luxo, a gente vazia que enche de vazio as colunas sociais.


O jet-set moçambicano está ainda no início. Aqui seguem umas dicas que, durante o próximo ano, ajudarão qualquer pelintra a candidatar-se a um jet-setista. Haja democracia! As sugestões são gratuitas e estão dispostas na forma de um pequeno manual por desordem alfabética:


Anéis – São imprescindíveis. Fazem parte da montra. O princípio é: quem tem boa aparência é bem aparentado. E quem tem bom parente está a meio caminho para passar dos anéis do senhor à categoria de Senhor dos Anéis O jet-setista nacional deve assemelhar-se a um verdadeiro Saturno, tais os anéis que rodeiam os seus dedos. A ideia é que quem passe nunca confunda o jet-setista com um magaíça*, um pobre, um coitado. Deve-se usar jóias do tipo matacão, ouros e pedras preciosas tão grandes que se poderiam chamar de penedos preciosos. A acompanhar a anelagem deve exibir-se um cordão de ouro, bem visível entre a camisa desabotoada.


Boas maneiras – Não se devem ter. Nem pensar. O bom estilo é agressivo, o arranhão, o grosseiro. Um tipo simpático, de modos afáveis e que se preocupa com os outros? Isso, só uma pessoa que necessita de aprovação da sociedade. O jet-setista nacional não precisa de aprovação de ninguém, já nasceu aprovado. Daí os seus ares de chefe, de gajo mandão, que olha o mundo inteiro com superioridade de patrão. Pára o carro no meio da estrada atrapalhando o trânsito, fura a bicha**, passa à frente, pisa o cidadão anónimo. Onde os outros devem esperar, o jet-setista aproveita para exibir a sua condição de criatura especial. O jet-setista não espera: telefona. E manda. Quando não desmanda.


Cabelo – O nosso jet-setista anda a reboque das modas dos outros. O que vem dos americanos: isso é que é bom. Espreita a MTV e fica deleitado com uns moços cuja única tarefa na vida é fazer de conta que cantam. Os tipos são fantásticos, nesses vídeo-clips: nunca se lhes viu ligação alguma com o trabalho, circulam com viaturas a abarrotar de miúdas descascadas. A vida é fácil para esses meninos. De onde lhes virá o sustento? Pois esses queridos fazem questão em rapar o cabelo à moda militar, para demonstrar a sua agressividade contra um mundo que os excluiu mas que, ao que parece, lhes abriu a porta para uns tantos luxos. E esses andam de cabelo rapado. Por enquanto.


Cerveja – A solidez do nosso matreco vem dos líquidos. O nosso candidato a jet-setista não simplesmente bebe. Ele tem de mostrar que bebe. Parece um reclame publicitário ambulante. Encontramos o nosso matreco de cerveja na mão em casa, na rua, no automóvel, na casa de banho. As obsessões do matreco nacional variam entre o copo e o corpo (os tipos ginasticam-se bem). Vazam copos e enchem os corpos (de musculaças). As garrafas ou latas vazias são deitadas para o meio da rua. Deitar a lata no depósito do lixo é uma coisa demasiado “educadinha”. Boa educação é para os pobres. Bons modos são para quem trabalha. Porque a malta da pesada não precisa de maneiras. Precisa de gangs. Respeito? Isso o dinheiro não compra. Antes vale que os outros tenham medo.


Chapéu – É fundamental. Mas o verdadeiro jet-setista não usa chapéu quando todos os outros usam: ao sol. Eis a criatividade do matreco nacional: chapéu, ele usa na sombra, no interior das viaturas e sob o tecto das casas. Deve ser um chapéu que dê nas vistas. Muito aconselhável é o chapéu de cowboy, à la Texana. Para mostrar a familiaridade do nosso matreco com a rudeza dos domadores de cavalos. Com os que põem o planeta na ordem. Na sua ordem.


Cultura – O jet-setista não lê, não vai ao teatro. A única coisa que ele lê são os rótulos de uísque. A única música que escuta são umas “rapadas e hip-hopadas” que ele generosamente emite da aparelhagem do automóvel para toda a cidade. Os tipos da cultura são, no entender do matreco nacional, uns desgraçados que nunca ficarão ricos. O segredo é o seguinte: o jet-setista nem precisa de estudar. Nem de ter Curriculum Vitae. Para quê? Ele não vai concorrer, os concursos é que vão ter com ele. E para abrir portas basta-lhe o nome. O nome da família, entenda-se.


Carros – O matreco nacional fica maluquinho com viaturas de luxo. É quase uma tara sexual, uma espécie de droga legalmente autorizada. O carro não é para o nosso jet-setista um instrumento, um objecto. É uma divindade, um meio de afirmação. Se pudesse o matreco levava o automóvel para a cama. E, de facto, o sonho mais erótico do nosso jet-setista não é com uma Mercedes. É, com um Mercedes.


Fatos – Têm de ser de Itália. Para não correr o risco do investimento ser em vão, aconselha-se a usar o casaco com os rótulos de fora, não vá a origem da roupa passar despercebida. Um lencinho pode espreitar do bolso, a sugerir que outras coisas podem de lá sair.


Óculos escuros – Essenciais, haja ou não haja claridade. O style – ou em português, o estilo – assim o exige. Devem ser usados em casa, no cinema, enfim, em tudo o que não bate o sol directo. O matreco deve dar a entender que há uma luz especial que lhe vem de dentro da cabeça. Essa a razão do chapéu, mesmo na maior obscuridade.


Simplicidade – A simplicidade é um pecado mortal para a nossa matrecagem. Sobretudo, se se é filho de gente grande. Nesse caso, deve-se gastar à larga e mostrar que isso de país pobre é para os outros. Porque eles (os meninos de boas famílias) exibem mais ostentação que os filhos dos verdadeiros ricos dos países verdadeiramente ricos. Afinal, ficamos independentes para quê?


Telemóvel
– Ui, ui, ui! O celular ou telemóvel já faz parte do braço do matreco, é a sua mais superior extremidade inferior. A marca, o modelo, as luzinhas que acendem, os brilhantes, tudo isso conta. Mas importa, sobretudo, que o toque do celular seja audível a mais de 200 metros. Quem disse que o jet-setista não tem relação com a música clássica? Volume no máximo, pelo aparelho passam os mais cultos trechos: Fur Elise de Beethoven, a Rapsódia Húngara de Franz Liszt, o Danúbio Azul de Strauss. No entanto, a melodia mais adequada para as condições higiénicas de Maputo é o Voo do Moscardo.


Última sugestão: nunca desligue o telemóvel! O que em outro lugar é uma prova de boa educação pode, em Moçambique, ser interpretado como um sinal de fraqueza. Em Conselho de Ministros, na confissão da Igreja, no funeral do avô: mostre que nada é mais importante que as suas inadiáveis comunicações. Você é que é o centro do universo!

Mia Couto

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