Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Um texto (Page 3 of 10)

Comeram Lurdinha! Um episódio de Anus Mundi.

Por Sidarta

Em Anus Mundi só tinha luz elétrica, até meados dos anos 1950’s, das 5 da tarde às 10 da noite. Quando dava 10 para as 10 da noite, a luz dava uma piscada em toda a cidade e diziam que a “usina” estava avisando que “iam soltar a onça”.

Os candeeiros eram acesos e as pessoas retornavam às suas casas para ainda conversarem um pouco ou ir logo dormir. Tinham, enfim, 10 minutos entre a piscada da luz e a chegada em casa com as precárias luzes nas ruas ainda acesas.

Os bares mais perto da zona de meretrício continuavam funcionando até perto das 11 horas da noite, iluminados a candeeiro de querosene, e os que se detinham lá até depois das 10 horas sempre levavam nos bolsos lanternas de pilha, para verem os buracos nas ruas no caminho de volta para casa. Nas noites de lua economizavam pilha, pois o céu era muito limpo e as ruas ficavam bem claras.

Foi em uma noite de lua que se deu o caso de Lurdinha.

Lurdinha, filha do já idoso, vermelho, brabo, com pressão alta, apreciador de uma charque bem salgada e asmático Seu Aprígio, e de dona Luzia, bem mais jovem, recatada, jeitosa e delicada, era, aos 18 anos, uma das mais cobiçadas prendas da cidade e namorava “sério e prá casar” com Zé Luís Lagrange, um rapaz de uns 23 anos de idade, metido a bonito, preguiçoso e o filho mais velho de Seu Luis da granja.

Zé Luís, o jovem namorador, dizia-se descendente de franceses, por conta do sobrenome, mesmo sabendo que o original do seu pai era mesmo bem popular e brasileiro; o nome José Luis Lagrange tinha sido escolhido e registrado no cartório pelo seu pai para  que o filho mais velho não enfrentasse as mesmas piadas. O fato é que o prosáico nome de família vinha desde o avô, que tinha começado o negócio de vender ovos de granja, ainda no início do século XX. Assim, Zé Luís afrancesou-se e tornou-se Lagrange.

Monsieur Lagrange, como vaidosamente apreciava ser chamado pelos colegas no ginásio,  onde não passou nos estudos, também deveria herdar a granja do pai e isso lhe dava a presunção de vir a ter uma renda para manter uma família, comprar bons sapatos e um dia até comprar um carro. Era assim, também, uma boa prenda quando analisado pelo lado das mães com filhas para casar.

Em uma sexta-feira, como de hábito, Zé Luís namorava com Lurdinha no terraço da casa dela, já perto das 10 horas da noite, enquanto Seu Aprígio cochilava ouvindo o rádio e Dona Luzia fazia um crochê,  e tinha um olho no cochilo de Seu Aprígio e uma mão nas pernas de Lurdinha.

Foi aí que a tensão subiu mesmo e resolveram que seria no dia seguinte, um sábado de lua, que iam “partir para os finalmente”. Tinham somente que fazer Seu Aprígio dormir mesmo cedo e profundamente e não somente cochilar, e também dar um jeito de que Dona Luzia fosse mais tolerante no “agarra-agarra” deles no terraço e fizesse “vista grossa”.

Essa última parte da trama não era tão difícil, pois Lurdinha sabia pela mãe que o “velho Aprígio” já não dava conta de Dona Luzia e que ela tinha lhe dito – Jesus me perdoe – que estava a ponto de pensar em arrumar alguém com quem se virar. Mas, nada disso estava confirmado e nem o Padre Almiro tinha ouvido alguma coisa de Dona Luzia nas confissões, só informações de segunda mão passadas pelo seu sacristão.

Verdade é que Dona Luzia vinha fazendo freqüentes consultas ginecológicas com Dr. Aluizio e comprando remédios na farmácia, e especulavam que tivesse com algum problema de útero, o que gerou uma certa solidariedade das amigas e até também a suspeita de que Seu Aprígio tivesse pegado alguma coisa na zona e passado para Dona Luzia. Tomava também, com orientação do Dr. Aluizio, Belergal e Maracujina para as crises de ansiedade e de insônia.

No sábado planejado “para os finalmente” por Zé Luis e Lurdinha, essa conversou com a mãe e disse que não agüentava mais os hormônios em excitação e que ia “se perder” de noite com Zé Luís, no terraço de casa mesmo. Entretanto, precisava da ajuda da mãe para botar Seu Aprígio para dormir pesado e mais cedo e insinuou que desconfiava das idas da mãe ao consultório de Dr. Aluizio, pois aparentemente ela não tinha doença nenhuma em casa e também não tomava os remédios nem usava as pomadas que comprava na farmácia.

Dona Luzia, encurralada pela verdade desconfiada pela filha, concordou em dar uma dose castigada de Belergal e de Maracujina a Seu Aprígio, logo depois do jantar, e a ficar lá dentro de casa das 10 às 11 horas da noite, deixando a porta aberta; depois disso tinha mesmo que fechar a porta da casa pois algum bêbado vindo da zona podia parar na casa com a porta aberta e o candeeiro aceso e perguntar se tinha morrido alguém.

Às nove e meia da noite do sábado, lua bem clara e romântica, seu Aprígio já dormia e roncava pesado na cadeira de balanço enquanto Dona Luzia prosseguia no seu crochê e Zé Luis e Lurdinha em seus trabalhos manuais. Dez da noite e a luz apagou, com Zé Luis olhando para os lados para ver se ainda tinha alguém na rua. A noite de lua tinha atrapalhado os planos dele, pois uma turma já com muita aguardente na cabeça resolveu fazer uma serenata com violão bem no meio da rua. Lá pelas 11 horas os bêbados não conseguiam mais cantar nada, muito menos tocar violão e resolveram ir embora.

Sem perder tempo, Zé Luis partiu prá cima de Lurdinha com toda a sua experiência em sair com as meninas da zona “já amaciadas”.

Com pouca instrução sobre como eram “os finalmente” em termos de incômodos imediatos, Lurdinha começou a gritar um alto “ai, ai, ai” que acordou Biu de Serafim, que cochilava deitado na calçada por conta da cachaça que tinha tomado com os seresteiros.

Entendendo de imediato o que tinha acontecido, Biu de Serafim” deu uma boa risada e gritou também bem alto para toda a cidade ouvir:

–  COMERAM LURDINHA !

Logo os vizinhos também abriram as portas das suas casas e saíram para ver o que estava acontecendo, não dando muito tempo  para que Monsieur Zé Luis Lagrange se ajeitasse e desaparecesse de vista. Estava claro, o escândalo tinha sido mesmo coisa do vadio do Zé Luis.

Mesmo com todo o Belergal e a Maracujina que Dona Luzia tinha lhe dado para dormir, Seu Aprígio também acordou e, ao ver a situação formada dentro e fora da sua casa, teve um passamento, caiu com os olhos esbugalhados e um braço e uma mão entortada. Dona Luzia, que já estava de camisola para ir dormir, correu para chamar o Dr. Aluizio que, ao vê-la naqueles trajes e àquela hora na porta da sua casa, foi logo dizendo:

–  Aqui não, Luzia, segunda-feira no consultório às sete da noite.

Foi quando Dona Luzia explicou a Dr. Aluizio que Seu Aprígio tinha tido um passamento e que tava todo entronchado no chão.

Dr. Aluizio tirou logo o pijama e vestiu a roupa de médico, pegou sua maleta de primeiros socorros e foi com Dona Luzia ver Seu Aprígio. Ao chegar, aferiu logo a pressão arterial do paciente e constatou que estava altíssima e que Seu Aprígio devia ter tido um sério e provavelmente fatal derrame cerebral. Sabia que Seu Aprígio, se sobrevivesse, mataria alguém que ele soubesse  ter feito mal a Lurdinha, ou dado em cima de Dona Luzia, e aí disse:

–  Ele precisa ser bem tratado. O que ele gosta de comer?

–  Charque bem salgada, respondeu Dona Luzia.

–  Pois é, disse Dr. Aluizio,  ele vai ficar assim meio esquisito por uns dias e a senhora deve fazer todos os gostos dele. Pode dar a ele o que ele gosta de comer, e até uma caninha e uma boa carne de sol lá do Araripe; insista também com ele para ele ir prá cama com a senhora, exercício faz bem prá quem tem passamento.

No dia seguinte, depois do almoço, conforme esperado por Dr. Aluizio, Dona Luzia, Lurdinha e Zé Luis, Seu Aprígio teve outro passamento e, lamentavelmente, morreu…

Menos de um mês depois, Zé Luis Lagrange se mandou de Anus Mundi para Teresina dizendo que ia estudar para o concurso do Banco do Brasil e Lurdinha nunca mais ouviu falar dele.

Energia nuclear. Uma entrevista de James Lovelock.

Uma entrevista objetiva de um cientista que foi um dos próceres dos ecologistas. O homem trata com evidências e obviedades, para concluir o óbvio: não há melhores alternativas para um planeta com tanta gente. A resposta à pergunta sobre o lixo nuclear – ponto central da rejeição ecotola – está destacada em negrito.

Por que usar energia nuclear e não outras formas tidas como ecologicamente corretas, como a eólica e a solar?

Seria ótimo se pudéssemos contar somente com essas fontes de energia, mas elas não satisfazem nossas necessidades. Se houvesse 1 bilhão de pessoas no mundo, bastaria usar as energias solar, eólica, hidrelétrica e uma quantidade modesta vinda da queima de madeira. Mas já somos mais de 6 bilhões e a população continua aumentando. A energia nuclear é limpa e não provoca aquecimento. Uma estação pode ser construída em três anos. É também uma fonte de energia altamente disponível, não está acabando nem ficando mais cara, como o petróleo.

Um desastre como o de Chernobyl, na União Soviética, não seria suficiente para banir as usinas nucleares?

Há muita mentira em torno desse assunto. De acordo com informes da ONU, houve 45 mortos em conseqüência da explosão do reator em Chernobyl. Quase todos eram trabalhadores da usina, bombeiros e integrantes das equipes que sobrevoaram o fogo para apagá-lo. Os 45 morreram principalmente devido à radiação recebida pelo reator aberto e pelos escombros altamente radioativos que se espalharam ao redor dele. Aqueles que moravam perto da usina foram expostos à radiação, mas continuam vivos. É verdade que alguns podem morrer antes do esperado com cânceres provocados por radiação, mas lembre-se: em 1952, 5 mil pessoas morreram em Londres, num único dia, envenenadas por fumaça de carvão. Estima-se que centenas de milhares morreram desde então em decorrência de câncer do pulmão causado pela inalação de substâncias cancerígenas na fumaça. Mas a mídia não fala da queima de carvão como causa massiva de tumores.

Por que, então, há tanta oposição ao uso da energia nuclear?

As pessoas sempre têm medo de algo. Antes, eram fantasmas e vampiros. Hoje, energia nuclear. A oposição baseia-se numa ficção hollywoodiana, na mídia e em lobbies do movimento verde.

Você sempre foi considerado um guru dos ecologistas e agora não perde uma oportunidade para criticá-los. Qual é o motivo desse desentendimento?

Os verdes são importantes, mas estão errados. Eles se preocupam com as pessoas e esquecem da saúde da Terra. Não percebem que somos parte do planeta e dependemos dele. Eu mesmo sou um verde, mas tento mostrar que estão errados sobre energia nuclear.

Ao quebrar átomos, as usinas nucleares não alteram o equilíbrio de Gaia?

Ao contrário. Se você olhar para o Universo, verá que sua energia natural é nuclear. Toda estrela é uma estação nuclear, inclusive o Sol. O único método anômalo de obtenção de energia é a queima de combustíveis aqui na Terra. É muito mais natural usar energia nuclear do que queimar carvão e mandar gás carbônico para a atmosfera.

Você pede o fim da queima de óleo e carvão. Mas muitos países, como o Brasil, têm na água a maior fonte de energia. Como a troca que você propõe mudará um quadro com tantas variáveis?

Concordo que diferentes países terão soluções distintas para o problema. Mas, no momento, usar energia nuclear é a saída mais acessível e realista para o aquecimento global. Estados Unidos, China e Europa precisam cortar imediatamente 60% do combustível fóssil queimado para não termos conseqüências desastrosas. Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, a temperatura no planeta aumentará em média 3,5 graus até 2100. Para comparar, na última era do gelo, que terminou há 12 mil anos, a média de temperatura era 3,5 graus menor que em 1900. Ou seja: a mudança até 2100 será comparável àquela entre a era do gelo e 1900. A floresta amazônica não existia naquele tempo. E ela pode também não existir no fim deste século.

Basear a eletricidade em energia nuclear não provocará uma exploração desenfreada de urânio que ameaçaria a natureza de países como o Brasil?

Não, porque as quantidades são pequenas. Um quilo de urânio produz aproximadamente 10 milhões de vezes mais energia que a mesma quantidade de carvão ou petróleo. Na verdade, o Brasil poderia ter benefícios econômicos com a mudança, tornando-se um grande provedor mundial de urânio.

E o que faremos com o lixo atômico?

O volume de lixo atômico de alto nível produzido pelas usinas nucleares do Reino Unido, em seus 50 anos de atividade, equivale a 10 metros cúbicos. É tamanho de uma casa pequena. Se colocado numa caixa de concreto, esse lixo seria totalmente seguro e a perda de calor ainda poderia ser aproveitada para aquecer minha casa.

As usinas nucleares não podem se tornar alvo preferencial de terroristas?

Não creio. As estações nucleares estão localizadas em construções fortes. Parecem mais bunkers que edifícios normais. Tenho informações de que elas podem suportar o choque de um avião, por exemplo. O grande perigo em relação aos terroristas é que eles roubem plutônio ou urânio em quantidade suficiente para fazer uma bomba atômica rudimentar. Enormes estoques desses elementos foram armazenados na Europa, na ex-União Soviética e Estados Unidos durante a Guerra Fria.

Você acredita que as multinacionais do petróleo podem encampar sua proposta e produzir energia nuclear?

Certamente. Elas não se consideram companhias de petróleo, e sim energéticas. Não lhes importa de onde a energia vem, mas o lucro que conseguem nesse preocesso. Creio que elas poderiam, inclusive, investir na construção e operação de usinas nucleares.

James Lovelock

Em: http://www.ecolo.org/lovelock/lovelock_gandhi_nuc-Braz_04.htm

O bispo, os índios e o médico de Anus Mundi em: “Esse milagre é meu!”

Por Sidarta.

Corria o ano de 1917 e três crianças educadas em um catolicismo medieval viram e conversaram muito com Nossa Senhora, e ainda pintaram o sete com a lei da gravidade fazendo variar erraticamente a órbita do sol… Isso por várias vezes, ali pelo Ribatejo, em Portugal.

Esses eventos, reconhecidos pela igreja católica como sendo milagres, promoveram a realização de muitos filmes de cinema com o intuito de divulgar a religião e de melhor distribuir e circular a renda dos fiéis.

Em meados dos anos 1930’s, em Anus Mundi, no Piauí, chegou uma versão ainda muda do filme da tal aparição de Nossa Senhora aos três meninos portugueses. O cinema, o cartório e a pia batismal estiveram lotados por vários dias, com o tabelião e o padre recusando-se a registrar e a batizar crianças com os nomes de Francisco, Jacinta ou Lúcia, tal iria ser a previsível confusão na cidade anos depois.

No alto da serra próxima à cidade, nos contrafortes do Araripe, vivia uma família também muito beata e com três filhos que, por pura coincidência, eram duas meninas e um menino. Essa família veio a Anus Mundi para ver o filme das aparições de Nossa Senhora.

O filme só não foi mais visto em Anus Mundi do que “Os Dez Mandamentos”, que apareceu muitos anos após, mas superou o número de assistentes de “La Violetera” já nos anos 1960’s.

Perto do local onde viviam as tais crianças, vivia também uma comunidade de pessoas que se proclamava descendente de índios e era, até então, humilde, pacífica e que compartilhava entre os seus membros os poucos recursos que tinham.

Não deu outra, dias depois os meninos resolveram subir em uma pedra lá no alto da serra perto de onde moravam, na esperança de também ver Nossa Senhora, e a viram mesmo… segundo eles. Receberam até instruções específicas da santa para que combatessem ferrenhamente o comunismo ateu, coisa de que não tinham a menor idéia do que se tratava, mas de que já tinham ouvido os seus pais falando em casa.

A notícia chegou logo aos ouvidos do bispo da diocese a que pertencia Anus Mundi, aos da comunidade de índios que vivia por perto e aos do médico da cidade.

Cuidadoso, o bispo enviou ao alto da serra um padre experiente em exorcismos e em desmascaramento de falcatruas para entrevistar as crianças, que voltou atestando o milagre das aparições, mesmo ele não conseguindo ver ou ouvir nada do que as crianças diziam ser a conversa com a santa, e também o propalado poder curativo do ar e da escassa água do riacho que passava no fundo do vale e que atravessava algumas plantações e currais de gado.

Voltou também com algum dinheiro para comprar uma batina nova, sapatos e chapéu eclesiástico, e também uma sela nova e mais confortável para o seu cavalo.

Era preciso, agora, definir um nome para a santa e conseguir um milagre, ou de preferência três, para que se iniciasse o processo de homologação das aparições e da santidade do local, assim como a igreja já reconhecia Lourdes, na França, Fátima, em Portugal, Aparecida, em São Paulo, e tantos outros mais.

Alguém às portas da morte deveria tomar um pouco da água do riacho no alto da serra, pedir uma graça e se recuperar, pensou o bispo.

Em uma semana o senhor bispo conseguiu um voluntario, um cidadão com a barriga inchada e sinais de cirrose alcoólica avançada, e o fez tomar da água do riacho da serra que atravessava plantações e currais de gado. O coitado morreu de diarréia dois dias depois, fazendo o bispo suspeitar de que a água não servia, pelo menos, para cirrose alcoólica nem para andaço. Mas, talvez servisse para reumatismo, uma doença muito comum em locais frios e úmidos no inverno.

Levando a coisa mais a sério, foi o senhor bispo diocesano, que tinha reumatismo, quem resolveu ir discretamente a Anus Mundi e passar pessoalmente uns dias no alto da serra bem perto do local da aparição nordestina de Nossa Senhora a três crianças piauienses, Raimundo, Severina e Maria, em uma casa até onde se conseguia chegar a cavalo e cujo local Sua Excia. Reverendíssima denominou de Cova do Pé da Serra. A santa tornou-se, inevitavelmente, Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra.

A viagem a cavalo serra acima o deixou cansado no primeiro dia e o reumatismo piorou; no segundo dia sugeriram a ele que tomasse da água do riacho, coisa que ele fez, mas depois de mandar ferver a água, evaporando, talvez, os seus fluidos etéreos curativos: também não funcionou. No terceiro dia o bispo concluiu que nas habilidades específicas daquela santa anusmundense não estava a cura do reumatismo, desceu a serra a cavalo e voltou para a sede da sua diocese para pensar.

Foi aí que os pretensos índios, que moravam lá por perto há muito mais tempo, disseram na feira de Anus Mundi que as pessoas lá na serra tinham pouca tosse e asma, provocando um grande fluxo de romeiros asmáticos ao alto as serra para experimentar a cura, agora também orientada pelo pagé da tribo que dava um chá complementar de ervas secretas aos seus pacientes.

Passaram também os índios a cobrar uma “taxinha” de trânsito pelo seu território aos que desejavam chegar até o tal local de aparição da santa, e não se contentavam em ficar somente na parte alguns metros mais baixa do terreno onde moravam os índios e trabalhava o pagé.

De imediato, caiu sensivelmente o movimento de asmáticos na farmácia de Anus Mundi e no consultório do doutor, indo os dois, o farmacêutico e o médico, junto com o padre local conversar com o prefeito para que estudassem uma solução mais empresarial para a mina de ouro que tinham achado  na cidade e que agora os índios estavam criando dificuldades para que fosse devidamente explorada.

A muito desejada solução economicamente conciliatória chegou rápido: a igreja ia emitir um decreto papal “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis”, trazendo o local das aparições para fora da área do pedágio dos índios; o médico ia fazer uma palestra no cinema sobre os perigos para a saúde ao se tomar água do riacho da serra; as crianças viriam ver e conversar com Nossa Senhora da Cova do Pé da Serra no novo local, que ia ter estrada calçada com pedras e onde os mais dotados podiam até chegar de carro de praça; o prefeito ia mandar construir uma imensa imagem da santa com as três crianças ajoelhadas batendo papo com ela; e iam pensar também em como construir um hotel na cidade que fosse mais atraente aos romeiros que vinham de fora do que a antiga Pousada da Rodagem, que também funcionava como um motel primordial.

Para refinar a decoração do novo local das aparições, o prefeito contratou um caro escritório de arquitetura e uma construtora de Teresina para projetar e construir as novas instalações para a sua santa, incluindo uma fonte de água tratada, levada até lá em latas no lombo de burros e que, quando posta a funcionar quando chegavam romeiros de fora, não matava ninguém de diarréia.

Os pais das crianças também ficaram com o seu quinhão: os meninos foram alfabetizados e autografavam os livros com as suas biografias, e a loja de souvenires vendia santinhos, fitas, terços e medalhas (todas com a inscrição “Ad Revisionem Locus Miracoli Mater Dei Anusmundensis” impressa na periferia em torno da imagem da santa da Cova do Pé da Serra.

Na época do São João havia festas no local e é até possível que o nome de “Forró de Pé de Serra” tenha surgido por lá.

No frigir… os capitalistas e a igreja combateram mesmo o comunismo ateu e acabaram o negócio dos índios.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

Um deserto e as surpreendentes linhas de Nazca

Sugestão inicial de Leila: era hora de conhecer as linhas de Nazca. Um passeio deveras cansativo – é verdade – mas definitivamente recomendável àqueles que não nutrem tendências suicidas ou homicidas, ao enfrentar longas viagens de ônibus; bem como aos capazes de suportar manobras bruscas de um pequeno avião.

Pois bem. Embarcamos em um ônibus, às 3 horas da manhã, em Lima. Oito horas depois, estávamos em nosso destino. Embora eu tenha uma absoluta facilidade para dormir em viagens, inclusive quando sou o condutor, despertei aos primeiros raios do sol e não mais repousei.

Quem está a imaginar que a viagem foi a redenção de todas as transgressões terrenas – algo parecido com Recife/Juazeiro do Norte, Expresso Guanabara – esqueça! Além do confortável ônibus, a perfeição da estrada não nos fez títeres de incorreções asfálticas.

O deserto ao sul do Peru é simplesmente impressionante, notadamente pela proximidade do pacífico. As imensas dunas de areia clara, cortadas apenas pelo tapete rodoviário, são muito bonitas. Do nada é possível extrair beleza, afinal.

Chocante são as dispersas, diminutas e pobres aglomerações habitacionais às margens da estrada. Não foi possível desvendar do que aquele povo sobrevivia. Eram conjuntos de quinze, não mais do que vinte, casas próximas; um bar, evidentemente; e muita propaganda de Keiko Fujimori.

Impressionante também é Ica! No meio do deserto, surge uma cidade cheia de contrastes, às margens do rio homônimo. Por um lado, condomínios verdes, condôminos brancos e caríssimos carros; por outro, índios em motonetas que transportam, além do motorista, duas pessoas em um banco traseiro improvisado.

O tempo não permitiu que conhecêssemos, por outro lado, o oásis de Ica, conhecido por Huacachina. Um pequeno povoado surgido às margens de um lago natural ainda no deserto.

Oásis de Huacachina

Chegamos em Nazca. Apesar de termos reservado, por telefone, o voo para o meio dia, esperamos três horas para embarcarmos na pequena aeronave, que, além do piloto e do copiloto, comportava quatro passageiros. Justificaram o descaso sob o argumento de que os outros dois passageiros se atrasaram. Infelizmente, por mais que retrucássemos, não tínhamos poder de barganha. Em favor deles, existiam 16 horas de viagem para um único propósito. Restava esperar…

Chegaram os outros dois passageiros. Dois garotos asiáticos, não mais de 24 anos de idade, aparentemente um casal, ambos com camisa de Michael Jackson. Nada simpáticos. Na verdade, qualquer gesto de cortesia dificilmente seria por nós interpretado, em virtude da espera que motivaram.

Hora do passeio. Devo confessar que hesitei, de imediato, quando observei o tamanho dos pneus do avião. Lembraram-me as rodas plásticas do meu triciclo da infância. Tive duas certezas: a gravidade triunfaria e a máxima popular “Pra descer todo Santo ajuda” não se aplicaria na situação.

Meios de transporte assemelhados na memória, segundo o autor

Diante do receio, Leila retrucou: “Se respeite, homem!” Era o momento ideal de demonstrar a estirpe viril de um implacável homem paraibano. “Me respeita, mulher! E eu sou menino?! Vamo simbora!”.

Decolamos, finalmente.

O piloto fazia questão de apresentar as linhas para os dois lados de janelas, para tanto manobrando bruscamente o teco-teco, enquanto o copiloto auxiliava na identificação dos geoglifos.

Cada identificação entusiasmava, notadamente a dos animais. Eu, particularmente, me surpreendi ainda mais com as imensas e perfeitas figuras geométricas rasgadas no solo, em regra, triângulos, trapézios e retângulos.

Ao pousarmos, conversamos sobre a origem das linhas. Acabamos por não nos convencer se foi obra do povo Nazca, de extraterrestres ou empreendimento turístico do governo peruano. Não importava. Tínhamos uma única certeza… compensou esperar.


O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

Um mercado, outra iguaria e a identidade de um povo.

De início, um sincero pedido de desculpas ao editor do blog. Problemas de conexão e algumas turbulências retardaram, em muito, a pontualidade dos textos.

Continuemos…

Ainda em Cusco, dispomos-nos a fazer rafting. Como desconheço algum termo em português que traduza a expressão, chamarei de insanidade, afinal, percorrer um arredio rio, sobre um bote inflável, ao alvedrio de frias correntezas, não me pareceu um sinal de inteligência. Fomos, mesmo assim, e gostamos muito do feito, pois vislumbramos belíssimas paisagens.

Para realizarmos a proeza, viajamos de carro, com mais dois guias, a um povoado próximo – que infelizmente não recordo o nome – onde tomamos café-da-manhã, em um mercado popular.


O mercado era muito parecido com as feiras livres que eu estava acostumado a visitar, geralmente, aos domingos, em Campina Grande. Tinha de tudo! Como fala um querido amigo, só não tinha o que estava faltando, o resto sobrava!

Tecidos, confecções, artesanato, especiarias, carne de variados tipos e curiosas espécies de milhos e batatas. Para mim, uma maravilha diante da diversidade desconhecida. Sequer hesitei ante o convite de um dos guias para experimentar outra iguaria… sopa de crânio de cordeiro.


Era um caldo ralo, picante, com pequenas batatas submersas e uma saborosa carne. Para nossa sorte, Leila – ao se deparar com parte da mandíbula do ovino em meu prato e diante dos primeiros indícios de náusea – foi caminhar pelo mercado e registrou as imagens que ilustram essas linhas.

Os frequentadores do mercado eram pessoas simples – pobres talvez, miseráveis jamais – em sua maioria agricultores e/ou pastores. Todos, sem exceção, silenciosos – ótimo sinal de educação – e gentis. Uma gentileza serena e sorridente, realçada por roupas coloridas. Gritaria não havia, caixas de som a estuprar tímpanos muito menos. Simpatia, afinal, não precisa vir acompanhada com barulho.


Retornamos a Cusco. Na cidade, além dos turistas, os índios se destacam. Todos os nossos guias eram cusquenhos, quéchuas conhecedores da história e orgulhosos do que foram e, principalmente, do que são. A estatura mediana, o formato triangular e as faces vermelhas são motivos de altivez, sem deselegância. E os cabelos?! Como são belos os cabelos daquele povo! Deixaria qualquer madame da avenida Paulista indignada com o brilho natural dos fios.

A identificação chama a atenção e conduz à lembrança de uma unidade cultural a que não pertencemos. Não pertencer não nos torna melhores ou piores, torna-nos apenas diferentes. O problema e o sinal maior de arrogância é desconhecer a identidade e se julgar cidadão do mundo, por fazer compras esporadicamente, em estabelecimentos sem tributação.

Uma jovem guia cusquenha falou com orgulho, mais uma vez, do seu povo. – Somos vencedores da altitude e da ganancia e, ainda por cima, somos belos. Esta cor e estas bochechas rosadas não se encontram em todo lugar, brincou. – Alguma pergunta? Alguma dúvida? Meu número de telefone?! Sou solteira, disse ela!

Arrancou, assim, o sorriso de todos e se despediu, alertando, subliminarmente, que precisamos conhecer quem somos, verdadeiramente.

Precisamos de 60 Rafales e outros tantos Scalp nucleares, além de 10 submarinos. Ou, a Bomba Atômica, para ser claro.

O discurso do desarmamento no galinheiro alheio é meio de roubar-lhe as galinhas. Nesse assunto – como geralmente nas coisas sérias de vida – vale o tudo ou nada. O contrário é hipocrisia e moralismo de escravos, de jornal das oito da noite. Ou seja, coisa que pressupõe superioridades morais que não existem nas relações internacionais.

Com relação à detenção de armamentos nucleares, pouco não é diferente de tudo. Para o mundo, é indiferente que um, dois ou mil países detenham armas nucleares, pois os riscos são os mesmos. Diferença haveria se nenhum  as detivesse: essa é a verdade despida dos mil-e-um acessórios que existem para estupidificar a discussão.

A pergunta óbvia que esclarece o raciocínio é a seguinte: por que eu quero que você não tenha bombas atômicas, embora queira eu tê-las? Porque eu quero mandar em você, roubar-lhe e ser árbitro final de suas decisões.

Mas eu digo que você não pode tê-las porque elas só estão seguras comigo. Por que essa idéia obtém tantos adeptos, a repeti-la como a um frase mágica? Porque é a idéia mais tola e falsa e, precisamente por isso, a mais apta a ser maioritariamente seguida.

Embora canse e não atraia atenções, um pouquinho de lógica vem a calhar. Se alguém, ou mais de um, têm bombas em quantidades suficientes para dar cabo do mundo, não há qualquer sentido em afirmar-se que a segurança mundial diminui se outros mais as tiverem.  O elemento principal, que deve ser apontado como qualquer obviedade deve, é a quantidade suficiente para acabar com tudo. Pronto, eis o risco, o número mágico; depois disso, o absurdo.

Para manter-me honesto comigo mesmo devo dizer que haveria também diferença se apenas um as detivesse. Sim, porque bastaria a ele ameaçar usa-las. Mas essa suposição é inútil, por duas razões: a primeira, de cunho fático. Ora, as armas nucleares são possuídas por mais de um, então, volta-se ao caso de a única solução ser ninguém as deter.

A segunda razão é que um mundo em que só um as detivesse seria a dominação absoluta e a redução dos restantes à mais aviltante subserviência e miséria. Algo difícil de afirmar-se preferível a qualquer outra situação, até mesmo ao fim total.

A bomba é das coisas mais geniais que já se inventaram, ao lado da penicilina e dos opiáceos sintéticos. Ela é a maximização do poder de negociação, com os menores custos. Ela é, inclusive, o que torna as escaladas militares o contra-senso de despesas absurdas que se vê. Prova que o complexo industrial-militar – na terminologia brilhante de Eisenhower – é um sistema auto-alimentado e sem sentido.

Depois das 100 ogivas e dos mísseis para leva-las, quem precisa de biliões de dólares gastos em navios, metralhadoras, soldados e outras coisas mais deste gênero? Quem precisa são os militares e os industriais que vivem em perfeita simbiose para roubar o dinheiro do povo pagador de impostos.

Os países roubam-se e isso não constitui qualquer novidade. Rouba quem pode e é roubado quem não pode evitar e tem o que ser levado. Depois do assalto consumado, o aparelho de propaganda vem fazer seu serviço de convencer os roubados de que nada aconteceu, de que se trata de livre mercado, meritocracia e outras tolices mais.

Sempre roubou-se e sempre se produziram discursos para justificar os roubos. Uns roubam para civilizar, outros roubam para converter a uma fé. Alguns não são roubados porque conseguiram evita-lo.

O Brasil é um país extremamente atraente para ser roubado. Hoje, nem tanto o roubo da força de trabalho, que essa é melhor de roubar-se na Ásia. Mas, quanto a recursos naturais, é bastante atrativo. Trata-se de óleo combustível, minérios sólidos metálicos e não-metálicos, água e soja, basicamente, embora não apenas.

Coisas que, não à toa, a propaganda vem dizendo que serão menos necessárias, por conta do avanço tecnológico. Discurso para tentar convencer os roubados de que seus recursos valem ou valerão pouco. Mentiras, enfim, porque não há tecnologias que permitam a redução significativa da demanda por tais recursos.

Mentiras rasteiras que seduzem pseudo-modernos com discursos pueris como, por exemplo, o do carro elétrico. Ora, a energia que move o carro elétrico não sai do nada, ela sai da queima de alguma coisa que alguém deixou de comer, das quedas d´água, da fissão do urânio…

A única forma de equalizar a produção e o consumo de recursos naturais e, consequentemente, a necessidade de rouba-los, seria o que ninguém quer falar: o empobrecimento de quem está mais rico. Claro que acontecerá, mas haverá percalços.

Para não sermos roubados, mais imediatamente falando de óleo, precisamos da bomba. Claro que precisamos dos seus vetores, os aviões, mísseis e submarinos, mas isso é o mais fácil. Precisamos da bomba, a despeito de tratados de imposição de subserviência – como o de não proliferação nuclear.

Coisas de pequena monta, bastando lembrar o exemplo israelense, que revela a desimportância de ONUs da vida e suas resoluções, reiteradamente descumpridas por Israel sem quaisquer consequências pois, afinal, Israel tem a bomba e a ONU que se f… A imprensa cuida bem de demonizar os outros por tolices e fazer esquecer quem descumpre os papéis da ONU, com sucess0 e, provavelmente, com a anuência da própria ONU.

Há um risco? Sim, há. De termos a bomba e passarmos a querer, além de evitar o roubo dos nossos recursos, roubar os dos outros. Há precedentes disso? Muitos, basta lembrar o que fazem todos que as detém em nome de sua segurança.

Risco foi tê-las inventado…

Alegoria da decadência norte-americana.

Texto originalmente publicado aqui, em 27 de abril de 2010, sob o despropositado nome de A morte de uma estrela.

Dois processos de morte distinguem-se, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

O que vi no Peru. Por Ubiratan Câmara.

A cosmopolita Cusco.

Antes de partirmos para Cusco, permitam-me compartilhar que a vontade primeira de conhecer o Peru partiu de saudosos encontros, em Campina Grande, nos quais fatalmente, cedo ou tarde, bons amigos de sobriedade questionável cantarolavam, junto com Mercedes Sosa, Acercate Cholito. Começou daí meu fascínio pelo país.

Pois bem. De Lima, partimos para Cusco, pela Peruvian Airlines, fornecedora dos bilhetes mais baratos, comprados pouco antecipadamente, no Brasil. Viagem confortável, convém registrar, uma vez que o velho 737 preservou nossa integridade física, diferentemente dos novos que por aqui operam, equipados com seus ínfimos e violadores espaços entre as poltronas.

Vale mencionar, ainda, que – inobstante a brevidade do voo e o pouco valor pago, comparado com o preço dos bilhetes brasileiros, em semelhantes condições de procura – nos ofereceram um lanche bastante razoável. Não que comida em avião seja primordial, não o é. Paga-se pelo deslocamento, afinal. Mas, ter a impressão de não ser tratado como carga, e pagar menos por isso, é desconcertante.

Chegamos a Cusco, enfim. Do alto, não parece a cidade acolher população superior a trezentos mil habitantes, segundo as duvidosas informações das enciclopédias virtuais. Engano meu, a cidade não é pequena.

Embora temido, o soroche – indesejado efeito da altitude – não nos vitimou, em momento algum da viagem. Nem mesmo logo após a chegada, em que me aventurei de imediato no prato típico da região, o porquinho cuy, embora alertado de que não deveria exagerar na alimentação. Eu, que como tudo que voa, nada ou rasteja, devorei e aprovei a iguaria, sozinho, já que Leila sequer a tocou. Resistências gastronômicas femininas…

O Cuy

Hora de caminhar. Topografia acidentada, ruas estreitas e – embora a colonização hispânica tenha muito destruído – resquícios incas estão em todos os lugares. Destes, o que mais impressionou na cidade foi o templo dedicado ao sol, Qorikancha, que teve seu ouro levado pela ganância dos colonizadores, mas preservou a beleza e precisão dos imensos encaixes de pedras.

O Qorikancha

Do tempo colonial, armações de madeira e sacadas de entalhes delicados, além de lindas igrejas.

A Catedral de Cusco

Andando um pouco mais, modernos restaurantes e lojas, inúmeras agências de turismo e a razão de ser dos empreendimentos: muitos – mas muitos mesmo – turistas! De dar na canela, como falamos em Campina. Assediados a cada passo para conhecer algum sítio arqueológico, cambiar ou apreciar um artesanato.

Gente do mundo inteiro, notadamente europeus e asiáticos, com suas agressivas fotográficas, que fizeram meu presente de aniversário parecer a Rolleyflex de Tom Jobim. (Uma pausa, pois Leila rebate implacável e violentamente minha ingratidão).

Um tarde foi suficiente para aproveitar passeios incríveis nos arredores de Cusco. Ruínas imponentes, ousados sistemas hidráulicos e geladas mesas de pedra para mumificação retratam a habilidade dos antigos moradores. Esses incas eram uns cientistas mesmo. Risos.

À noite, foi a oportunidade para conhecermos alguns, dos muitos, bares da cidade. Pessoas de todos os lugares do planeta a se divertir e tomar porres de pisco, a cachaça dos peruanos. Com o avançar da hora e a sobriedade abalada, era hora de se recolher.

Dividimos um táxi com uma simpática jovem colombiana. Subitamente, recordei os amigos e comecei a cantarolar Acercate Cholito. A colega colombiana, de pronto e inusitadamente, acompanhou. Se o taxista gostou, eu não sei! Mas ele já devia estar acostumado com turistas cantores, de afinação duvidosa.

Despedimos-nos com risos e uma sensação curiosa de pertencimento…

Itália percebe que não pode chantagear o Brasil no caso Battisti.

Não utilizo a palavra chantagem, no título, para escandalizar com bobagem terminológica. Utilizo-a porque é precisamente de chantagens várias que são feitas as relações políticas internacionais, embora sob disfarces e com aparência de submissão a regras invioláveis.

O caso é que o governo brasileiro concedeu asilo a Cesare Battisti e, consequentemente, negou a extradição dele, pedida pela Itália. Esse pequeno texto não visa a expor posição sobre o caso, por isso limito-me a dizer que me parece errada a posição do governo brasileiro, porque reputo comuns os crimes de Battisti.

O que chama atenção, abstraindo-se do caso em si, é que a Itália percebeu a inviabilidade de chantagear comercialmente o Brasil, como forma de pressionar pela extradição, ou de retaliar pela não concessão dela. Ou seja, o Brasil tem um peso econômico que não recomenda a travagem de relações comerciais ou a imposição de barreiras fiscais.

Esse é o fato novo com relação ao Brasil: seu peso econômico mundial e os reflexos nas relações com os estados soberanos. Por um lado, o fato parece ser melhor percebido fora do país que dentro dele. Assim, excepto por alguns grupos e pelo governo,  a maioria do povo está alheia a essa entrada no protagonismo internacional.

Tal alheamento é resultante de falta de educação formal, de falta de tempo para ocupar-se com coisas outras além da sobrevivência e da massiva desinformação promovida por setores da imprensa que jogam pela tese da dependência.

O problema da idéia da dependência é que ela propõe a impossibilidade de rompimento desse tipo de relação, ou seja, é uma tese que se retro alimenta. Assim, é mais uma proposição política que uma teoria científica das relações internacionais.

O país necessita compreender bem a situação que ocupa e ocupará cada vez mais, para não ser aquilo que os argentinos diziam e ainda dizem: um elefante desgovernado. Precisa compreender quais vantagens pode retirar do seu crescente peso econômico e político internacional, para não subestimar, nem superestimar a realidade.

O papagaio de Jeremias. Episódio da vida anusmundense.

Por Leo de Picos.


Jeremias nasceu e criou-se em Anus Mundi. Era filho do sacristão da matriz de São Sebastião, chamado José Teobaldo, conhecido pela alcunha de Zé Catolé. Zé Catolé foi pai de onze filhos, sendo quatro mulheres e sete homens. Jeremias foi o sexto dessa linha de produção.

Todos podem imaginar a dificuldade de se criar tanta gente com o salário de sacristão, mas cada filho que ficava taludinho ia procurando ou inventando uma viração para ajudar nas despesas. Jeremias desde menino despontava como o mais esperto, inteligente e criativo.

Era afilhado do Padre Almiro, que foi quem lhe deu esse nome. Chegou à igreja para o batismo alguns dias após ter nascido e seus pais não sabiam que nome lhe atribuir. Geralmente os batizados celebrados pelo Padre Almiro eram feitos no atacado. O vigário só atendia individualmente casos especiais, como crianças que estivessem doentes e prestes a morrer ou então aquelas filhas de pessoas influentes da cidade e de bom poder aquisitivo.  Até porque a igreja vive das doações de seus bons e generosos fieis.

Na hora da cerimônia, Padre Almiro vira-se prá Zé Catolé e D. Prazeres, sua mulher, e pergunta o nome da criança e quem são os padrinhos. A resposta veio na bucha: nem tem nome nem padrinho! O senhor, padre, é quem vai dar o nome e ser o padrinho. Padre Almiro não estranhava porque essa era uma prática comum nos dias de batizado. Vira-se prá dona Paixão, sua ajudante, e manda olhar na relação se ainda tem algum nome disponível. A resposta foi negativa. Todos já estavam riscados. Vira-se mais uma vez prá Zé Catolé e pergunta: que dia nasceu?  O pai teve dúvidas mas dona Prazeres respondeu de pronto:  primeiro de maio! A ajudante, dona Paixão recorre à folhinha do santo do dia e diz ao padre que primeiro de maio é dia de São Jeremias. Pronto, é Jeremias!

Jeremias criou-se dentro dos ensinamentos da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Foi coroinha de Padre Almiro, aprendeu o ofício de sineiro.

Era um menino batalhador.  Adorava ganhar dinheiro. Apesar de conviver dentro da igreja era temperamental ao extremo. Não guardava desaforo, era portador de uma pequena gagueira e saía na tapa com quem fizesse qualquer tipo de gozação. Não sei se coincidência ou coisas de Deus, mas dizem que São Jeremias também era gago.

Na adolescência, fugiu num circo que havia armado na cidade. Passou vários anos desaparecido. Um belo dia volta prá cidade aquele sujeito forte de tamanho avantajado, casado com uma cabocla baiana chamada Jurema, que ele conheceu nas suas andanças. Vem com uma atividade que não tem nada a ver com suas raízes religiosas: PAI DE SANTO!

De início, muita gente estranhou, mas logo foram se acostumando.

Jeremias, com seu espírito empreendedor e pensando se dar bem na vida,  montou seu terreiro numa localidade chamada Caldeirão do Periquito, que ficava próxima à entrada da cidade.

O tempo foi passando, o negócio foi dando certo e sua fama de grande Xangozeiro foi se espalhando; vinha gente de toda a região e de lugares distantes, até de outros estados, na busca de cura para os seus males e soluções para os seus problemas.

No altar de seus orixás, existiam Caboclos, Pretos-Velhos, Exus, Pombas-Gira, Zé Pilintra e outros.

Em seu templo, Jeremias criava um papagaio, muito falador, que era seu grande companheiro. O animal assistia aquelas manifestações e se mantinha calado, numa postura eticamente correta para um animal, o que agradava ainda mais ao seu dono. De vez em quando o papagaio, mesmo calado, apresentava alguns sintomas de que estava recebendo alguma entidade do além e era preciso uma ação imediata de Jeremias, que fazia uma pequena sessão de desobsessão e depois  colocava um pequeno galho de arruda em baixo de sua asa esquerda… e a coisa se acalmava.

Heleno Fogueteiro gostava de tomar umas cachaças e fazer arruaças quando tava com o “quengo cheio da maldita”. Um belo dia, depois de passar o tempo todo enchendo a cara, juntou-se com mais dois iguais e resolveu alugar um carro na praça e ir até o terreiro de Jeremias acabar com o xangô.

O salão lotado, chega Heleno, vai até o altar puxa a toalha, derruba todas as imagens e as oferendas ali  colocadas. A mais danificada foi a de Zé Pilintra, que teve a cabeça decepada na queda.

Jeremias, imediatamente, agarra-se com Heleno e seus companheiros e  começa uma briga. Os amigos???  Quando notaram que a barra era pesada pegaram o beco e deixaram Heleno sozinho nas garras do xangozeiro. Nessas alturas o salão fica vazio. Corre todo mundo. O quebra-quebra era grande. Depois de muito tempo, após escutar o barulho de um tiro, Euzébio, o motorista que levou Heleno, toma coragem e consegue entrar no salão e tirá-lo das garras de Jeremias.

O tiro tinha sido disparado pelo Pai de Santo mas pegou de raspão. Heleno levou uma surra tão grande que ficou desacordado por algum tempo, até Euzébio pegá-lo pelo ombro e levá-lo até o carro. Na saída passaram defronte ao papagaio, que foi a única testemunha a assistir toda aquela cena. Nessa hora, o papagaio vendo Heleno todo arrebentado, o sangue escorrendo pela cara, como que querendo enaltecer a vitória do seu amo, diz em bom português:

“Fu…fu…fudeu-se, na volta de Je…Je…Jeremias e de Zé Pi…Pi…Pilintra não tem moleza!!!”

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