Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Um texto (Page 1 of 10)

Da Mediocracia ao Nada

A religião que dita a verdade estabeleceu que todo pensamento autônomo é conspiracionismo.

Por outro lado, conspiracionismo é anátema e, assim, enseja execração e banimento.

Estes dois mandamentos, seguidos à risca, significam que a acusação de conspiracionismo foi elevada à gravidade que tem a de anti-semitismo.

A verdade da nova religião forma-se por consenso de especialistas e confirmação da imprensa corporativa. A este consenso de opiniões chama-se ciência.

Esta religião diabólica não admite a objeção de que se baseia em consenso de opiniões. Esta fé pretende-se baseada em investigações e modelos infalíveis. É a verdade pura e indiscutível, portanto.

Os sacerdotes agem por meio da chantagem do coletivo, a mais vil que se pode conceber. Tudo que pedem dos fiéis é em nome do bem comum que eles estabeleceram qual é.

Nisto assemelha-se à colonização cultural feita pelo ocidente por meio dos supostos valores universais, que não são universais, mas ocidentais.

O rebanho comporta-se adequadamente, conforme o esperado pelos sacerdotes. O rebanho está, há muito, condicionado pela lógica do espetáculo. Foi treinado para nada compreender.

O rebanho foi ensinado que o grande despertar será por meio das pautas de costumes e ambiental. Por meio destas pautas, o rebanho operará sua própria aniquilação, contudo.

A sociedade que a nova religião deseja não comporta a maior parte do rebanho, logo a maior parte do rebanho deve perecer desejando o perecimento.

Brasil a caminho de ser Líbia.

A regressão lenta e gradual da hegemonia estadunidense é o processo mais perigoso que já viveu a humanidade. São comuns as comparações entre os impérios romano e estadunidense, no que têm de paralelismos nas suas criações, apogeus e fases de declínio, mas o que se prefigura agora é diferente, para além das diferenças óbvias que há entre processos históricos separados por dois mil anos.

A exacerbação retórica contra os países malvados e perigosos, a russofobia que não teme o ridículo profundo, a provocação irracional e inútil à China, a multiplicação de ações de desestabilização política de países antes soberanos, tudo isso são sintomas do declínio. Não alinho entre os sintomas as múltiplas guerras, porque estas são inerciais e funcionais aos interesses do complexo industrial-militar; são, enfim, bons negócios.

As evidências são indisfarçáveis. As mais significativas delas são a histeria e o primarismo retórico, coisas de quem está com pressa e algum medo. O controle do médio oriente, que já foi absoluto, apresenta fraturas, depois que a tentativa de inviabilizar a Síria como país soberano fracassou. A rearticulação de forças por meio da aliança israelo-saudita não parece muito tendente ao sucesso.

A tentativa de sabotar as rotas comerciais clássicas entre a Europa e a China, por meio da guerra no Afeganistão, está em vias de exaurir-se e provar-se afinal inútil. O ensaio de tentativa de desestabilizar o sudeste asiático, para criar dificuldades para a China, será travado no nascedouro pela China. Afinal, esta última tem condições de reação e inicia os movimentos do que é a maior ameaça à hegemonia estadunidense: a compra de óleo por outros meios que não o dólar norte-americano.

O dólar norte-americano é meio de troca e reserva de valor universal. Enfim, uma moeda que é também um ativo, porque lastreada em petróleo e urânio enriquecido. Isso permite aos EUA criarem dinheiro muito à vontade e exportarem inflação, ao tempo em que importam bens e serviços. É a causa mais remota da situação peculiar dos EUA, que podem ser ricos mesmo quando perdem capacidade industrial e sustentam imensos défices.

Seria estúpido e irresponsável tentar prever datas, ou um cronograma definido das etapas deste processo. Contudo, é claro que a capacidade dos EUA de intervir e desestabilizar países e regiões, para instaurar o caos funcional à dominação, reduz-se muito nas áreas principais que são a Ásia, as estepes e o oriente próximo. As articulações entre China, Rússia e, em menor intensidade, destes com o Irã e pontualmente com outros países, minaram o poder de interferência na Ásia.

Que a Ásia, mais especificamente o sudeste asiático, seria esfera de influência da China, é algo trivial. Porém, que uma tentativa de destruição de um país, como na Síria, por meio de guerra por procuração financiada pela Arábia Saudita, tenha dado errado, é algo novo. O mesmo pode-se dizer da tentativa de destruição do Iraque que, ao contrário das expectativas iniciais, conseguiu reorganizar-se e alinhar-se ao Irã.

Essa modalidade de intervenção que se tem feito é, por um lado, a mais selvagem possível e, por outro, a mais rentável para os dois setores mais poderosos do império: as finanças e a indústria bélica. Para atacar um país soberano rico em recursos minerais – ou estrategicamente localizado – inicia-se por fomentar revoltas internas que, para qualquer observador atento, não fazem qualquer sentido, dada a desproporção entre a realidade e do que se reclama. Agentes infiltrados dão conta desta tarefa de alimentar com dinheiro e narrativa pronta as revoltas difusas e histéricas.

Chega-se a um ponto onde as fraturas sociais e de grupos étnicos ou de interesses são irreversíveis. É a fase da guerra civil, aberta ou fragmentada e localizada. Neste ponto, a imprensa corporativa, articulada intimamente aos interesses imperiais, começa a repercutir seletivamente episódios de violência, com mentiras se for necessário. A imprensa corporativa não tem quaisquer escrúpulos em mentir, isto deve ser repetido sempre que possível.

O conflito será alimentado com dinheiro e armas e com mercenários, se for necessário. Nesta altura, as estruturas sociais, estatais e de serviços privados estarão em ruínas, a magnificar a precariedade das vidas das pessoas. Deste ponto em diante, duas opções apresentam-se: 1 – deixar o processo degenerativo seguir adiante com os elementos originais desencadeadores, até que o antes país torne-se um nada; ou 2 – intervir militarmente com o nobre propósito de cessar a carnificina que o próprio interventor criou.

A escolha entre as duas linhas finais de atuação acima mencionadas dependerá de muitas variáveis, mas a mais importante certamente é ter ou não o país alvo grandes riquezas minerais. Caso tenha, é provável que sofra o ataque militar e depois experimente a ocupação por contingentes mercenários. Isto é muito lucrativo para o imperialismo, pois destrói um país e paga a guerra contra ele com os próprios recursos dele.

É algo esplêndido, como um produtor de bens ou serviços conseguir criar a própria demanda, como obrigar o outro a consumir o que não quis a esgotar suas economias. E, depois, ainda se empresta dinheiro a juros para o arruinado reerguer-se um pouco, para arruinar-se novamente mais à frente. Convenhamos, é um negócio muito bom.

Pois bem, o Brasil é riquíssimo em recursos minerais, nomeadamente hidrocarbonetos e minérios de ferro e bauxita, além de água doce. O declínio da influência e da capacidade de desestabilizar dos EUA, na Ásia e no oriente próximo fará com que se voltem ao quintal de sempre: a América do Sul. Aqui, ainda contam com o servilismo das classes alta e média alta colonizadas culturalmente e sofredoras de um patético complexo de inferioridade.

O processo de destruição de soberania e alienação de riquezas nacionais, que começou com o afastamento da presidenta Dilma, a partir de um compromisso entre a imprensa e as corporações estatais judiciais e com a participação relevante das classes médias, não culminará em situação estável e pacífica. Mesmo que não culmine com um contragolpe ou uma revolução popular, é certo que paz e estabilidade não são situações prováveis nos curto e médio prazos.

A degradação das condições de vida das classes média baixa, baixa e dos totalmente excluídos será muito rápida. É pueril achar-se que as insatisfações resultantes serão canalizadas de forma organizada por tal ou qual vertente político-ideológica. O controle social por meio de discurso mediático, neste estágio, será ineficaz. O controle terá de ser mediante violência física, a cargos das polícias e de serviços privados de segurança. Essa modalidade, porém, tem a desvantagem de retroalimentar a violência…

A partir de um certo de nível de conflituosidade e de instabilidade política – que provavelmente assumirá a forma de quedas sucessivas de governos e luta brutal entre as corporações públicas pelos recursos minguantes – estão dadas as condições para a intervenção do império. Convém apontar que, para o império, o caos é funcional ao saque de riquezas e este saque é mais vantajoso que um mercado consumidor mais ou menos organizado e pujante.

Após se terem apropriado das estruturas de produção de petróleo e gás, de extração de minérios, de produção de grãos e de acumulação de águas os agentes do império terão de proteger militarmente estas estruturas. Inicia-se a exceção formal e material à soberania neste ponto, com as autorizações de atividades bélicas abertas em solo nacional, ou por meio de mercenários de segurança privada.

Os três setores principais do império ganham enormemente com esta configuração. O complexo industrial militar vende seus equipamentos e seus serviços, o setor petroleiro saqueia o país parasitado sem lhe pagar nada e o setor financeiro oferece crédito a todos, bem como serviços de lavagem de dinheiros. E o pais destruído paga tudo, ou seja, paga pela própria destruição, e precipita-se no caos.

Este não é um cenário tão remoto para o Brasil, como gostam de pensar os que não anteciparam nada do que hoje vive-se…

 

 

 

 

A China não lê o Levítico.

Deixe-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importarei com quem redige as leis. Mayer Amschel Rothschild.

Minorias tributárias da cultura greco-judaica precisam socorrer-se da naturalização da história, ou seja, do moralismo, para justificar seu domínio e os prejuízos imensos que decorrem para os restantes 99%. Toda estratégia de domínio baseada em prescrições axiomáticas faz lembrar o terceiro livro do Pentateuco, esteio deste crime que é a naturalização do histórico.

Por isto, não basta a vastíssima maioria das pessoas no dito mundo ocidental estar sob jugo de meia dúzia, são obrigados a escutarem e acreditarem na naturalidade desta situação. Claro que somente acreditam porque a indústria cultural suprimiu das massas o acesso a qualquer exemplo histórico que pudesse mostrar-lhe a contradita. Basta uma ocorrência diferente do que se prescreve como natural para se perceber a inexistência de natureza…

O plano das grandes casas bancárias para o ocidente é o colapso. A China não é conceitualmente o obstáculo a isso, é, antes e diferentemente, a única hipótese de salvação para quem perceber o plano e quiser escapar de suas consequências.

O problema da usura não reside na imoralidade dos juros, que isso é questão de preço. Reside no emprestar o que não existe, criar e suprimir dinheiro, fazer e desfazer inflação. Não foi por vontade de fazer efeito que Mayer Rothschil disse o que vai em epígrafe a este texto; ele afirmou sem pejos onde está o poder.

Essa gente capturou a criação de dinheiro no mundo depois da derrota do Corso, quando apropriaram-se do Banco da Inglaterra por dívidas. Daí até 1944, as coisas mudaram pouco e, em verdade, pode-se dizer que de 44 em diante a mudança foi até sutil, porque consistiu na troca da libra inglesa pelo dólar norte-americano.

1971 vê uma mudança bem mais intensa, com o abandono do ouro e a vinculação do dólar norte-americano ao petróleo. Havia uma cláusula implícita no acordo celebrado entre Nixon e os príncipes sauditas, que veio a ser descumprida. Cabia ao governo norte-americano conter a fúria desestabilizadora da cúpula do sionismo. Não foram capazes disto porque aqueles a serem contidos minimamente infiltraram-se no governo norte-americano.

Bastaram duas tentativas de trocar óleo por euros ou ouro para as bombas caírem impiedosas entre Tigre e Eufrates e na Tripolitânia. Podia ser o fim do petrodólar, o que foi adiado com as intervenções bélicas, que não cuidaram nem de preservar estruturas produtivas. Era mais importante destruir e cessar a migração do dólar, mesmo que a produção fosse interrompida e os preços elevados.

Não tiveram condições, todavia, de impedir o Irã de sair do petrodólar, nem tiveram estupidez suficiente para iniciar o ataque militar à Pérsia. Claro que isto não está descartado, porque tudo que depende de níveis maiores de estupidez pode estar na iminência de acontecer. Acontece, porém, que há reais alternativas ao petrodólar, e mais estáveis.

Um yuan ou rublo, ou a combinação dos dois, lastreado em ouro é algo sempre cogitado. Não me parece que seja o caminho mais provável, mas deve haver algum suporte em ouro, mesmo. Não é à toa que a China vem comprando o que estiver à disposição no mundo e vem refundindo suas barras no padrão de um quilograma.

Essas coisas são de conhecimento de quem as procurar saber e, assim, é óbvio que, tanto os governos, quanto as casas bancárias estão perfeitamente a par do que se passa, do que se passará e de quem sofrerá as consequências. Tempos muito turbulentos esperam os povos norte-americano e europeu, porque são o centro emanador do plano e não mostram sinais de quererem evitar o caos.

As periferias destes centros ocidentais sofrerão ainda mais com a desarticulação do petrodólar, exceto se tiverem condições internas de aliarem-se a grupos sólidos econômica e militarmente, que não estejam interessados no caos. Os BRICS são o exemplo evidente, assim como é evidente porque querem desestabilizar a Rússia e o Brasil.

A tentativa de desestabilizar a Rússia é escancarada e tola. A provocação bélica, todos sabem, é apenas provocação. A escalada das sanções econômicas derrubará a Europa antes que caia a Rússia, porque a dependência daquela em relação a esta é grande, e não apenas em energia. O mercado russo é fundamental para as exportações européias, desde alimentos a automóveis.

Sob quaisquer perspectivas lógicas, a investida europeia contra a Rússia é incompreensível ou compreensível como uma grande, imensa, tolice. Claro que é uma imensa tolice para os interesses de 99% das pessoas, mas não necessariamente para o 01%. Depois de uma lobotomia, alguém pode acreditar nas preocupações com a Ucrânia, mas antes disso é difícil.

400 milhões de pessoas não fogem de um lugar para outro, em poucos instantes. Mas, 10 famílias e centenas de bilhões de euros fogem muito facilmente, porque a mobilidade capitais, este veneno, adotou-se por quase toda parte. Assim, pouco importam os destinos individuais de milhões de pessoas; na verdade, isso nunca foi importante.

Em tempos mais auspiciosos, esta situação poderia servir para testar os limites da democracia formal e convidá-la a funcionar e cumprir seus intuitos declarados. Todavia, não há porque esperar isto, tal é a anestesia dos povos europeus, alimentados por memória da abundância, perda da memória da pobreza, abundância residual atual, espetáculo, dívidas e falta de educação formal clássica. Não haverá reação e voltar as costas à Rússia piorará as coisas.

A articulação dos países dos BRICs, notadamente com a constituição de fundos que não incluam promissórias norte-americanas, será essencial para a estabilidade não apenas dos integrantes deste grupo, mas alternativa real ao colapso do petrodólar. Felizmente, a China não se guia pelo Levítico, nem tem casas bancárias tradicionais. Faz e fará qualquer negócio, com a vantagem de não querer  conquistar os corações e mentes dos 99% com discurso moralista e espetáculo vulgar.

Mesmo que se tente o retorno ao dólar baseado em ouro, será tardio e insuficiente. Não há ouro para isso e não convém uma moeda de transação cara, mesmo que para a função de reserva de valor isso seja interessante. Se este processo estivesse a cargo de gente comum – no sentido de não serem banqueiros ocidentais – seria conduzido para um pouso mais ou menos suave, com a manutenção parcial do petrodólar.

Mas, é conduzido da pior forma possível, uma vez que a cúpula bancária ocidental ganha com o caos.

Urinei num pneu quente…

Padre Vasconcelos defendia os interesses da Santa Madre Igreja Católica no sertão nordestino, lá pelos anos de 1950. Era o segundo de cinco filhos de Dona Clementina Vasconcelos, que enviuvara dois anos depois de parir o último dos rebentos.

Dona Clementina tinha um caráter forte, daquela força das coisas práticas. Ou seja, não era o capricho, a curiosidade e o mandonismo vazio das senhoras vazias. Era, em resumo, proprietária de terras e negociava com gados, algodão, tratava com os rendeiros, tudo com bom êxito.

O irmão mais velho do reverendo tivera a sorte ou o azar de ir estudar na Faculdade de Direito do Recife, numa época em que nem quinze anos de getulismo tinham conseguido abater a fatuidade e a vontade de ler em alemão. Acontece que o mais velho irmão Vasconcelos era, em Recife, um semi-rural e semi-rico, ou seja, casaria com a filha de algum desembargador.

O padre, evidentemente, fora ao seminário e tivera a sorte de não ter sido o de Olinda. Quer dizer que Pe. Vasconcelos era autenticamente padre, rural, fazendeiro e conhecedor de muitas frases em latim. Conservou-se nas suas terras e sucedeu à mãe no mando da fazenda.

Quando a viúva morreu, Padre Vasconcelos tomou seu lugar, com mais prestígio ainda, posto que o regime das duas dedicações não representava qualquer escândalo. Os irmãos e irmãs pouco interessavam-se pelos negócios de bois, vacas e rendas e o padre, por sua vez, pouco lembrava-se desses irmãos.

Quem o visse e com ele conversasse pela primeira vez acharia o reverendo meio escasso de espiritualidade e deveras prático. Talvez, só e só prático. Nada obstante, não podia ser acusado de negligente com suas obrigações de dizer missa, baptizar, confessar, dar extrema-unção, encomendar corpos, enfim, toda a rotina burocrática de um cura.

Padre Vasconcelos, sem o saber de conceito enunciado, era ortodoxo e andava à margem do preconceito romano do celibato. Todavia, não adotava o modelo consagrado dos grandes párocos. Antes, comportava-se, nisto de prevaricações, mais como um caixeiro viajante.

Essa ginecofilia diversificada não o punha em apuros espirituais, pois aprendera que a mudança quantitativa, para fazer diferença qualitativa, tinha que ser muita. Assim, um pouco de Aristóteles e muito de hipocrisia absolviam o homem e a disciplina ritual mantinha o padre. Ele sabia que metade de seus colegas elogiavam a lei de Deus de maneiras diversas e mais enérgicas que com o celibato.

Um belo dia, Pe. Vasconcelos manda um moleque da fazenda convidar o Dr. Teles para almoçarem um cabrito assado, no dia seguinte. O médico não estranhou o convite, porque não era malicioso, nem esses convites eram raros. Apenas eram mais rituais e presos a datas certas, porque o padre e o médico não tinham mesmo muitos assuntos em comum; não eram amigos nem inimigos.

O reverendo mandou o único sujeito da fazenda além dele capaz de guiar o jipe Willys apanhar o Dr. Teles na cidade, lá pelas dez e meia. Se ele mesmo fosse no jipe, seria uma deferência que todos estranhariam, porque Vasconcelos viajava muito, mas sempre só.

Teles chega na fazenda e é recebido com aperto de mão e a opção de um copinho de aguardente ou de licor de jabuticaba. Aceita a aguardente – boa para abrir o apetite – e senta-se confortavelmente no alpendre ensombrado, afrouxa um pouco o nó da gravata e pergunta como vai o anfitrião.

O padre nunca era loquaz nem calado demais. Tinha certa habilidade para ajustar o discurso às circunstâncias e aos circunstantes, sobretudo se as coisas girassem em torno a assuntos práticos, preços de propriedades, chuvas, barragens, gados. Com o Dr. Teles as coisas necessariamente girariam torno a estas trivialidades ou a qualquer coisa ligada à profissão do médico.

Para Teles, não parecia que o convite fosse alguma consulta disfarçada, porque nestas ocasiões as perguntas eram diretas, embora eufemísticas. Então, emendou a perguntar pelos cabritos, bodes, carneiros, bois, se os barreiros tinham água e coisas do tipo, ligadas ao mundo daquela ruralidade lenta.

O reverendo parecia disperso, mesmo que os assuntos fossem os seus e que tivesse sido ele a convidar o médico. Não se atinha à conversa, não bebia da aguardente mais que o suficiente para molhar os lábios, nem ansiava iniciar o almoço.

Já era quase meio-dia e não se podia mais adiar a comilança. O cabrito no forno de lenha e algo que faz até o cronista – distante cronológica e geograficamente – salivar enquanto escreve. Teles afrouxou um pouco mais a gravata, afastou um tantinho as bordas do colarinho, provavelmente por gentileza com as gotas de suor que por ali escorreriam…

Curiosamente, Padre Vasconcelos comia pouco e devagar, a ponto de chamar atenção do médico. Mas, como não se tratasse de encontro de íntimos e o código de conduta do tempo e do local não impusesse aos convivas a tagarelice que se impunha às mulheres, o Dr. Teles ficou-se pelos sabores do cabrito e pelos silêncios do padre.

Havia, não se sabe bem porquê, uma garrafa de vinho do Porto na casa da fazenda, coisa rara. Na altura em que a cozinheira ofereceu doce de caju, uma xícara de café forte e um cálice de Porto, Teles achou-se muito bem aquinhoado de hospitalidade num dia que não era santo, nem cívico.

Para a sobremesa, o café e o Porto, o anfitrião resolveu que passariam para a varanda alpendrada e mandou a cozinheira para dentro. Era melhor, porque corria um vento na varanda e o calor na sala estava opressivo mesmo se só tivessem comido uma salada de folhas.

Pelas tantas, o padre resolve-se a falar: olhe, doutor, queria lhe perguntar uma coisa. É bobagem, mas…

Diga lá, Padre Vasconcelos, que é que há?

É bobagem Teles, bobagem mesmo. Mas, é que tá um certo queimor incômodo aqui pelas partes, não sabe?

Sim, tá queimando quando urina, é Vasconcelos?

Pois é isso mesmo, Teles, e não é engraçado? Isso começou por uma besteira que fiz.

Sei como é…

Pois foi, doutor, tava um dia desses viajando no jipe, fazia um calor danado, daquele que não se sabe de onde vem o vento quente. Daí, parei pra urinar e foi no pneu do jipe, no pneu quente… Acho que a quentura do pneu subiu e ficou essa ardência… Foi burrice mijar no danado do pneu quente…

Padre, quando o senhor saiu do seminário, um sujeito de apelido Fleming, que acho que era escocês, sei lá, já tinha resolvido esse negócio.

Sim?

Olhe, passe lá em minha casa amanhã e vá com uma garrafa de licor, que o povo pensa que é um presente seu pra mim. E olhe, pode mijar até no motor do jipe, mas aquelas meninas da rua do açougue velho, padre, aquelas ali é melhor dar a comunhão só na missa mesmo…

Estar com a chuva, com o frio, com o vento e com saudades que se tornam adultas.

Muito estranhamente, não havia tido ocasião de perceber que o guarda-chuvas é um aerofólio perfeitamente submetido às leis de Bernoulli.

A sorte ou a natureza pouparam-me estranhamente em ocasiões anteriores que me podiam ter feito lembrar o princípio baptizado com o nome deste francês ou suíço, matemático ou físico, que enunciou aquilo que faria voar os aviões e funcionar os carburadores.

Em certas condições – que não cabem aqui enunciar, nem estariam nas minhas capacidades – um fluido a movimentar-se mais rapidamente numa face dum plano implica pressão menor que na face de menor velocidade de deslocação.

Ontem, percebi que um guarda-chuvas é aerofólio tanto quanto a asa de avião. A pressão embaixo é maior que em cima, porque o vento em cima flui mais rápido. Daí que eles se põem pelo avesso, empenam os raios e perdem-se definitivamente.

O raro é que em sete, oito, nove, sei lá, dez vezes que me expus à chuva e vento constantes, diários, isso não tenha ocorrido. Pois ocorreu ontem e achei-me a rir, mesmo que ficasse encharcado de água fria. Só podia ter-se dado em Braga, comigo.

O engraçado é que a cena é comuníssima, mas a mim nunca ocorrera, certamente por favor dos deuses, que não me queriam rapidamente experimentado nas coisas mais comuns.

Há tempo, eles já me haviam levado ao chão, numa queda patética, depois de escorregar numa laranja, mas pouparam-me do mais comum, que devia acontecer depois. Não ouso questionar as razões deles.

Seria mais tolo que sou se achasse que fevereiro seria sem chuva e sem ventos. Tolo a ponto de não conseguir emendar três palavras seria se supusesse não estar frio. Nessas tolices não incorri.

Precisava encharcar as pernas dos joelhos para baixo, e inclusive os pés, daquela água gélida que impregna as calças e as meias como um aerosol lento. Dá uma impaciência tremenda, obriga a caminhar de cabeça baixa, a cuidar de não meter o guarda-chuvas na cara das pessoas que cruzam.

O verão de agosto não me traria aqui, exceto se por alguma obrigação ou premência. Nem me traria, nem se me trouxesse seria mais agradável que esse desagradável molhar-se e demorar-se a secar.

Isso tem nome em português: saudades. Mas, elas se foram tornando mais maduras e mais puramente saudades que necessidades. A primeira vez que se atende e sucumbe à necessidade, é o mergulho na confusão de sensações que aparentemente catalisam-se em euforia. As saudades imediatas são necessidades, paixões.

Amadurecem e- e convém dizer que o amadurecimento das saudades nada tem com o do saudoso – a perder o caráter duma paixão que sofre o afastamento. Solidifica-se como tudo que do quente passa ao frio.

O amadurecimento começa por revelar-se nos detalhes e as saudades fracionam-se, ficam detalhistas, específicas, exigentes mais de algumas coisas e mais frouxas com outras.

Maduras não são tristes como são as recentes, as apaixonadas. Sempre permanecem algo felinas, naquilo de ir ali e acolá para ver se certos lugares estão da mesma forma. Isso é praticamente invencível, não é poético, não é mais a esta altura melancólico; isto é, simplesmente.

 As apaixonadas, recentes, matam-se em dias poucos. As mais distantes em dias poucos confundem. Não se sabe se os dias são poucos, suficientes ou muitos. O caso é particular e leva a crer que há saudades compostas, que talvez haja experiências compostas de mais de uma saudade individual.

Não faltavam apenas conversas com interlocutores tão inteligentes como estimados, Braga, chuva, frio e vento e as pedras do chão. Faltava talvez experimentar essa revisita com ausência velha e nova que deram saudades futuras; peço desculpas pelo paradoxo, mas haverá quem o perceba na sua total extensão.

Os tempos de maturação das percepções são quase todos diferentes, embora o subjetivismo de superfície se esforce para convencer do contrário. Há que se esforçar contra a superficialidade para que as saudades não se tornem na componente de uma personagem.

Esse texto é para ser compreendido.

JFK: as duas hipóteses plausíveis.

Os fatos históricos ditos relevantes podem ter por trás acidentes e aleatoriedades, mas isso é raro como causas principais.  Lee Oswald é hipótese para o assassinato de John Kennedy digna do nível mental da sociedade de massas triunfante. Ele, nas suas duas variantes, é pueril demais.

Como agente a serviço do comunismo patrocinado pela URSS, seria preciso admitir que fosse capaz de violar as regras da física e que a URSS fosse dirigida por imbecis. Como agente da CIA a serviço desta e da máfia, seria necessário admitir a violação das regras físicas e aceitar a conspiração na sua pior forma: aquela que diz ser possível um alcaguete de polícia fazer algo sem motivações e condições.

A bem da concisão, deixo Oswald de lado, porque é tolo considerar possíveis os três tiros rapidíssimos de longe e porque todos que contam sabem que foram ao menos dois tiros de frente, algo que os marselheses saberiam fazer bem. Ademais, quem se dispunha a tal empreitada sabia ser muito mais seguro contratar gente competente do submundo de Marselha que um vai com o vento, informante dos serviços secretos. E, ao depois, todos seriam mesmo eliminados, como ocorreu com Lucien Sarti no México.

Uma trilha segura é procurar os que se beneficiariam com a coisa. O mais evidente é Lyndon Johnson, que herdou a presidência. Mas, há um menos evidente, que aponta para uma hipótese também plausível, não como o responsável e mandante, mas como um elo para a ação de outros descontentes: Bob Kennedy.

Joseph Patrick Kennedy era um irlandês mafioso e riquíssimo. Seguiu a trilha dos mafiosos riquíssimos e inteligentes, ou seja, visou a esquentar e branquear, tanto o dinheiro, como a linhagem. Tratava-se de abandonar o estigma de mafioso e ele teve bastante sucesso nisso. Primeiro, ele estancou os vínculos mafiosos nele e não os transmitiu aos filhos; segundo, ele mandou os filhos lutarem de verdade na II grande guerra, e perdeu o primogênito e quase perde o segundo.

Embora mafioso, irlandês e católico, ele fora embaixador em Londres e mandara os filhos para a guerra, pelos EUA. Tinha mais que dinheiro, portanto, e tinha muita ambição. Ele construiu a carreira de John, seguindo o cursus honorum à risca e ao custo de muito dinheiro e favores. Valia a pena, porque o sobrevivente era inteligente e simpático, o que é a mistura da sagacidade com a tolerância, temperados pela necessidade e a falta de escrúpulos.

É invulgar que o patriarca tenha percebido as circunstâncias do tempo e planeado incursões em áreas que não seriam comuns. Percebeu que macartismo e radicalismos eram infrutíferos e comprou até um prêmio Pulitzer para John Kennedy, dando-lhe acesso ao campo dos liberais letrados, tolerantes e sedutores, mesmo que o livro fosse escrito por algum escritor fantasma.

A gente descendente de Joseph Kennedy não se assemelhava minimamente ao protótipo do magnata rude do Texas, nem do político semi-alfabetizado dos dois partidos irmãos.

Acontece que para eleger John Kennedy em 1960, Joseph obteve dinheiro, acordos e votos com a máfia do país todo e principalmente de Chicago de de Las Vegas. O pessoal da teoria da conspiração oficial, geralmente a maior imbecilidade disponível, costuma dizer que Sinatra intermediava esses negócios, o que não faz qualquer sentido. Sinatra era empregado da máfia e bem mais novo que o velho Kennedy, que lidava diretamente com os outros chefes, porque ele mesmo fora um deles.

Bob Kennedy, procurador-geral, inventou de acossar a máfia dos jogos e tráfico de entorpecentes e lavagem de dinheiro e venda ilegal de armamentos. E foi mais além que uma simples farsa ou encenação para satisfazer os moralizantes que gostam de conspirações. Parecia que acreditava naquilo, o que deve levar o analista a muitas dúvidas, porque o pai dele o deve ter advertido da insensatez.

Em 1962, falava-se muito de máfia nos EUA, mas nada que recomendasse como estratégia de propaganda política uma pressão real sobre ela, principalmente por um procurador-geral de presidente eleito com a ajuda dela. Ou Bob foi burro, ou ingênuo, o que dá quase no mesmo. Talvez não tenha sido burro e tivesse desenhado tudo para dar em nada, mas esses cálculos sofisticados podem não ser percebidos bem pelos que são obrigados a darem esclarecimentos em comissões inquisitoriais.

Bobby, com a morte de John, tornou-se candidato natural para 1968, mas a história provou que ele errou no cálculo, se de cálculo tratou-se. Pode ter sido a máfia tradicional, aliada com os psicopatas anti-castristas, que mandou matar John, por causa da perseguição do procurador-geral. Minha curiosidade atem-se a quais teriam sido suas razões: ingenuidade, erro de cálculo ou ignorância do alcance dos acordos que seu pai fizera para eleger seu irmão mais velho.

Mesmo que ele tenha calculado tudo corretamente e, consequentemente, apostado na possibilidade de restabelecer o acordo inicial de Joseph, tornou-se inconfiável e foi morto. Claro que não foi morto por outro imbecil agindo por conta própria e motivos insondáveis em Los Angeles, em 1968.

Outra hipótese passa pelo que Israel começava a fazer em Dimona. Com mais história que os católicos, e muito mais que os irlandeses católicos, Israel queria a bomba atômica, porque o sionismo é tudo menos burro. Se a fossem fazer somente com esforços próprios, levariam dez anos. Com a ajuda dos franceses, esse tempo se abreviaria em cinco anos, mas isso para quatro ou cinco ogivas.

No final das contas, tanto os franceses, quanto os norte-americanos, ajudaram decisivamente. Ocorre que Kennedy opôs-se a vender a bomba a Israel. Não sei se por anacronismo, fidelidade a Ialta, medo, sabedoria, preocupação em manter a detenção da bomba apenas pelo grupo que já a tinha, ou seja lá o que for. Certo é que ele tinha poucas ou talvez nenhuma ligação com o lobby que viria a ser o mais importante nos EUA, o sionista.

Era muito arriscado ter pouca fidelidade a este grupo de interesses que viria a ter não apenas o dinheiro, mas as mentes no país dominante do mundo. Estar ligado à famosa máfia, anacrônica, de jogos e tráfico de entorpecentes e armas começava a ser muito pouco na época. Essa gente tinha dinheiro, mas dinheiro pouco relativamente a quem tinha dinheiro muitíssimo e o afã religioso de ter um império a serviço da terra prometida em termos talmúdicos.

Qualquer das duas hipóteses é plausível e ambas complementares, na medida em que os grupos interessados ganharam ambos. Sem receios de parecer ingênuo, creio que perderam os EUA, porque o presidente que não hesitava em ordenar golpes de Estado e consentir em eliminações físicas, foi expurgado para se por em seu lugar coisas piores.

Pode ter sido muita burrice de Bobby ou a reação previsível de um lobby que já era forte, mas ainda não se arriscara à eliminação.

A viagem mágica e misteriosa.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

A inocência pairava no ar. O que importava era ser famoso. Fazer sucesso. Por isso o momento era de pedir por favor para me agradar e agradar a todos, escrever carta com declarações de amor, gritar e remexer. E assim continuou por algum tempo, mês a mês, um dia após o outro, passando por algumas noites de alguns dias difíceis, até chegar o momento de gritar por socorro, pois estava precisando de alguém.

A partir desse momento, uma mudança se inicia. Comecei a questionar sobre várias coisas, até sobre nossa própria capacidade. Experiências novas. E fui me perguntando, sentado num quarto de madeira norueguesa, se pertencemos a algum lugar, se temos ponto de vista, se sabemos nossa missão, se sabemos para onde iremos. Todas as pessoas solitárias, de onde elas vêm? Por que o padre escreve o seu sermão se ninguém o ouvirá? E tudo ficou tão diferente, mais misterioso, mais reflexivo, mais introspectivo, até que descubro que todas as coisas gentis que ela disse não fazem mais sentido, aqui, ali e em qualquer lugar. Eu disse: você está me fazendo sentir como se eu nunca tivesse nascido. Passo, então, a desligar minha mente, entregar-me ao vazio, flutuar correnteza abaixo, perceber que isso é não estar morrendo, renunciar a todos os pensamentos. Estou apenas dormindo. É nesse momento que chego ao auge da criatividade, impulsionado por substâncias e experiências novas. Muitas visões e alucinações que me inspiram. Muitos galopes soberanos.

Decido criar uma banda fictícia para fazer apresentações por aí. E assim inicio o show. Acomodem-se e deixem a noite passar. Vocês acham que estou cantando desafinado? Com uma pequena ajuda dos meus amigos eu consigo. O ácido lisérgico me domina e começo e me imaginar em um barco num rio, com árvores de tangerina e céus de marmelada. Lembro-me do tempo da minha escola. Como eu me aborrecia. Muitas regras para serem seguidas. Mas agora está melhorando o tempo todo. Tudo está melhorando. Algo começa a bloquear minha mente. É um buraco onde a chuva entra. Quando minha mente está viajando, começo a pintar um quarto de uma maneira colorida. Não quero que isso bloqueie minha mente. Preciso de mais substância. Chego ao êxtase da inspiração. É quando tenho a visão de que, após escrever um bilhete, a garota está indo embora. Adquiriu independência. Descobriu que a diversão é a única coisa que o dinheiro não compra. E encontra seu parceiro. Em seguida, entro num circo, as famílias assistindo um show de acrobacias. Vejo tudo rodando, parece uma ciranda musical. Está garantido um ótimo espetáculo para todos. Começo a ter inspiração indiana. Perceber que tudo está dentro de nós mesmos, que as pessoas ganham o mundo e perdem suas almas. Começo a me ver velho, com sessenta e quatro anos, junto de meus netos, tentando conquistar a adorável policial. Até a convidei para um chá. Durmo e me acordo numa fazenda dando bom dia a todos. A fazenda está cheia de capim mágico. Os animais se misturam. Pessoas correndo em volta da cidade que está escurecendo. A nossa banda fictícia começa a se despedir. É quando leio um jornal e chego a um orgasmo musical incrível. Isso acontece um dia na vida.

Começo, então, a turnê mágica e misteriosa. Passo por um tolo na montanha. Ele permanece só, errático, sorrindo. Sentado num floco de cereal, misturando-se com sacerdotisas pornográficas e comendo creme de matéria amarelada. Não parecia se preocupar com nada. Nada parecia real. Fecho os olhos e percebo que viver é fácil, principalmente quando se está, para sempre, num campo de morango.

Fico disperso e um tanto quanto revoltado, mas mantenho a unidade, não é querida Prudence? Tenha cuidada. Toco minha guitarra e percebo que ela chora gentilmente. Quero ter a felicidade mas ela parece ser uma arma quente. Decido ir a uma festa. É o nosso aniversário. Depois da festa vem a tristeza. Pela manhã acordo com vontade de morrer. Anoitece e continuo com o mesmo sentimento. Muita confusão na minha mente, até que me despeço e digo “boa noite”.

Pela manhã as coisas parecem mais alegres. Tudo muito colorido, todo mundo sorrindo e indago se todos nós vivemos num submarino amarelo. Uma mulher passa na rua carregando um buldog, bem agitado e interessantíssimo, querendo falar comigo. Atrás dela vem um velho. Parece ser chato. Ele tem cabelos até o joelho. Volto minha atenção na mulher. Percebo algo nela que me atrai. Parece ser tão pesada, mas eu a quero. Oh, querida, não me deixe. Veja que o sol está chegando, porque o céu está tão azul. Curta seus sonhos dourados, bela adorável. É o fim.

Não, antes, como arremedo, deixar tudo como está: um sentimento que não posso esconder, numa longa e sinuosa estrada a percorrer…

Arroz de pato.

Este prato tão minhoto é das coisas que me despertam imensas saudades bracarenses. Acho delicioso o arroz de pato que se come frequentemente em Braga, sendo os melhores nos restaurantes e cafés mais simples, principalmente quando é um dos pratos do dia. A carne do pato é saborosa e seu único problema é ser meio dura, o que demanda muita cocção.

Comentei, na semana passada, com uma colega de trabalho com quem converso bastante sobre culinária e que é muito gentil, sobre minha dificuldade de encontrar pato nesta cidade e disse-lhe que visitas a todos os mercados médios e grandes tinham resultado no encontro de nenhum pato! Ela deve ter ficado com isso na cabeça, pois trouxe-me ontem um pato inteiro!

Aconteceu desta senhora minha colega de trabalho viajar até uma pequena cidade distante, no sertão, para comparecer àlgumas audiências de julgamento. Na ocasião, ela perguntou a um e outro se era possível comprar um pato por lá. Disseram-lhe que havia uma senhora fulana, na zona rural, que criava patos. Pois ela dispôs-se a ir até ao sítio desta senhora e comprar o pato, que foi lá morto, e trazê-lo para cá. Além disso, tratou de depenar o pato em casa e mo entregou morto, depenado e sem a maioria das tripas.

Que preciso agradecer tamanha gentileza é óbvio, menos óbvio é como o farei, mas isso é outra estória.

Tomei o pato, ontem à noite, cortei-o em alguns pedaços, retirei-lhe parte da pele, deitei sal, noz moscada moída, sumo de um limão e um pouquito de vinagre branco e mandei-o à geladeira, descansar.

Busquei receitas de arroz de pato e uma delas interessou-me. Basicamente, segui esta tal receita com uma modificação. A receita sugeria refogar em panela de pressão os pedaços do pato, com alho picado e cebola e, depois de dourado, deitar na panela dois litros de água já a ferver e cozinhar por vinte e cinco minutos. Apenas deixei de fazer o refogado e de dourar os pedaços do pato na panela de pressão.

Como os pedaços da ave estavam marinando desde ontem, coloquei-os na panela de pressão diretamente para cocção, com água e meia cebola inteira, sem previamente refogar e dourá-lo no azeite. Mesmo que panela de pressão não me agrade muito, no caso do pato é recomendável para amolecer a carne.

Deixei lá por quarenta minutos e desliguei o fogo. Retirei os pedaços de pato e os desfiei com uma faca, pois estavam já bastante moles e separavam-se facilmente dos ossos. Entretanto, pus três xícaras de arroz integral, um pouco de bacon cortado em quadrados e um pouco de linguiça fumada cortada em quadrados numa caçarola grande e deitei lá a água da cocção do pato, ainda bastante quente. Isso tudo ficou no fogo baixo, a ferver, por quinze minutos.

Então, pus na panela o pato desfiado, para cozer nos últimos cinco minutos juntamente com o arroz, que já se impregnara na água do pato.

O resultado foi divino e matou pequena porção das minhas saudades culinárias minhotas!

A senzala defende a casa-grande.

O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.

Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.

Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.

É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…

Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.

A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.

Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.

Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.

Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica.

Se está acabando el partido, vamos tres a cero, nos ganan los brasileños.

En el salón de mi casa veo la indignación de mis compañeros ante la derrota anunciada. Ya no hay remedio: perdemos. Me cuentan cómo se ha desarrollado el juego, hablan de suerte y desgracia, al parecer, las “canarinhas están en una buena racha. Los escucho por educación, sin inmutarme porque el fútbol no me importa nada. Después de todas las críticas y juramentos de mis compatriotas, enrabietados con la victoria del gran gigante del Sur, pronuncio la frase que da título a este texto:

“Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica”.

—¡No digas eso! —me imploran— pero ya es tarde, mi sentencia cae sobre el murmullo de una sala de estar que ya no quiere ser.

Poco después hago otro comentario mucho más desafortunado:

“Mañana empiezo los trámites para solicitar un pasaporte azul”.

Mis amigos me miran con una mezcla de euforia y decepción.

No me he unido al enemigo, hace tiempo que formo parte de otro equipo,

de otro esquema sociocultural, de otra orilla, que no es la misma que me vio nacer un día.

Yo ya soy del Sur, extranjera, adoptada, inmigrante retornada.

Hace más de un año que volví a España y, desde entonces, el desarraigo

de una “desubicación” exacerbada recorre mi sangre y aviva mis ganas de huir

a cualquier otra parte, lejos de aquí y dentro o cerca de las fronteras del verde Brasil.

Nos ganan, sí, pero no ahora, hace ya tiempo que perdemos todos los enfrentamientos con patrias americanas por goleada. Perdimos hoy, pero también ayer y tal vez mañana.

El deporte, que antes nos beneficiaba, llenando de medallas y gritos de triunfo

un país minado por las deudas, los impagos y los desahucios,

ahora nos expone ante nuestras carencias y temores.

Hoy nos acusa de una mala gestión en el campo de cualquier juego,

mientras Bárcenas se muere de miedo frente a un extraño compañero de celda y

el ciudadano de a pie revienta de rabia frente a sus iguales en el viciado ambiente de todos nuestros bares.

Nos vamos a pique en todas las riberas, el barco no se hunde: se entierra.

No nos ahogamos: nos sepultan.

No nos marchamos: nos expulsan.

No nos morimos: nos marchitan.

El fracaso no lo creemos: no los inculcan.

Um texto de M. E. M. C.

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