Três livros seguidos de Foucault – o último ainda não terminado – afastaram-me dos prazeres da ficção e da narrativa não ensaística. Eis que uma conversa com Bebé e Cacá fez-me conhecer a obra do título. Depois que eles falaram do livro, fiquei realmente interessado, porque tudo indicava ser bastante interessante, e é. Comprei o livro e o li em dois dias, que a prosa de Ivonaldo Guedes é agradável e bem fluente e o assunto bem escolhido.
Apressei-me a classificar o livro como romance histórico, embora melhor dissesse romance sobre uma hipótese histórica. A hipótese, nesse caso, é tão plausível quanto a história oficial, o que abriu um campo vasto para a ficção, aproveitado com talento pelo autor. Ele fez arte, propriamente, porque recriou o que pode ou poderia ter sido.
O autor não é pretensioso, mas é audacioso e obtém bom resultado da sua audácia. Ele é personagem do livro! Não é muito fácil o autor inserir-se no livro, porque as plausibilidades históricas de várias versões não funcionam para a historicidade efetiva do autor. Enfim, é complicado fazer ficção consigo próprio, exceto se não for ficção…
O caso é que Lampião foi o cangaceiro mais famoso dentre vários deles, atuantes em um período de aproximadamente cento e trinta anos, nos sertões do nordeste brasileiro. Virgulino Ferreira da Silva atuou na última etapa do cangaço e, talvez por isso mesmo, tenha chamado tanta atenção.
O cangaço é coisa que daria ensejo a páginas e páginas escritas, mas aqui não é o lugar e essas páginas já existem. Basicamente, foi um tipo de banditismo circunscrito a certa área geográfica. Dizer banditismo, por um lado, é bastante limitador, porque as formas de reação ao cangaço eram-lhe semelhantes em quase tudo.
A base cultural encontra-se nos códigos de honra de raízes ibéricas. As bases históricas, em um Brasil ainda predominantemente rural que via o empobrecimento de alguns grupos acontecer dentro da mesma classe social. Quer dizer, a certos declínios econômicos imediatos não correspondiam necessariamente os mesmos declínios sociais. A tudo isso, junta-se a existência do Estado como mero símbolo e agente repressor a serviço de muito poucos.
É interessante tentar dissociar um pouco o econômico do social, ao menos em um corte temporal pequeno, para ver o descompasso das duas escalas a gerar conflitos. No Brasil de finais do século XIX, a sociedade ainda era culturalmente rural, com pequenas exceções.
A exclusão de alguns indivíduos de uma classe social leva mais tempo que a exclusão destes indivíduos de uma classe econômica. E a noção de pertencimento à mesma e única situação persiste nas pessoas forçadas à mobilidade social. No ambiente rural a exclusão social é rápida, por decesso econômico, mas a percepção e aceitação delas é mais demorada, porque a base cultural é muito homogénea.
Imagine-se que dois fazendeiros são vizinhos confrontantes e que um deles vê seus negócios minguarem bastante, seus bois e plantações morrerem. Se o vizinho mantiver-se próspero, vai comprar as terras do falido e submetê-lo e à sua família e aos seus agregados à vassalagem. Uns vão pôr outros – de origens sociais semelhantes – em posições de senhores e vassalos.
Tais posições não se aceitam facilmente quando os novos vassalos comungam do mesmo código de honra e valores. Um fazendeiro rico não viola a filha de um ex-fazendeiro reduzido a rendeiro pobre como violava a filha de um escravo. Não cobra uma dívida de um homem que um dia foi da mesma classe, econômica e socialmente, da mesma forma que a cobraria de um antigo rendeiro seu. Não com as mesmas consequências.
Isso, além de mais inúmeros fatores, está na base do cangaço nos sertões do Nordeste. Além do mais evidente, outra coisa chama a atenção. Os grupos de cangaceiros eram hierarquizados e basicamente eram-no a partir de velhos esquemas de origens sociais. Claro, havia espaço para o que hoje se chama ascensão por meritos, aferidos segundo a valentia e a fidelidade aos códigos de honra lavada com sangue.
E os mesmos modos de agir encontravam-se no cangaço e nas forças públicas que o combatiam, o que prova ser possível matar e roubar, dentro ou fora da lei. E prova, mais que isso, que matar e roubar obedeciam a leis muito próprias e não escritas.
O livro gira em volta da possibilidade de Lampião, o modelo de valentia e honorabilidade que foi execrado pela república crescentemente urbana, não ter sido abatido pela forças volantes do tenente João Bezerra, na Grota do Angico, em 1938. E, sutilmente, evidencia que pode ter sido abatido – ou pode ter fugido – por um cerco que não teve as características de coragem e tenacidade exaltadas nas versões oficias.
No livro, o Capitão Virgulino Ferreira – de patente oficial das Forças Patrióticas – escapou ao cerco do Angico, em Sergipe, e foi para o sertão da Bahia viver uma vida de fazendeiro rico, ele que tinha escondido tesouros em botijas enterradas. Teria seguido sua vida de criador de gados, confortavelmente, com outra identidade.
Um dia, precisamente o 20 de julho de 1934, ele sonhou um sonho que tinha um roçado todo morto, tudo morto pela seca, e um homem de preto, que não falava. Era o Padre Cícero que, por um lado, avisava-o de sua morte e, por outro, comunicava-lhe mais morte. Era o sinal que devia retirar-se daquela vida e dado pelo santo de quem ele era devoto. Em vários 20 de julho ele sonhou sinais importantes, comunicou-se com o Padre Cícero.
Ele teria sido vítima de uma rede de traições e covardias, ao contrário da versão consagrada do combate na Grota do Riacho Angico, e teria escapado vivo. Isso é muitíssimo plausível, pelo menos no que diz respeito à valentia e honorabilidade das forças volantes. Essas inclinações humanas são das mais constantes fontes de confusão que há.
Valentia e honra, assim absolutas, são irrealidades. Elas acontecem dinamicamente, não estrategicamente. Assim, tanto cangaceiros, como volantes, nunca se derem ao combate inutilmente, em franca desvantagem. Nunca deixaram de buscar escapar e fugir, quando isso era o óbvio, para evitar o extermínio puro e simples.
No livro, há uma deliciosa suposição – que imagino muito próxima ao que pode ter sido a realidade – de que o tenente João Bezerra, famoso vencedor do grupo de Lampião, era um frouxo, como se diz. O líder da força volante vencedora vendia armas a Lampião e conhecia seus coiteiros. Seria, basicamente, um oficial corrupto e hipócrita, a fazer um papel teatral. Teria sido levado pelas circunstâncias, mais que por vontade do combate.
A hipótese, inteligentemente levantada pelo autor, é de recurso a meios vis, indignos da valentia propagandeada pelos vitoriosos e repercutida em todas as versões de história oficial. A volante teria servido-se de uma rede de coiteiros com inclinação à delação e à traição e envenenado vários dos cangaceiros acampados no Angico.
Lampião usava seus coiteiros como atravessadores na compra daquilo que não podia obter simplesmente indo à feira e aos armazéns. E comprava carnes, leite, feijão, farinha e bebidas, basicamente. Então, um dos coiteiros foi cooptado por um suboficial da força volante e levou para o bando do Capitão Virgulino Ferreira umas garrafas de Cinzano com veneno.
Assim, na ocasião do ataque, muitos já morriam envenenados, inclusiva a esposa de Lampião, Maria Bonita. E o Capitão acabou por fugir, percebendo que não havia como resistir àquele ataque. Fugiu, foi para a Bahia, viveu de criar gados, até que em 1944, em um 20 de julho, sonhou com Antonio Silvino.
Antonio Silvino foi o nome adotado por Manoel Baptista de Morais, o cangaceiro mais conhecido, depois de Lampião. Silvino foi preso em 1914 e passou 23 anos preso no Recife, até ser indultado, em 1937. Depois de solto, Silvino veio viver em Campina Grande, na casa de uma prima. Ele morreu em 30 de julho de 1944.
Pois bem, Lampião resolveu visitar Silvino, que nunca conhecera pessoalmente. Teve ocasião ainda de conversar uma vez com ele. Na segunda vez que foi à casa simples em que Antonio Silvino vivia, encontrou já o velório do ex-cangaceiro. Lampião teria se agradado da cidade, então pujante por conta da riqueza que resultara do comércio do algodão, e decidira-se a vir morar no Planalto da Borborema.
Estabeleceu-se em Campina Grande, viveu discreta e ricamente, sob outro nome, sempre. Reuniu um grupo, que compôs uma irmandade protetora de ex-cangaceiros e de filhos e parentes de ex-cangaceiros, vítimas reais de um estigma social que se estabeleceu fortemente. Passados muitos anos, desse grupo restaram Lampião, com 97 anos, um integrante de seu bando e um soldado que fez parte da força volante do tenente João Bezerra e esteve no cerco – farsa, no livro – de Angico.
Eles pedem ao autor, personagem do livro, que escute a revelação, tome-a a termo e guarde segredo até à morte do Capitão Virgulino. Um sonho no dia 20 de julho tinha levado Lampião ao autor do livro, que encerra a obra a contar o enterro de Lampião, em Campina Grande, em 21 de julho de 1997, em sepultura simples ao lado da de Antonio Silvino, no cemitério do Monte Santo.
Esse é o livro, que vale a pena ser lido, realmente. De minha parte, espero uma sobra de tempo para ir ao Monte Santo, um dia desses, buscar a sepultura de Antonio Silvino – e não sei se esta sepultado com esse nome ou com o real – e ver quem está enterrado ao lado…
Aproveito para fazer uma sugestão a Ivonaldo Guedes, caso veja essa sugestão de leitura do seu livro, e é que leia Padre Cícero, Poder, Fé e Guerra no Sertão, de Lira Neto. Imagino que gostaria do livro.