Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 8 of 10)

Perguntas que não passam de pedidos de confirmação.

Faltam-me ânimo e tempo para algo que me agradaria bastante: escrever sobre as limitações impostas às pessoas por elas mesmas a viverem socialmente. Ou seja, para fazer aquilo que chamo psicologia social de mesa de café, um deleite para mim, mas que implica algum método, para não sair a falar muitas bobagens supostamente organizadas.

Na falta dessas coisas que o trabalho cotidiano impede, uma e outra divagação ainda é possível, ainda que dispersa, pouco profunda, feita meio às pressas, quando um fato chama a atenção. Realmente, a escravidão, ou o trabalho, por outra palavra, aprisiona e limita e ainda tem a faculdade de raramente produzir alguma utilidade real.

O caso é que pensava em como a enorme maioria das perguntas que se fazem não são perguntas. São pedidos de confirmação, feitos ao interlocutor, daquilo que o indagador afirma. Apenas a forma é de pergunta, a substância é de ordem, rejeição ou confirmação do compartilhamento de alguma opinião.

Claro que muito dessa real natureza das perguntas tem a ver com as maneiras habituais de se conduzir um diálogo. Ou seja, são formatos utilizados para tornar a conversação menos áspera e entrecortada, da mesma forma que atuam os lubrificantes nas engrenagens de algum mecanismo.

Todavia, o caráter lubrificante de algumas formas habituais não afasta a percepção de que a conversação praticamente não existe como diálogo em que as informações transitam entre pessoas e em que perguntas são exatamente isso. Não se esperam respostas, o que evidencia que não se fazem perguntas.

Isso porque acontece mais uma busca de identidade – por padrões variados – que uma busca de conhecimento ou de informação, se se preferir o segundo termo, menos abrangente.

Tive a infelicidade – sim, porque essas coisas são boas e ruins – de ter lido e gostado e prestado atenção em Nietzsche e em Ortega y Gasset. Assim, não consigo deixar de lembrar-me de passagens deles, embora não consiga cita-las de memória, nem me anime a ir agora aos livros para fazer transcrições.

O que se leu não é verdade alguma, assim isoladamente. É um ponto inicial para perceber as coisas que se vêem e que podem não ser assimiladas de maneira orgânica, sem uma modelagem, sem um desenho teórico e geral. E agora lembro-me de um dos lugares-comuns mais tolos e repetidos que existem, aquele de que não se deve generalizar. Ora, deve-se generalizar, é impositivo generalizar; não se devem esquecer as excepções, isso sim.

Uma generalização a não ser esquecida é que as pessoas são em ato muito menos do que são em potência. São limitadas por travas que somente fazem sentido ao se as considerarem coletivamente, porque individualmente e isoladamente elas são inqualificáveis nestes termos. Explico-me melhor: uma pessoa completamente isolada é só ela, sem termos de comparação e, portanto, sua realidade é sua potencialidade.

A vida social – coletiva talvez seja menos ambiguo e gerador de confusões – é o limitador mais intenso. Ela pede a homogeneização dos comportamentos e das idéias e o pedido só pode ser atendido com a padronização pelo mínimo. Essa demanda será atendida, necessariamente, a bem da coesão social e ao preço evidente da perda das potencialidades individuais.

Não se trata aqui de afirmar o individualismo, no sentido habitual em que este se entende. Trata-se de dizer que a vida social produz a limitação dos indivíduos, que se tornam cada vez mais individualistas por serem presas das limitações convencionais. O aparente paradoxo está no coletivo a produzir individualismo e indivíduos cada vez mais limitados.

Esses indivíduos não têm dúvidas, não pararam para pensar suficientemente em algo para saberem se têm dúvidas. Suas dúvidas são se suas certezas encontram-se nas cabeças dos outros da mesma forma que nas suas. A ausência de perguntas fica evidente na impossibilidade de resposta que não seja uma: a afirmação que faz o suposto perguntador.

Chega-se ao outro lado da coisa, as respostas. Ora, não há resposta válida excepto  a confirmação da afirmação que se fez com o nome de pergunta. A única coisa que o perguntador queria – e não era por ter alguma dúvida – era a confirmação do interlocutor de que participava das mesmas escassas idéias.

Portanto, o que se chama diálogo é, na imensa maioria das vezes, um jogo de confirmações e identificações. Uma questão de segurança social, ou seja, de saber quem compartilha das mesmas vulgaridades e dos mesmos preconceitos, mas disfarçada em diálogo.

É preciso identificar o diferente, para o poder rejeitar e, se necessário, combater. Isso é preciso, não o buscar saber a opinião alheia independentemente de qual ela seja. Porque a opinião alheia, como informação ou indicativo de algo a verificar, não importa minimamente. Só importa como elemento revelador de semelhança ou diferença.

As perguntas não visam a obter alguma informação que venha a subsidiar um pensamento ou mesmo a confirma-lo, mas a verificar o pertencimento a um grupo, delimitado pela aceitação de um acervo de preconceitos e pela inserção em um estrato social.

Claro que há excepções e uma delas explica-se pela má-fé, motivação tão forte quanto a ignorância ou a inércia social. A excepção  mais notável é aquela do interesse nas respostas como colheita de provas de acusação contra alguém. Nesse casos, o perguntador não quer confirmações, quer dados.

Esse desejo de obter dados tem raiz na necessidade de ter meios de chantagem, não no interesse de ampliar o campo de pensamento. Os mesmos que fazem perguntas que não o são, fazem-nas, às vezes, somente para ganhar meios de chantagem. Enfim, são duas formas a que recorrem os mesmos tipos de pessoas, aquelas cujo ser é menor que o poder ser, aquelas que se ocupam dos detalhes, os decoradores da vida que não se vive.

Sim, porque o mesmo sujeito que te pergunta, discretamente ou não, quanto tu tens e ganhas, também pergunta-te mentirosamente o que achas de uma idéia. O dado objetivo, ele quer saber para alimentar a criminosa suposição de que és criminoso, a opinião ele não quer absolutamente saber, quer apenas saber se corresponde à dele.

Quando escutas a pergunta por que não fazes assim ou assado, na verdade és indagado se fazes precisamente o que o perguntador faz. Quando escutas essa pergunta, és instado a fazer uma coisa, recebes uma ordem e um pedido de confirmação. Então, se respondes sinceramente desagradas o perguntador, mesmo que não o tenhas querido desagradar. Pronto, és maldito.

A marca da diferença. Umas palavras sobre a tacanhez social.

A marca pela diferença é atitude social. Ela precisa de indivíduos adultos – ou semi-adultos – reunidos em grupos. Adultos porque as crianças pré-púberes diferenciam em termos individuais absolutos, pouco induzidos por valorações sociais: aqui, está-se em nível ainda muito subjetivo. A evolução biológica e a sociabilização conduzem à marcação social.

O termo marca utiliza-se aqui com nítida significação de selo negativo, ou seja, marca-se alguém ou um grupo para evidenciar juízo de valor negativo e, se possível, de exclusão. Fica claro que é um dos vários mecanismos de obtenção e manutenção de poder em sociedade.

Não me parece que haja sociedades menos tendentes à marcação social que outras, até porque são constituídas da mesma matéria humana. Suas diferenças estruturais operam dentro do limite material que é a mesma constituição básica. Quer dizer, vários arranjos são possíveis com pessoas, mas todos eles limitados pela circunstância de sua constituição. Da mesma forma, podem-se fazer várias coisas de pedras, mas nada além dos limites da pedra.

É possível identificar, todavia, modelos estruturais sociais em suas várias etapas de desenvolvimento. Portanto, é possível perceber a mudança dos padrões de marcação social, até como uma espécie de maneira de datação de uma estrutura social. Claro que isso pressupõe a existência de modelos culturais mais ou menos uniformes, a caracterizarem que um grupo encontra-se em uma determinada linha civilizatória.

As diferenças, obviamente, dependem da proximidade com que se vêem os objetos. As formas de vida contemporâneas brasileira urbana e dinamarquesa urbana podem ser muito diferentes, observando-as de próximo. Se, todavia, afastamos a lupa e tomamos uma distância que permita colocar no campo visual a Indonésia, percebemos que as diferenças reduzem-se bastante entre os dois primeiros exemplos e tornam-se mais destacadas em relação ao terceiro.

Por isso, fala-se em civilizações, aqui sem qualquer juízo de valor, apenas como taxonomia psicológica, social, econômica, religiosa e política. Classificação a partir de raízes comuns e semelhanças e dessemelhanças, maiores ou menores. E os grupos civilizacionais podem encontrar-se em estágios diferentes de uma marcha que, se não é muito previsível, ao menos atende a certas probabilidades, devido às suas semelhanças.

Falar em estágios não significa dizer que as marcações sociais que lhes são próprias caracterizam uma evolução valorativa, senão que são diferenças, pura e simplesmente. Ou seja, o termo evolução tem aqui um sentido mais propriamente cronológico, ou histórico, embora não sejam conceitos iguais, tempo e história.

As marcações são prisões inescapáveis das maiorias. Sem fazê-las, sentem-se inseguras, impotentes, sem chão que pisarem. Como quero apontar os juízos de valor meus, deixo claro que o ser modo de agir das maiorias qualifica-lhes como um meio tacanho, na medida em que comuns e mais frequentes hábitos sociais são os que revelam menores usos das capacidades humanas. Assim é, mesmo que pareça desagradável a idéia de que a excelência implica minoria.

As maiorias marcam para identificar – a si e aos outros – para dominar, para excluir, para compreender o mundo em que vivem. Trata-se, portanto, de uma maneira de referenciação e de localização social. A partir de um ponto – de um complexo de atitudes verificadas na maioria – sabe-se identificar o ponto desviante e apontar esse desvio, convidar ao retorno à curva maioritária e, caso resulte falha a tentativa anterior, distinguir e punir socialmente com a marca da diferença.

A marca social implica que o qualificativo seja negativamente apreciado. Evidentemente, no sentido contrário, o sistema de marcação busca a todo custo evitar que os selos tornem-se inertes axiologicamente. Nesse momento, penso especificamente na marca da homossexualidade.

As pessoas em sua maioria têm avidez por compreender as outras segundo seus modelos. Não têm avidez pela compreensão, mas pela apreensão dos fatos sociais segundo as formas pré-estabelecidas de que dispõem. Querem, em outras palavras, saber em qual prateleira psico-social devem por uma pessoa e seu comportamento. Se não encontram o compartimento adequado, partem para marcar o diferente e marca-lo negativamente.

A necessidade de marcar negativamente tem uma interessante condicionante psicológica, além das previsíveis sociológicas: o ser comum, tacanho, sente-se pessoalmente ofendido por haver categorias que não caibam especificamente nas poucas prateleiras que seu cérebro tem. Algo como uma direta acusação de tacanheza, que deve ser repreendida.

No modelo civilizacional de matriz grega e monoteísta cristã, a marca da homossexualidade é negativa. Em diversos grupos inseridos nesse modelo, todavia, verifica-se que a marca persiste, embora adquira certa inércia valorativa e pareça apenas descritiva. Pode-se observar, nestes últimos, que o selo existe, embora não queira significar necessariamente a diferença negativa.

Há um elemento sutil que desponta nessa marcação e ele apresenta-se nítido em sociedades de recente transição de predomínio de cultura rural para cultura urbana, como dá-se com o Brasil. Trata-se da negatividade da marcação como homossexual, usada sem precisão e com propósito punitivo social exclusivo.

A utilização de uma marcação precisamente corresponde à sua adequação à conduta da pessoa marcada. Assim, chama-se homossexual – advirto que renuncio à utilização dos termos vulgares e à noção de que conferem verossimilhança àlgum texto – àquele que tem práticas sexuais voltadas a pessoas do mesmo sexo e, porque o termo é escasso de significado, àqueles que têm posturas homoafetivas, também.

Ou seja, na hipótese da marcação precisa, a maioria identifica o homossexual evidente para puni-lo, por diferenciação clara para com ela. Chama pelo nome uma conduta que verifica diferente, para marca-la. No limite, aceita-a criando uma prateleira cerebral para coloca-la, no lado em que são colocadas as coisas que reputa perigosas.

Essa forma, acima falada, é a pura marcação. Tacanheza que não impede a existência de outras maiores. As maiores podem fornecer o material da acusação da maior tacanheza, aquela que vem repleta de ignorância, indisfarçável.

Ocorre que o diferente nem sempre é facilmente classificável. E ocorre também que qualquer diferença é ameaçadora, até a indiferença. Logo, a indiferença a certas práticas e valores das maiorias precisa ser marcada. Aqui, volta um aspecto principalmente psicológico, ou seja, precisa ser marcado o que parece infirmar as verdades da maioria. Marca-se por reação do que se julga uma acusação.

Pouco importa, para a marcação social, que as condutas do marcado não estejam orientadas para o confronto do modelo maioritário. O confronto existe pela simples diferença, independentemente de aspectos volitivos. As maiorias sociais não punem pela vontade, mas pela simples diferença, que impede a apreensão de uma conduta por mentes comuns.

Assim, muitas vezes, a rejeição a práticas frequentes é tomada como rejeição à maioria. Esta, a maioria, precisa qualificar para si a rejeição e fá-lo a partir de critérios subjetivos e coletivos, marcando algo meio difuso com o selo que utiliza para negativar o que consegue distinguir mais precisamente.

Chego ao ponto: com preguiça de pensar e avaliar o entorno além dos miseráveis modelos que possui, a maioria qualifica imprecisamente tudo que se lhe afigura diferente. Com preguiça de pensar e tentar elaborar novas categorias negativas de marcação, a maioria usa do que dispõe.

Claro que classificando precisa ou imprecisamente a maioria está a marcar negativamente. Mas, a marcação imprecisa revela mais claramente a perversidade da padronização classificatória das maiorias: a tendência a julgar indistintamente, a julgar sumariamente, a julgar por critérios largos, ávida por punir rapidamente.

Intolerantes e indelicados sem mesmo saberem porquê! Ou, não me peçam opiniões, que posso findar por da-las.

Há pouco tempo, resolvi-me a sair, ir até ao centro e comprar o Le Monde Diplomatique desta quinzena. Há três bancas de jornais e revistas, relativamente boas, ali na Praça da Bandeira. Esse é um espaço democrático, onde muitos deixam-se estar, conversando trivialidades, geralmente políticas.

Invariavelmente, encontram-se pessoas dispostas a porem para fora suas opiniões – digeridas a partir das rações dos jornais – e a demandarem a aprovação ou desaprovação do interlocutor para o que disseram.

Não é esse propriamente o tipo de contato que me apraz, em um domingo pela manhã. De tão chato e antisocial que sou, prefiro chegar calado e sair calado, com minha revista ou jornal. Bom dia, por favor e obrigado, ditos para a pessoa que os vende, bastam-me de comunicações nessas ocasiões.

Claro que tudo pode mudar se se encontrarem pessoas realmente amigas, com quem se conversa por prazer, mas isso é mais raro. Comuns são os casos comuns.

Pois bem, entrei na banca de revistas e percebi que lá estava um fulano detestável, uma pessoa daquelas que falam aos gritos, que insinuam proximidades inexistentes, que não têm noção de inconveniências, um bufão que, sendo ridículo, espera de todos que aceitem também sê-lo. O problema da miséria humana que se expõe despudoradamente é querer dos outros o mesmo.

Entrei na banca e a senhora, a dona, logo que me viu sacou a CartaCapital, a revista que sempre compro lá. Acontece que tinha adquirido essa revista ontem, na mesma banca e tive que dizer-lhe não, já comprei ontem, queria o Monde Diplomatique. Tive que dizer, embora quisesse ficar calado a olhar as outras revistas, porque a figura do parágrafo acima estava junto ao balcão folheando uma revista Veja. Eu desejava evitar o inevitável, ou seja, alguma pergunta estúpida.

Logo que me ouviu falar, o senhor fulano virou-se e disse, para o mundo todo escutar, é claro: olá, doutor, o senhor lê isso?

O desagradável dessas coisas, para mim, gira em torno da obrigação de insinceridade que significa. Sim, porque seria estúpido responder sinceramente, como se faz com pessoas que merecem a sinceridade. Seria estúpido responder que é claro que leio aquilo, senão não estaria a comprá-lo; que aquilo é muito melhor que o lixo em formato de revista que o fulano tinha em mãos.

Seria trágico porque os miseráveis gostam de serem objetados, que isso dá-lhes ocasião de exporem sua miséria, que no fundo a reconhecem. Dá-lhes ocasião de miseravelmente colocarem-se em papel subalterno, de miseravelmente porem-se na suposta posição de aprendizes frente a professores. Querem mortificar-se, expor-se, enfim. Sua aparente subserviência é o convite ao rebaixamento do interlocutor.

À pergunta desconcertante, respondi com uma cara de tolo, de obviedade, de recusa ao contato. Melhor teria feito se dissesse que comprava o Monde pela primeira vez, ou pelas fotos que ele não tem dentro, ou qualquer mentira das mais absurdas, que são as melhores de se aceitarem. Mas não, fiquei calado e ensejei outra pergunta!

O senhor fulano pôs-me a vinte centímetros dos olhos a Veja que ele folheava, apontou a fotografia de uma senhora e disparou: é a mãe de Dilma, a velha não é mais bonita que ela? Disse com ar de ironia e malignidade de quem no fundo queria dizer que Dilma está gorda, ou tem os cabelos assim ou assado ou que se veste fora de moda, ou qualquer outra indelicadeza desprezível e estúpida deste tipo.

Disse-o como quem repete acriticamente o acervo de idéias intolerantes e indelicadas que TVs, jornais e revistas põem à disposição das classes médias proto-fascistas brasileiras. Repete acriticamente mas gosta disso, ou seja, cultiva de coração a intoleranciazinha mesquinha e a idelicadeza próprias de sua classe. Projeta em tudo sua mentalidade pequena, vulgar, misógina.

Desta vez, subi um degrau na escala da sinceridade – supremo risco, é verdade – e disse secamente: não trato desses assuntos. Em réplica, a tolice em tom solene: ah, o doutor não fala da presidente! Rancor de quem desejava ir além e insinuar que o doutor não trata dessas pequenezas, não repara no corte de cabelo, não faz comentários motivados pela inveja de viúva velha.

Não há hipóteses seguras de replicar alguma coisa desse tipo com sensatez. Com a explicação objetiva de que tudo isso pode ser feito, mas que se fazem comentários triviais com amigos, em circunstâncias privadas, por alguma descontração. Não adiante dizer que a reserva não é uma acusação, que é apenas reserva!

A intolerância – estimulada até aos limites pela imprensa, como se fosse preciso regar ervas daninhas – transborda, põe-se para fora com os dentes arreganhados, aos sorrisos impudicos do compartilhamento de misérias. Ela é praticada até por quem supostamente teria enormes interesses no cultivo da tolerância.

Esse indivíduo detestável de quem falei tem algo que para mim é totalmente indiferente, algo como ter a pele clara ou escura, os olhos claros ou escuros, uma circunstância biológica como qualquer outra, uma não-opção, enfim. O fulano, ao que tudo indica, é muito mais que misógino e espero que isso baste para compreender-se o que digo.

Sabe, portanto, muito bem o que são preconceitos arraigados, fundados em superficialidades. Pode não o saber de maneira sistemática e racionalizada, mas certamente sabe-o bem de viver, que já viveu mais de meio século, circunstância não desprezível. Vive a representar, aprisionado nessa obrigação terrível que as circunstâncias impõe-lhe.

E leva a representação e a irracionalidade a tal ponto que, ele mesmo experimentador diário da intolerância, exerce-a com indisfarçável prazer! O prazer, talvez, de diluir a intolerância no amesquinhamento generalizado. Um prazer miserável de perseguir-se a si próprio.

O estelionato verde deu resultados. Eleições presidenciais no segundo turno.

A candidata Marina Silva fez por José Serra precisamente o que os estrategistas dele pensaram: evitou a vitória de Dilma Roussef no primeiro turno das eleições. Inteligentemente, os meios de comunicação a serviço de José Serra investiram na candidatura eco-farsante, que atingiu quase 20% dos votos válidos e possibilitou que Serra, com votação à volta de 32%, fosse à segunda volta.

Dilma deve vencer, afinal, ainda que os votos de Marina dividam-se ao meio. Não creio, todavia, que a divisão seja nessa proporção. Uma parcela dos eleitores de Marina apoiou-a por vergonha de serem claramente udenistas e votarem em Serra. Agora, essa vergonha está ultrapassada.

Uma parcela maior será mais dificilmente cooptada pelas hostes udenistas, mesmo que Marina declare apoio formal a Serra, o que é provável ocorrer. Ela não ignora o papel que desempenhou e as gratidões que deve ter. Mas, é um pouco complicado para os eleitores dela compreenderem uma postura frontalmente contrária ao lado em que esteve até há bem pouco.

Marina terá que apostar tudo em Serra, porque, do contrário, esvai-se sua densidade eleitoral rapidamente, posto que construída com mais que seu discurso vazio, baseado em uma aparente sofisticação que consiste em quase nada. Na verdade, esse forte desempenho deve-se mais ao forte apoio mediático e isso perde-se tão rápido como se conquista, quando é instrumental.

Não parece que os eleitores de Marina que se podem dizer convictos tenham saudades do modelo fernandino que Serra representa. Daí, esses votos assemelham-se mais aos de Dilma que aos de Serra. Claro que a obtenção de mais vinte dias para bombardeio mediático incessante vão dar esperanças ao neo-udenismo.

Mas, convém observar o quadro total das eleições. Os maiores representantes do modelo neo-udenista foram extirpados nessas eleições, o que é bastante significativo.

O ex-senador mais agressivamente contrário a Lula – um indivíduo que nunca recuou do arrogante e do descortês – está sem mandato, porque o povo do Ceará não o quis reeleger.

Um dos mais agressivos e certamente o mais patético dos ex-senadores contrários ao Presidente – um indivíduo que chegou a dizer que daria uma surra no Lula – não deve eleger-se, porque os amazonenses não o quiseram mais.

O arenista mais longevo do país, um ex-senador e ex-vice-presidente da república – discreto e não merecedor de acusações de agressividade ou descortesia – foi rejeitado pelo povo pernambucano de forma muito eloquente.

Um ex-senador, herdeiro do homem mais truculento dos últimos 40 anos de história política do Brasil, foi rejeitado maciçamente na Bahia.

O líder maior do único partido com ligação histórica direta com a última ditadura militar – partido que tem a vantagem de ser declaradamente direitista – e que se supunha crítico mordaz do governo de Lula, foi rejeitado pelo eleitorado do Rio de Janeiro.

O farsante pseudo-intelectual verde que disputou a eleição para o governo do Rio de Janeiro amargou uma derrota por diferença maior que quarenta por cento dos votos daquele Estado.

Esse quadro permite ver que a segunda volta é uma eleição mais nacional do que o segregacionista José Serra gostaria que fosse. O novo líder das oposições no país será o razoável Senador Aécio Neves, um homem – aqui o lugar comum é inevitável – que tem as virtudes mineiras. Ele sabe que o Brasil não é São Paulo apenas.

Os apoios de José Serra para o segundo turno serão os de sempre. Uma ou duas revistas semanais, três jornais e algumas TVs, o que é muito. Mas, os votos são das pessoas.

A UDN tinge-se de verde, mas não é suficiente para provocar segundo turno.

Uma mistificação política antiga, porém de razoável eficácia prática, são os candidatos auto-anunciados de terceira via. Em eleições majoritárias, com dois turnos de votação, caso seja necessário o segundo, evidencia-se que não há o terceiro alternativo. Não apenas porque evidentemente só disputam dois, mas porque o terceiro alinhar-se-a a um desses dois. No fundo ele era menos terceiro que dizia.

Claro que não se trata de afirmar a impossibilidade de três candidaturas competitivas, que podem existir. Todavia, quando uma terceira via é sabidamente incapaz de êxito final, ele serve a uma das duas viáveis. Pode servir voluntária ou involuntariamente, mas é pouco razoável acreditar em movimentos eleitorais involuntários, vindos dos jogadores.

Uma característica marcante das candidaturas terceira via é parecerem opção intelectualmente mais sofisticada e, por isso mesmo, menos abrangentes e aptas a seduzirem menos pessoas. Isso dá conforto ao eleitor que acha a real marca por trás da terceira via muito truculenta ou estigmatizada. E um conforto duplo, porque ele sabe que não trai os objetivos reais, no fundo.

Uma comparação possível – e precária como todas as comparações – é com a prática relativamente comum de montadoras de automóveis terem marcas de prestígio, em que carros feitos sobre as mesmas plataformas da marca mais popular têm um destaque, maiores preços e menores vendas. Um automóvel Lexus é e não é um Toyota, ao mesmo tempo.

As eleições presidenciais brasileiras, do próximo dia 03 de outubro, têm uma candidadura muito festejada de terceira via. Trata-se de Marina Silva, ex-ministra do meio ambiente do governo do Presidente Lula. Quando ainda ministra, ela era constantemente acossada e até ridicularizada pelos media dominantes, jornais e TVs e revistas semanais pseudo-informativas.

Após deixar o ministério e anunciar sua candidatura verde, passou a merecer uma abordagem mediática suave, quase ingênua. Criou-se a figura da candidata idealista, lutadora quixotesca pelo valor ecológico supremo. Passou a ser cortejada pelos mesmos media que a atacavam, convidada a entrevistas em que as opiniões propriamente políticas eram favoráveis à candidatura udenisto-ornitóloga e as opiniões programáticas eram quase o vazio.

O meio ambiente é parte de qualquer programa político governativo, seja em um sentido, seja em outro. Além de ser algo sumamente importante, os tempos não permitem deixar o assunto de lado. Contudo, não se sustenta uma postulação cuja única matéria tratada é o meio ambiente, como não se sustentaria uma que girasse exclusivamente em torno às comunicações, ou à educação, ou à justiça.

Uma parte não se confunde com o todo que integra e as pessoas percebem isso e os próprios candidatos também. A candidata sabe, que não é tola, que é preciso mais que um discurso ecológico para vencer eleições presidenciais. E sabe que não pode acusar o eleitorado de ser tolo por não se preocupar com a ecologia.

O eleitorado preocupa-se cada vez mais com a ecologia, embora de forma difusa e superficial, a partir das informações distorcidas que recebe dos meios de comunicação, que alternam desde a ecologia de plantação de alfaces até a de endeusamento de plantas geneticamente modificadas.

Resulta que a oferta de informações superficiais, cambiantes e, às vezes, claramente compradas por algum interesse leva o público a perceber que há uma questão, mas também a percebê-la como um detalhe imerso em muitas outras coisas mais imediatas. O discurso restringe-se e torna-se sedutor ao cidadão que, embora ignorando quantos litros de água descem numa descarga sanitária, acha sofisticado e up to date votar verde e só verde. Mas, o verde está no azul, no vermelho, no amarelo, basta um prisma para constatá-lo.

Hoje, a candidata Dilma Roussef tem 10% de vantagem sobre os outros somados, em três dos quatro grandes institutos de sondagens eleitorais. Em um deles, que parece ajustar seus resultados obedecendo a uma lógica astrológica, ela tem 04% de vantagem. Em qualquer deles, portanto, com ou sem astrologia, ela venceria as eleições na primeira volta.

Por isso a aposta neo-udenista – a variante que acresce os pássaros aos mamíferos – no crescimento da terceira via, porque seria a única forma de levar a decisão para a segunda volta, sem a terceira via na disputa, é claro. Assim, e em política não há o assado, está claro a quem interessa falar de crescimento da candidatura verde e tentar aumentar esse crescimento.

Curioso seria se desse certo e a embalagem verde acarretasse a segunda volta e passasse a ela. Não sei realmente como se comportaria a congregação neo-udenista. Imagino que se esforçariam para superar a estupefação e tomar o controle da surpresa eleitotoral, como donos dela que são.

Imagino, contudo, que seria pior que se conseguissem ir à segunda volta com seu próprio Toyota. Porque a decisão entre Dilma Roussef e Marina Silva permitiria apostar em resultado francamente favorável à primeira. Uma decisão entre Dilma e José Serra seria mais imprevisível e por margem mais apertada, porque a nitidez é mais vantajosa no jogo sem empate.

O segundo turno é muito remoto, mas convém lembrar que tipo de estratégia utilizou-se para tentar fazer com que ocorresse. E lembrar que a estória de terceira via não passa de estratégia eleitoral de um dos lados, considerando quem serviu a quem.

Presuntos cuzidos, no Makro, em Campina Grande, e outras divagações.

Quero deixar muito claro que não se trata de fazer troça ou de manifestar reprovação eloquente e acusadora de um erro ortográfico. Realmente, quanto a essas posturas, nunca me esqueci de um trecho magnífico de Eça de Queirós, a propósito das pessoas que se apressam a acusar imediato o erro ou pequeno desvio de linguagem dos outros. Apenas não lembro mais em que livro dele está!

Duas coisas, na verdade, despertaram-me a atenção. Primeiramente, uma evidente e engraçada desproporção entre o anúncio escrito e os produtos que estão na prateleira. As letras falam em presunto, onde quase só se vêm queijos.

Em segundo lugar, como é pouco importante o que está escrito. Essa seção nominada de presuntos cuzidos deve estar no mercado desde a sua inauguração. E o que importa é a identificação visual, ou seja, as pessoas vêm presuntos ou queijos e isso basta-lhes, não se detém a ler o nome da seção. Ou lêem e não percebem qualquer problema, é claro.

Algo semelhante acontece com os sinais de trânsito – também uma linguagem codificada em signos gráficos – a que poucos dão atenção e menos ainda prestam obediência. Não há um intuito deliberado de desobedecer-lhes as ordens e recomendações, há um desprezo, pura e simplesmente, como se ali não estivesse sinal algum.

É interessante – e aqui refiro-me ao Brasil mais propriamente – que a pouca importância dada ao escrito permeia todas as classes, inclusive aquelas que se supõem mais cultas. Nestas últimas, muitas pessoas lidam com a linguagem escrita como as senhoras dos países colonizados lidavam com os adereços que viam as colonizadoras utilizando. Uma caricatura, portanto.

Não consigo evitar falar desse aspecto particular, pois convivo com ele. No meio em que trabalho, a linguagem escrita é o meio principal e as pessoas nesse setor pretendem-se bem alfabetizadas. Prezam muitíssimo a correção ortográfica e não recuam diante da oportunidade de acusar sarcasticamente o erro de um outro. Todavia, a esse zelo ortográfico correspondem defeitos lógicos – sintáticos – imensos, falta de clareza, rebuscamento de farsa e uma fala de doer nos ouvidos. Os plurais – essa suprema inutilidade – foram sumariamente abolidos e essa sim é a grande reforma gramatical.

Ou seja, o sujeito não acha realmente o manejo correto da linguagem algo importante. Ele sabe, por outro lado, que deve aparentar dar-lhe importância e aí surge a caricatura, quer dizer, a imitação, que é uma embalagem vazia e exagerada de enfeites. Pois são precisamente embalagens vazias em caixas rebrilhantes o que se movimenta em tribunais e outras repartições públicas e nas corporações privadas.

O mesmo – a imitação de algo em que não se acredita verdadeiramente – dá-se em outras manifestações humanas. A mais interessante delas é a cortesia mal imitada, porque no fundo as pessoas não percebem qualquer utilidade nela e são profundamente descorteses. É notável que se chegou a ponto de propor uma identificação entre espontaneidade e maus modos, ou descortesia. E nessa identificação é que a maioria das pessoas realmente acredita.

Por tomarem como a mesma coisa a sinceridade, a espontaneidade, o estar-se à vontade, com o portar-se mal-educadamente, sem qualquer polidez, é que são incapazes de qualquer comportamento mais polido, que será apenas uma imitação de algo em que não se acredita.

A reserva, confundem-na com soberba ou arrogância. A discrição, com falta de espírito. Daí que quando o sujeito encontra-se em situação que ele acha recomendar alguma dessas posturas, assume-as falsamente, como uma criança mimada cala-se à força e sem saber porquê.

É uma carga de simulação muito grande para uma sociedade, essa que impõe uma dualidade quase platônica entre o real e o aparente. O real é a vida diária e o aparente é aquilo que se representa como sofisticação. Ora, assim vive-se preso a uma lógica de dominação muito perversa, pois implica na assunção de que o real é bruto e o aparente é só disfarce, portanto não é sofisticado nem útil.

Ora, se as maneiras e usos caricaturais não são aceitas e desejadas realmente, que sejam abolidas sem mais. Se é uma simulação escrever plurais e aventurar citações latinas, enquanto fala-se algo totalmente diferente, que sejam extirpadas as flexões de número e o latim de nada. Se os bons-modos são um esforço tremendo de simulação, que se coma com as mãos e se fale aos gritos. Se a questão é de espontaneidade, que sejamos espontâneos!

O mundo sou eu.

A uniformização de pensamentos anda tão avassaladora que a forma de estar na vida enunciada no título é cada vez mais segura. Acho que essa é a regra da atitude psíquica e social mais adotada presentemente. Ou seja, a regra que leva o sujeito a medir a tudo e a todos por si, certo de estar a utilizar a régua correta.

E, de fato, erra-se pouco, já que as padronizações implicam pequenos e marginais desvios. No básico, as maiorias estão a pensar, a temer e a desejar praticamente as mesmas coisas, o que permite a cada indivíduo sentir-se seguro com seu critério auto-refente de julgamentos. Indecente é o diferente, como já se dizia há muito na América do Norte.

Uma e outra vez, contudo, o indivíduo que assim se põe diante das atitudes dos outros surpreende-se. Surpresa, creio, profundamente tola e que somente poderia resultar de um hermetismo levado muito adiante. Ou seja, surpresa que poderia atender pelo nome de ignorância, sem mais atenuadores.

A descrição dessa postura é relativamente simples, porque ela consiste na redução das possibilidades aceitas, em decorrência da redução objetiva e subjetiva do conhecimento da realidade. Por outro lado a busca das motivações de sua extensa e vitoriosa difusão é tarefa a recomendar estudo mais cuidadoso. Eu arrisco-me a supor que a conveniência de se terem populações acríticas e utilizadoras de reduzido repertório de idéias tem um papel importante como motivação.

Essa atitude mental leva a situações desagradáveis, embora com pouca frequência. São os momentos em que o mundo não é o eu do julgador e ele e seu interlocutor ficam em suspenso, um na imensa surpresa de ver algo diferente, outro sentido-se quase ofendido pela arrogância de certas suposições.

Não sou propriamente um modelo acabado de desvio das uniformizações, mas não sou tampouco a confluência dos padrões dominantes de gostos. E acontece algo frequentemente de surpreender as pessoas sem querer, apenas porque elas sentem-se tão seguras de serem o feixe definitivo de padrões de julgamentos que me vêm perguntar coisas, podendo ficar simplesmente caladas.

Um dia desses, um sujeito, sem mais nem menos, fora de qualquer propósito de uma conversação já iniciada, perguntou-me por que eu não comprava uma TV de 50 polegadas, daquelas bem fininhas e extremamente caras. Primeiramente devo dizê-lo sem arrodeios – isso é um gesto de profunda arrogância. Sim, porque supõe que sua esfera pessoal possa ser diretamente invadida por alguém que parece conduzir os destinos da sua vida.

Eu fiquei profundamente desconcertado e desconfortável com a pergunta, por mais que ela pareça inofensiva e boba. Pode parecer inofensiva e boba quanto a uma TV, mas para passar de uma televisão a outros assuntos é apenas um passo. Fiquei mesmo com raiva do meu interlocutor e, depois da primeira suspensão do pensamento, cogitei de uma imediata resposta agressiva. Pensei em perguntar ao meu interlocutor porque ele não tinha uma biblioteca, assim mesmo, direta, simplesmente e arrogantemente.

Cogitei também fazer o mais comum, ou seja, dar alguma desculpa daquelas que se aceitam comumente, porque no fundo são alegações de fatos alheios que não excluem uma suposta comunhão de vontades. Diria que falta tempo para escolher a TV, que pesquiso os preços, que acho caro e todo um rol de evasivas que agradariam o interlocutor, porque no fundo eu desejaria a TV como ele e não a tinha por mero acidente.

Acontece que viver a dissimular cansa. Ora, eu não tenho uma TV de 50 polegadas porque não quero, pura e simplesmente. Se quisesse, tinha. E acontece também que as respostas mais sinceras podem ser as mais agressivas, embora a isso não se destinem. Teria sido melhor devolver a pergunta da biblioteca, que as pessoas, de tão brutalizadas, preferem as agressões pensadas àquelas involuntárias.

Disse então que não tinha a merda da televisão enorme porque não queria e foi pior. Meu interlocutor não apenas tomou-se de uma surpresa imensa como seguiu adiante na sua lógica de medir o mundo por si mesmo e sentir-se à vontade para os comportamentos mais invasivos possíveis. Ele perguntou-me então por que eu não o dava meu dinheiro!

Quer dizer, não podem ter algum dinheiro as pessoas que não queiram ter aquilo que todas querem. É terrível imaginar a que uma forma tal de pensar pode levar, quando as coisas vão a extremos. A invasão é justificada pelo gosto vulgar, médio. Todas as violências e proscrições são justificadas por algum desvio da vulgaridade que habita a cabeça do selvagem médio.

E assim segue seu curso a revolução das massas.

Sobre identificações culturais.

Há certo tudo-ou-nada intelectual que confunde a linha das semelhanças com a identidade absoluta. Ora, a identidade só a temos entre nós e nós mesmos. A linha das identificações, percorre-se juntamente aos demais indivíduos e grupos deles.

O ponto de contato não é o signo de alguma igualdade absoluta, nem a recomendação de buscá-la. É o ponto de contato, a que se podem ajuntar outros e perceber maiores ou menores similitudes!

Quando fala-se em identificações culturais muitos percebem a escolha desse assunto como se fosse uma proposta ou um desejo. Não é. Trata-se de falar de algo que existe, como existe a vontade de comer ou a necessidade de dormir. Lembro-me, agora, de um episódio de há mais ou menos quinze anos, que vai sumariamente contado de memória.

A aviação naval norte-americana bombardeou a Sérvia, a partir de seus navios porta-aviões no Adriático. Depois da gloriosa missão, as naves atracaram no Pireu e os soldados desembarcaram como sempre o fazem. Ávidos das delícias do chão firme, de uma avidez aumentada pelo gozo dos recentes sucessos destrutivos.

Quem está fremitoso por gozos tende a não calcular bem a receptividade que terá por terceiros, que talvez cultivem outros gostos. Aconteceu que a soldadesca norte-americana pensasse que sua missão era indiscutivelmente bem-aventurada e que, portanto, seria celebrada pela receptiva população ateniense.

E aconteceu exatamente o contrário. Não somente os atenienses não os recebiam como a heróis de festa e descanso merecidos, como entraram em conflitos físicos com eles e lhes deram muitos sopapos. Se fossem gente mais atenta à história e à cultura, saberiam que não se matam sérvios e depois se confraterniza com gregos.

Sérvios e gregos são ortodoxos, estiveram sob o mesmo domínio otomano, lamentaram a queda do Patriarcado de Constantinopla, compartiram, enfim, muitas situações. Sérvios e gregos são diferentes e não querem tornar-se uns nos outros. Mas, têm pontos de contato e, embora um grego não seja, não se ache, nem se queira tornar em sérvio, tampouco fará festa com quem vem de matar sérvios.

Isso é identificação cultural e fica evidente – a repetição não é aqui inútil – que não é igualdade nem vontade dela. Imagino que se uma esquadra de qualquer nacionalidade, que acabasse de bombardear Madri, fosse comemorar o feito em Buenos Aires, passaria pelo mesmo que os norte-americanos em Atenas. E não significaria que os portenhos quisessem sem madrilhenos, apenas que há entre eles pontos de contato.

Imagino ainda que uma tropa que viesse de praticar a destruição e o morticínio em Londres não seria recebida com festa em Nova Iorque. E imagino que poucos imaginam os norte-americanos a quererem ser ingleses. É questão de identidades culturais.

Porque esse não é um texto de júbilo nem de instigação à felicidade, vou transbordar uma última imaginação, terrível. Imagino que se uma esquadra viesse de destruir Lisboa e aportasse em qualquer grande cidade brasileira, duas coisas ocorreriam, possivelmente. Ou a indiferença, ou a festa sem limites.

Somos sem raízes mais profundas e por isso não compreendemos quem as tem e as reconhece. Por isso acusamos qualquer busca de pontos de contato de ser vontade de tornar-se o outro. Achando ridículo que pontos de contato hajam, acreditamos nos que não há e, aí sim, transparecemos uma vontade servil de tornarmo-nos em outros que nunca seremos.

Corremos o risco, nós brasileiros, de sermos o povo mais perigoso do mundo, caso continuemos o rumo do enriquecimento que agora seguimos, de par com a profunda superficialidade de meninos mimados que professamos. Porque vamos ao sabor dos ventos, não reconhecemos ponto de contato algum e assim visamos a todos.

Vitória futebolística não é inutilidade social.

Muitos seres mais pragmáticos que o pragmatismo praguejam contra as celebrações decorrentes de vitórias futebolísticas. Dizem – para ficarmos no episódio evidente da Espanha – que os espanhóis não terão melhoradas suas condições de vida, que o desemprego não recuará e que a idade para reforma continuará a mesma, a despeito de terem vencido o mundial de futebol.

Outros trilham o caminho inverso da tolice e ficam a dizer que estudos científicos atestam que os países ganhadores de mundiais apresentam crescimento econômico entre 0,258% e 1,473% superior ao de países que não ganharam! Ou trilham pela vertente da auto-ajuda que se pretende neurociência e dizem que a vitória produz um estímulo psico-social benfazejo que impulsa o país adiante, porque melhora a auto-estima e coisa e tal.

Esses dois pólos de abordagem têm em comum a necessidade de instrumentalizar o futebol. Ora, para instrumentalizar o futebol como meio de ganhar rios de dinheiro tem-se a Fifa!

É circo a inebriar as massas? É, sim, e daí? A política, as religiões também o são, e muito mais nocivas.

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