Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 5 of 10)

A perda do senso trágico, a crença no remédio, ou sem passado e sem futuro.

Mansidão não é delicadeza, rebelião difusa não é coragem. Covardia não é sábio cálculo. Afagos gratuitos não são estima de iguais, direitos não são antíteses de obrigações. Ignorar o passado não é aceitar condição para que haja presente e futuro. Tudo isso são sintomas de algo fartamente abordado por Ortega y Gasset, a que sempre retorno.

Muitos viram a cara às constatações orteguianas, talvez porque a clareza dele agrida os superficiais que gostam de barroquismos e sentem ojeriza pelas abordagens aristocráticas e históricas. Menor número ainda é dos que leram e perceberam constatações similares em Unamuno, ainda que vertidas em termos quase obscuros e aparentemente místicos.

Ainda menor é o número dos que perceberam a advertência na arte narrativa ficcional, seja porque leem romances em busca de entretenimento, seja porque acham que romances são formas puras, duas formas de alienação próprias de todos os tempos, não somente do atual.

Agustina Bessa-Luis percebeu muito bem o que é a perda do senso trágico, que conduz ao viver o presente contínuo, isento de riscos, possibilidades, pleno de remédios sempre cinicamente negados mas sempre acreditados. Presente de discussões compartimentadas em escaninhos acadêmicos, científicos.

Mas, no que tange ao romance e à romancista também, sempre predominará numericamente o ver obra, ou como ficção totalmente abstrata, ou como relato fiel de acontecimentos com nomes de personagens trocados. As obras do romancista bom, como Agustina, não são, nunca, uma dessas coisas somente. Aliás, um romance a merecer este nome nunca é criação do nada ou reprodução de fatos.

Claro que ele não é, num autor bom, livro de recomendações ou de previsões, ou de recriminação ou de julgamento moral de um tempo e de suas pessoas. Ele, o romance, é antes de tudo história, por mais aparentemente atemporal que seja, por mais aparentemente abstrato e desumanizado que seja. Incluso, cabe aqui lembrar a riquíssima observação de Ortega de que as abstrações artísticas do início do século XX eram reação aristocrática meio pueril.

O tempo de hoje – que não sei precisar se começou há setenta ou cem anos, ou ainda mais – é um profundamente seguro de si, como a acreditar em progresso material e civilizacional imparável, a permitir ganhos de acumulação material e de direitos sem regressos.

Tempo de certezas amparadas em ciências ou pseudo-ciências, certezas absolutas quanto às afirmações e aos seus contrários, porque há ciência para todos os lados, porque ciência tem lado ou veio a ter, tamanha a incerteza certa a que dá suporte.

Parente próxima dessa certeza no progresso favorável é a crença em remédios para tudo, ou seja, em que as coisas, todas elas, têm solução. Chega a ser fetichista esta crença, porque chegou-se a ponto de reputar todas as coisas passíveis de remediação, o que reflete a adoção de juízo moralizante para tudo.

Acredita-se em remédio até para o que não se pode abordar em termos de conserto, porque não se cuida de acertos ou de desacertos, mas de coisas ou de opções ou de falta de opções. Aqui, percebe-se que a crença nos remédios é parente também da vontade de mandar nas outras pessoas, impondo-lhes os comportamentos estandardizados aceites quase unanimemente.

Esse estado de coisas, com este tipo de gente dominante, leva à incomunicabilidade. O sujeito que supostamente tem alguma inteligência e talvez alguma cultura formal, fala para ouvir o eco do discurso pré-fabricado que fez. Ele não fala para ouvir alguma coisa, fala para receber a confirmação da matéria de revista que também foi lida pelo suposto interlocutor.

Perguntas não são perguntas; são chances dadas ao interlocutor de deixar claro ter bebido na mesma fonte de padronização do perguntador. Os conversadores são duas paredes ou talvez dois espelhos a se refletirem e amplificarem. Esse ressoar de ecos tem o efeito de amplificar o que há de pior e de filtrar, deixando passar as partículas maiores e concentrar o discurso no seu núcleo.

O núcleo purificado de um discurso pequeno burguês neo fascista é aquilo que resulta da purga de tudo que fosse tolerância meio espontânea. Resta o escândalo padronizado, as sentenças moralizantes que devem tudo à liberdade perdida voluntariamente, porque de resto servia pouco ou nada…

Pós escrito breve: a menção a Agustina Bessa-Luís deve-se a ser escritora excepcional, que não se envergonha de apreciar história, não se envergonha de ser aristocrata e não se envergonha de escrever a explicar o que reputa passível de explicação. Mais um volume de Agustina alcançou-me, de surpresa, vindo pelos correios, fruto da imensa gentileza de um amigo inteligente que pouco fala.

Os três pilares do golpe: udenismo, esquerdismo Cabo Anselmo e judiciário.

Antes de qualquer coisa, convém uma pequena advertência. Conversando com um amigo sobre o segundo pilar apontado no título, ouvi que Cabo Anselmo lembrava imediatamente delação. Sei bem disso, mas a referência a Anselmo, como inspirador de certo discurso, não tem a ver com seu caráter delator, mas com a incitação irresponsável a um esquerdismo supostamente radical, que serve bem à direita golpista. Enfim, a lógica Cabo Anselmo, para mim e para este texto, tem a ver com esta incitação irresponsável, não com a delação.

Ao contrário de países vizinhos, o Brasil não tomou cuidados para evitar um golpe que subverta a vontade popular nas próximas eleições para a chefia do Estado. Ao contrário do que a maioria da imprensa diz, o Brasil tem níveis de liberdade que implicam verdadeira negação da soberania, da constituição e dos crimes de injúria, calúnia e difamação.

Contrariamente ao que fizeram Argentina e Venezuela, o Brasil, mesmo governado por gente que pensa mais no povo que na minoria de 15%, achou que era possível ter imprensa concentrada, monopolista, sem limites e entregue a capital estrangeiro. Os que estão no governo acreditaram que era possível comprar esta imprensa e receber dela o mínimo, ou seja, que ela fosse imprensa e não partido político. Mesmo tendo provas contínuas da impossibilidade, o governo continuou pagando para ser caluniado dia e noite…

Contrariamente ao que fizeram Venezuela e Argentina, o Brasil, pelos governos que estão há treze anos, acreditou que a honradez é paga com honradez e que não existem identificações de classe nem subornos. Não purgou a cúpula do judiciário dos golpistas e experimentou o sabor amaríssimo de juízes ignorantes, recalcados, vaidosos, cúpidos, farisáicos, oportunistas e com nenhum apreço à constituição que supostamente guardam. Vimos, então, o espetáculo horrível de juízos de exceção que degradaram homens inocentes e que foi a antesala da interdição de gente querida pela maioria.

Os que governaram e governam o país há treze anos trabalharam para reduzir a desigualdade social, o pior problema do país, e tiveram êxito marcante. Não trabalharam suficientemente para que a maioria tivesse consciência de classe e para que esta maioria pudesse escolher livremente doravante, todavia. Eles ignoraram os instrumentos do golpe e acreditaram que o povo e os que vendem para o povo seriam apoio suficiente.

Ignoraram que há, sempre, quem os queira tirar não apenas do poder, mas da vida, e que têm tenacidade para seguir a tentar. Sinceramente crentes que todo poder emana do povo, deixaram agir com poder de Estado os que nada têm emanado do povo e não tiveram coragem de dizer que funcionários a 10.000,00 euros mensais não podem trabalhar pelo povo, porque num país de renda mensal média de 300 euros, quem ganha 33 vezes mais que a média não é povo e, obviamente, age por sí e por quem está acima.

Aceitaram o jogo udenista, porque parte de seu êxito deveu-se a terem feito discurso udenista, lá atrás, há quinze ou vinte anos. O moralismo, aquilo que passa por dizer que tudo se trata de fulano ou sicrano ser ladrão ou infiel ao cônjuge ou adicto de drogas ilegais ou de álcool, foi uma das bases de seu discurso inicial. Hoje, este discurso é base da oposição a eles, com a amplificação da imprensa e da corporação judiciária.

Nunca insistiram unicamente nas conquistas relacionadas à melhoria na desconcentração da apropriação de rendas, que efetivamente realizaram. Nunca disseram que o ponto central da dinâmica social é a luta de classes, porque aliaram-se àqueles que passaram a vender mais. Assumiram a vergonha de serem de esquerda – que foram, realmente – e aceitaram as regras do discurso da oposição, que insiste em moralismo e na inexistência de esquerda e direita.

O grupo que hoje é governo no Brasil terá êxito nas eleições do ano próximo, mesmo que a seleção nacional não triunfe no mundial de futebol. Mas, ter êxito nas urnas, no voto, na preferência dos eleitores, não significa assumir o posto obtido pelo voto. Haverá um judiciário ávido por encontrar alguma questiúncula, um detalhe qualquer, ou mesmo servir-se de farsa pura e simples – e há precedente – para interditar a opção que não seja a do retorno da concentração de rendas e da entrega ao estrangeiro.

Há uma opção para o grupo que está no governo, se quiser resistir ao udenismo, ao esquerdismo Cabo Anselmo e ao judiciário: falar para a maioria e deixar claro o que ganharam e deixar claro o que é o judiciário e de que é composto. Com relação ao moralismo udenista e ao pseudo esquerdismo Cabo Anselmo, o primeiro deve ser ignorado e o segundo deve ser mais que ignorado.

Um pequeno pós escrito tem lugar. O que chamo de lógica cabo Anselmo fica claro num episódio recente e no comentário que fez um jornalista que posa de simpático, aberto e outras coisas bacaninhas do gênero. O Kenedy Alencar – jornalista que é empregado do Frias da Folha de São Paulo –  faz de conta que é livre e que segue sua pauta.

Pois bem, há cinco ou mais dias, o Congresso Nacional, em sessão plena, devolveu o mandato do Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Na ocasião, em abril de 1964, o congresso, amedrontado, considerou vacante a Presidência da República, o que ajudou a malta golpista a dar aparências jurídico-formais ao golpe.

Na sessão que anulou a farsa de cinquenta anos atrás, os comandantes do exército, da aeronáutica e da marinha de guerra estavam presentes e não aplaudiram quando o Presidente do Senado proclamou a anulação da vacância declarada cinquenta anos antes. Todos os demais presentes aplaudiram quando da formal proclamação.

O tal jornalista Alencar – de prenome Kennedy – escreveu artigo a dizer e pedir que a Presidente Dilma punisse os comandantes militares porque não aplaudiram a reabilitação de João Goulart. E essa cretinice repercutiu e foi repetida, tanto por quem fazia ironia, quanto por aqueles que viram nisso um grande arroubo de esquerdismo cioso da história.

Isso do Kennedy Alencar é Cabo Anselmo puro. Primeiro, militar não aplaude nada. Segundo, aplaudir não é obrigação de ninguém. Terceiro, não aplaudir não é falta funcional, portanto não é infração. A Presidente Dilma não tinha, nem podia punir algo que não é infração.

A imprensa, a pregação para os convertidos, a cólera e o golpe.

Pode-se dedicar todo o tempo do mundo a lateralidades e a coisas acessórias quando se trata de falar do Brasil, mas o principal é a hedionda concentração de riquezas. Hoje, os 10% mais ricos detém 42% de toda a riqueza do país. Isso é quase sem precedentes e nenhuma abordagem que se queira séria passa à margem dessa evidência.

Nos últimos doze anos, ou seja, no período que compreende os dois governos do Presidente Lula e o governo em curso da Presidente Dilma, esta concentração recuou e a velocidades maiores que as de outros recuos pontuais havidos anteriormente. Ou seja, o que hoje é terrível, era muito pior.

Essa aceleração na redução de desigualdades na apropriação de riquezas é um dos pontos centrais do ódio votado a Lula e a Dilma por partes da classe dominante, pela classe média alta e pela imprensa de forma quase generalizada. É verdade que a maior parte da classe dominante não se move pelo ódio, porque não se entrega ao luxo de ser estúpida, ela que ganha com o aumento dos mercados consumidores.

Todavia, uma significativa parcela move-se mais por ideologia que por cálculo e a inércia social e econômica lhes permitem essa aparente contradição. As classes médias altas movem-se tanto por cálculo quanto por cólera, pois percebem que a descompressão dos de baixo faz-se em detrimento dela, que vê o custo dos escravos aumentar muito e seus preconceitos moralizantes se esfumaçarem.

As classes médias altas são incapazes de perceberem a melhora do ambiente social como algo que lhe inclua e lhe beneficie, porque só pensa em ganhar mais e não crê que isto seja possível senão em detrimento das camadas mais baixas. Escravos que são, não cogitam aquinhoar-se melhor em detrimento dos de cima, sempre dos de baixo. Escravos e covardes…

A imprensa, em sua maioria, essa move-se por causas que muito dificilmente se poderiam considerar estrategicamente racionais. Ela não foi ameaçada por este tímido mas sustentado movimento de desconcentração de riquezas empreendido pelos Presidentes Lula e Dilma. Pelo contrário, viu seu mercado de publicidade aumentar significativamente.

Aqui, entra em cena outro elemento: ódio de classe. Os patrões da grande imprensa creem-se aristocratas, embora as evidências neguem a qualidade de melhores àqueles que nada mais fizeram que viver de privilégios estatais obtidos à custa de chantagem constante.

Temos no Brasil a mania de confundir as coisas e viver num ambiente de perpétua confusão conceitual. Isso não é devido ao acaso, mas a uma postura calculista inercial, que todos assimilam e praticam sem se perguntarem porque. Assim, costumamos lançar cortinas de fumaça sobre as origens sociais das pessoas e principalmente confundir social e econômico.

Lula foi verdadeiramente a primeira pessoa de origens humildes a obter o poder em nível elevado. Todas as demais, fossem de esquerda, direita, centro ou o que fosse, eram de extração social elevada, mesmo que não fossem nitidamente plutocratas. Isso nunca foi perdoado a Lula: o atrevimento de postular e ganhar eleições, após ter perdido em várias oportunidades e, pior, de cumprir o que dele se esperava.

A maioria esmagadora da imprensa não deu tréguas ao Lula e o assediou insistentemente por oito anos, com mentiras, insignificâncias, deselegâncias, insinuações, manipulações e com propaganda subliminar. A despeito de tudo isso e de terem levado o tribunal supremo a forjar um julgamento criminal sem provas contra pessoas próximas ao Lula, não o conseguiram apear da presidência da república.

Essa insistência da grande imprensa transferiu-se para Dilma, embora sem o mesmo nível de deselegância e vileza, porque Dilma não é propriamente alvo do ódio de classe.

O caminho escolhido pela imprensa conduziu a algo terrível e de difícil reparação, que vitima partidos políticos de situação e de oposição: a idéia disseminada de que todos são iguais e que política é algo indigno.

As idéias mais cretinas, menos elaboradas e mais moralizantes vicejam nas massas. A imprensa investiu contra a política em geral por ter crido esta a única estratégia possível para conduzir à interdição dos Presidentes Lula e Dilma. Ocorre que o efeito foi geral, o que prova não haver venenos de efeitos localizados e destruição limitada.

As massas – aí incluída a classe média alta, que é profundamente massificada – envenenaram-se de um moralismo rasteiro e colérico que rápido pode degenerar na rejeição pura e simples da democracia eletiva e dos direitos e garantias mais básicos. A ânsia de linchamento foi despertada como poucas vezes se viu neste país.

Um efeito imediato desta cólera e deste moralismo de botequim dominantes é a porta aberta para as alternativas ao sistema representativo. Ora, o mais evidente à disposição é um burocratismo pseudo-meritocrático, ou seja, uma espécie de fascismo.

Não creio, particularmente, que isto acontece assim tão drasticamente, mas não posso fingir não ver que a imprensa dominante instigou formas de pensar que abrem caminho para tais formatos.

Outra resultante terrível da campanha da imprensa contra a política em geral e a favor do nivelamento intelectual pelo mínimo possível é que ela não chega a muitos quando quer fazer política editorial de direita a sério.

A imprensa chegou ao ponto de pregar para convertidos nos seus editoriais nitidamente de direita. Ela desqualificou insistentemente a política, promoveu o linchamento, a cólera, a suposta ação direta, mas continua a gostar de falar de política. Quando o faz, a sério, nalgum editorial escrito por um direitista alfabetizado, ninguém lê, exceto os já convertidos!

O grande problema de instigar o que há de pior, mais rasteiro, mais moralizante, mais massificante é que não há resgate ao depois e que essas coisas são muito sedutoras realmente, o que fica provado pela facilidade de sua disseminação.

Outra resultante, talvez a mais terrível, é que demonizada a política e ainda assim incapazes de ganhar de Dilma em 2014, eles terão que recorrer ao golpe da interdição judicial instigada pela imprensa. Mesmo com fortíssima campanha mediática contrária, com os convites para a superficialidade, para o ódio e para o linchamento, a presidente conta com 47% de apoio, segundo pesquisa recentíssima.

A aprovação à Presidente revela que colocar o nada e a cólera como suporte discursivo da oposição não lhe rendeu apoios, porque a cólera vai igualmente em todas as direções e o nada alugar nenhum vai. Novamente conclui-se que, ou se resignam a nova derrota eleitoral, ou partem para o golpe judiciário.

Não acredito na resignação de grupos de direita fascistizantes que nunca conseguiram viver afastados do Estado. Resta, portanto, o golpe.

Liberdade é algo que implicaria não ser humano.

A má-compreensão e a falta de significado de um termo são praticamente a mesma coisa. O termo liberdade é, juntamente com justiça, dos que menos significado têm, ou porque sejam vasos a comportar qualquer coisa, ou porque sejam mais juízos valorativos morais que representações de algo.

Claro que alguém pode objetar que esses termos são pouco ou nada mais que designações de juízos morais amplamente vagos e cambiantes, mas o problema reside exatamente em que os objetantes não acreditam, sinceramente, nestas ambiguidades decorrentes da dependência total das circunstâncias. Até os supostos objetantes da falta de significado querem sempre acreditar que se trata de termos unívocos portadores de verdades imutáveis.

As pessoas aceitaram tacitamente a convenção de somente falar de liberdade das formas mais tolas e superficiais possíveis, o que revela sua insegurança, ignorância e medo do assunto. Por outro lado, o grau de interdição de um assunto ou de um nome revela bem sua importância efetiva. Não foi à toa que o inteligentíssimo Camus afirmou que o suicídio era o único tema sério da filosofia para as pessoas: ele não era inseguro, nem ignorante, nem medroso.

Isso de liberdade vem imediatamente ligado ao lugar-comum da escolha, da decisão que seria sempre tomada entre alternativas pesadas por alguma vontade agente. Acontece que a vontade agente e una deixou entrever, primeiro para alguns artistas e, depois, para certos cientistas, o que tinha de reflexo condicionado e de plúrima. A questão do reflexo incondicionado pela vontade é menos problemática, mas a superação da unicidade será apostasia eterna.

Não deixo de voltar a pensar em textos de Sperry, de Gazzaniga e de Bogen, alguns co-escritos por eles, outros apenas de Sperry, na sequência das maravilhas resultantes da pesquisa com a seccão dos corpos calosos: Language in human patients after brain bisection, Observations on visual perception after disconnexion of the cerebral hemispheres in man e Brain bisection and mechanisms of consciousness.

Roger Sperry e Michael Gazzaniga perceberam que a unicidade não era mais que predomínio da linguagem, algo que Stevenson havia percebido antes de 1886 e que certamente muitos outros dotados de arte e paciência perceberam antes ainda. O estranho caso do doutor Jekyll e do senhor Hyde e o único essencialmente duplo, a deliciosa contradição que tem toda realidade despida de suas fantasias. Um são dois, por que não?

Como sempre, a ciência andou mais lentamente que a arte, embora não signifique mais capacidade de penetração de uma ou outra, porque ambas são opacas para o vulgo. Nunca foram libertadoras, nem demolidoras de lugares-comuns, ao contrário do que pensam os dogmáticos limitados e medrosos. Não há porque travar-lhes o caminho para evitar que a massa se instrua e supere os lugares-comuns. Isso é investir contra a coisa errada. O contato do vulgo com a arte e com ciência dão em nada, já com a política é fértil, e é para aí que os conservadores devem mirar.

Os doutores neurocientistas norte-americanos postularam, nos anos de 1960, algo que implica, sem eufemismos, a falsidade da pessoa una e agente livre. A unidade, embora óbvio convém dizê-lo, é de ordem material, o que significa que um corpo é todo ele coerente e movido pela mesma e única vontade, segundo a dogmática de matriz religiosa dominante.

Poucas coisas poderiam ser mais demolidoras que os fenômenos da mão alheia e da incompreensão total por falta de abordagem por linguagem, que eles viram e estudaram na sequência da separação dos hemisférios cerebrais. Nem a vontade era única no mesmo corpo, nem o mesmo corpo compreendia algo igualmente a depender de que metade lateral recebesse os estímulos visuais, tácteis ou sonoros.

Não causa escândalo algum falar em dominância lateral e afirmar que a linguagem associa-se ao hemisfério cerebral esquerdo. Curiosamente, causa escândalo lembrar o que antecedeu a essas conclusões e o que se infere, posteriormente. Se há dominância lateral, há um dominado.

O dominado, no humano, é aquilo que o vulgo generosa e acriticamente chama de natural. O natural é, em via inversa, exatamente o que o vulgo não quer que seja: amoral, imediato, incapaz de desculpas, incapaz de disfarces, tão livre quanto preso à fome, ao sono, à lubricidade periódica, mas sempre livre porque incondicionado por linguagem.

Pois bem, esse natural é preciso que não seja natural nem livre, duas supressões que o dominador hemisfério esquerdo desempenha muito bem e que resulta que seja visto como a realidade natural e livre.

Quero apontar que uso neste texto termos valorativos comuns – que se aceitaram como termos absolutos não valorativos nem relativos – como são natural e livre, apenas para dar a ver a inadequação que têm para a compreensão do assunto. Se existem e têm algum sentido natural e livre, esses termos passam a inexistir e a não terem qualquer sentido se virmos como são usados para coisas diversas, como são usados imprecisamente e como poderiam ser usados igualmente para coisas antagônicas.

Recentemente, a ciência, a mesma que anda atrás da arte, descobriu que o campo da chamada liberdade de escolha é mais restrito do que gosta de supor o vulgo. Fê-lo por imagens do cérebro que identificam áreas ativadas por atividades específicas. Em resumo, há um padrão de respostas pré-estabelecidas, o que tem um quê de arqueológico e antigo, mas inegavelmente diminui o tempo de resposta aos estímulos.

Nenhum animal tem liberdade ante o fogo e talvez este seja o exemplo mais elementar de resposta condicionada. Todavia, isso vai se tornando mais sutil à medida que as supostas alternativas são menos drásticas, mas ainda assim o acervo de respostas mais ou menos estabelecidas existe e as respostas dão-se conforme a este repertório de sim e não, numa lista binária muito longa de se isso então aquilo.

Porque não convém ao vulgo perceber que a enorme maioria de suas escolhas não são mais que reações a rigor involuntárias? Porque reconhecer que o âmbito de escolha é muito restrito implica aumentar o valor da escolha e da liberdade, por escassez. No fundo, o vulgo quer isso que canta em loas constantes reduzido a algo comuníssimo e abundante, enfim, barato.

O vulgo precisa ver liberdade em tudo, precisamente porque crê que ela significa nada. Enaltece em prosa e verso ruins o que não estima verdadeiramente.

Por outro lado, saindo do campo da psique, evidencia-se que o discurso de existência da liberdade de escolha a cada passo serve à dominação de muitos por poucos. A liberdade, essa coisa bonita e ampla, se ela existir assim como dizem, justifica todas as desigualdades entre as pessoas. É terrível e ao mesmo tempo genial essa idéia de instilar na maioria a noção de culpa da vítima a partir de algo que se valora positivamente.

A liberdade, em termos políticos e econômicos, está na raiz da desigualdade. Assim, a desigualdade não passa de um estado natural de coisas – e eis aí outra inexistência cara ao vulgo – devidas às vontades de cada qual. Todos livres e uns poucos muito melhor aquinhoados que a maioria, era necessário convencer a maioria de que tudo se devia enfim à sua própria vontade!

Antigos senhores de escravos vivem saudosos.

É longa a recuperação das sociedades que conhecem pessoas com estatuto de coisa, objetos de direitos e não sujeitos deles. Esta situação, a do escravismo legalizado, somente é superada por dois meios: a luta – o que implica escravos relativamente bem instruídos – e a inviabilidade econômica de manutenção da escravidão legal.

No Brasil, que foi aquinhoado por Deus e por seus espíritos mais próximos, caídos ou não, com uma classe dominante especialmente genial, o escravismo legal foi abolido porque não fazia mais sentido econômico e porque prejudicava as exportações de colônias inglesas que não tinham mais este tipo de mão-de-obra.

Ele deixou de ter estatuto legal, mas permaneceu longamente após a aquisição pelos ex-escravos do estatuto de sujeitos de direitos. Os câmbios sociais são muito mais lentos que alguma mudança jurídica abrupta possa fazer crer, o que revela o caráter teatral do jurídico quando se o compara com o social e econômicamente dinâmico.

Um grupo humano ter, em qualquer lugar, nos seus tempos iniciais, a divisão das pessoas entre coisas e donos de coisas é nada mais que evolução da anterior prática de matar os vencidos. Escandaliza os ignorantes e os preguiçosos de pensar a evidência de que a escravização é um passo evolutivo relativamente à simples eliminação de todos os vencidos.

Todavia, outro passo evolutivo é dado quando se reúnem as condições para explorar os vencidos de maneiras mais sutis que simplesmente os reduzir a coisas, objetos de compra e venda. O passo seguinte mantém estratificação social, com classes de cidadãos, embora suprima as distinções legais, exceto por um e outro grupo que mantém privilégios legais explícitos.

No Brasil, o escravismo de pretos era legal até há pouco, precisamente há cento e vinte e poucos anos. A escravidão persistiu muito forte até hoje, o que fica evidente para quem vir a divisão na apropriação de rendas, os índices de mortalidade por crimes, os índices de encarceramento por faixa de renda e por etnia. Enfim, todos os indicadores que se usem apontam para um fosso entre dois grupos.

É óbvio que as coisas estão muito menos ruins hoje, porque ao menos se tem a igualdade jurídica formal, aquela maneira de praticar a injustiça com mais aleatoriedade, o que dá às massas a sensação de que a igualdade material está próxima ou que nem mesmo é algo desejável. Hoje, em poucas palavras, os escravos têm TVs, aparelhos telefônicos móveis, leem tão precariamente quanto a classe média e recebem vez e outra o que os senhores lhes deixaram de pagar.

O aspecto mais destacado da herança escravista no Brasil é o emprego doméstico. Uma pesquisa recente, não me lembro de qual instituição, constatou que não há outro país com mais empregados domésticos que neste paraíso tropical dos 10%. É impressionante, principalmente porque não somos o país mais populoso do mundo e estamos muitíssimo atrás da China, da Índia, dos EUA, da Indonésia e provavelmente do Paquistão.

Uma quinta posição relativa a par com uma primeira absoluta – e considerando-se a imensa diferença para os mais populosos – é realmente uma vitória indiscutível nesta modalidade. É extraordinário em termos quantitativos e em termos qualitativos e revela que ficamos com o escravismo em realidade muito mais que com traços arqueológicos que se possam encontrar.

O emprego doméstico até há pouco não tinha jornada limitada em lei, não tinha fundo de garantia contra despedidas arbitrárias, coisas que todos os demais empregos têm há mais de cinquenta anos. A distinção, para quem se disponha a pensar – só a pensar, esquecendo-se de seus interesses de classe e pessoais – era simplesmente absurda, por destituída de qualquer razão.

Mas, vale a pena observar a distinção entre o tratamento legal de um trabalho e dos demais e a recente supressão dela. Ela, a supressão da escravidão formal e da violação ao princípio da igualdade, gerou reações que beiram a loucura. Além dessas reações, permite ver o quão longeva era uma diferenciação baseada em nada e que sempre pareceu a coisa mais comum e aceitável do mundo.

Tornou-se hábito repetir o lugar-comum tolo de que o texto produzido pelo congresso nacional em 1988 é a constituição cidadã. Ora, essa magnífica obra dos jurisconsultos brasileiros oriundos da oposição permitida ao regime ditatorial de 1964 a 1985 continuou a distinguir todos os trabalhos do trabalho doméstico.

Agora, o trabalho doméstico assemelha-se juridicamente, formalmente, aos demais e isso causa escândalo às classes médias e altas. Esse escândalo revela algo feio de ver-se, que é a estupidez. A burrice é mais feia que a má-fé, em qualquer perspectiva que tome em conta a estética e a história. A burrice é muito mais nociva que a má-fé pura.

Os médio classistas brasileiros, useiros contumazes do trabalho doméstico semi-escravo, insurgem-se contra a igualdade de direitos dos trabalhadores domésticos apenas com a sua raiva de quem perdeu algo e quer que esta perda tenha alcance de argumento. Assim, neste ambiente, tornou-se comum dizer-se que bons eram os tempos antigos, que as pessoas antigamente sabiam dos seus lugares, que se faz um favor oferecendo um trabalho doméstico a alguém e outras tolices do gênero. Claro, neste ambiente povoado por estupidez, há o argumento do mérito…

Para comparação, posso dizer que bons eram os tempos em que o Estado pagava 40% de juros ao ano, sem riscos quaisquer, sem ameaças inflacionárias, a troco de nada mais que ter o que emprestar ao Estado, por intermédio de algum banco. Era bom para mim, se tivesse o que emprestar, mas era absurdo para todos os mais que 90% que nada emprestam ao Estado.

Se eu ou a personagem que se enquadre neste papel for além de cuidadoso consigo um pouco menos estúpido, saberá que o assalto revertido não será uma violação de lei divina e estável, apenas a recomposição de forças e algo que me contraria. O que é ruim para alguém decorre de alguma vitória de quem estava perdendo, apenas.

Ter que pagar um pouco mais caro por escravos domésticos não é algo a violar os estados naturais, até porque o humano, pessoal e coletivamente, nada tem de natural: É algo violador dos interesses pessoais e de grupo e não significa violação de algum balanço natural de forças e de classes e de trabalhos.

Para as classes médias moralistas brasileiras, isso agrediu até um de seus patrimônios mais valorosos: a idéia de estar a fazer favores. Quando algo torna-se direito escrito, reduz-se um pouco o campo do discurso da concessão graciosa do que sempre se deveu. Eis aí algo mais importante que o preço em si: suprimiu-se de certa classe média piedosa a sempre conveniente oportunidade de dizer-se caridosa porque dá aquilo que a lei não exige.

Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica.

Se está acabando el partido, vamos tres a cero, nos ganan los brasileños.

En el salón de mi casa veo la indignación de mis compañeros ante la derrota anunciada. Ya no hay remedio: perdemos. Me cuentan cómo se ha desarrollado el juego, hablan de suerte y desgracia, al parecer, las “canarinhas están en una buena racha. Los escucho por educación, sin inmutarme porque el fútbol no me importa nada. Después de todas las críticas y juramentos de mis compatriotas, enrabietados con la victoria del gran gigante del Sur, pronuncio la frase que da título a este texto:

“Cuando el fútbol se convirtió en el reflejo de la realidad económica”.

—¡No digas eso! —me imploran— pero ya es tarde, mi sentencia cae sobre el murmullo de una sala de estar que ya no quiere ser.

Poco después hago otro comentario mucho más desafortunado:

“Mañana empiezo los trámites para solicitar un pasaporte azul”.

Mis amigos me miran con una mezcla de euforia y decepción.

No me he unido al enemigo, hace tiempo que formo parte de otro equipo,

de otro esquema sociocultural, de otra orilla, que no es la misma que me vio nacer un día.

Yo ya soy del Sur, extranjera, adoptada, inmigrante retornada.

Hace más de un año que volví a España y, desde entonces, el desarraigo

de una “desubicación” exacerbada recorre mi sangre y aviva mis ganas de huir

a cualquier otra parte, lejos de aquí y dentro o cerca de las fronteras del verde Brasil.

Nos ganan, sí, pero no ahora, hace ya tiempo que perdemos todos los enfrentamientos con patrias americanas por goleada. Perdimos hoy, pero también ayer y tal vez mañana.

El deporte, que antes nos beneficiaba, llenando de medallas y gritos de triunfo

un país minado por las deudas, los impagos y los desahucios,

ahora nos expone ante nuestras carencias y temores.

Hoy nos acusa de una mala gestión en el campo de cualquier juego,

mientras Bárcenas se muere de miedo frente a un extraño compañero de celda y

el ciudadano de a pie revienta de rabia frente a sus iguales en el viciado ambiente de todos nuestros bares.

Nos vamos a pique en todas las riberas, el barco no se hunde: se entierra.

No nos ahogamos: nos sepultan.

No nos marchamos: nos expulsan.

No nos morimos: nos marchitan.

El fracaso no lo creemos: no los inculcan.

Um texto de M. E. M. C.

Os manifestantes, do MPL e de todos mais, votam.

Manifestações massivas houve em grande parte das maiores cidades brasileiras e continuam, com maior ou menor força, a depender de que vertente seja considerada. Iniciaram-se a partir do Movimento do Passe Live – MPL, na sigla que facilita tudo e revela o jornalitismo que impregna a escrita. O MPL voltou-se contra um absurdo imenso, que são os preços dos transportes públicos no Brasil, preços que drenam parcela significativa da renda dos usuários e custeiam serviços ruins.

Isso da haver manifestações massivas surpreende uns, desagrada outros e mete medo em alguns. É comum, da parte do governo, minimizar as coisas e da parte das oposições, propor repressão radial, por um lado, e tentar apropriar-se, por outro. As manifestações são movimentos políticos, o que é inescapável e ainda bem que assim é.

Na raiz do MPL está a ascensão de parcelas da pobreza e da classe média muito baixa a condições melhores. Isso ocorreu nos últimos dez anos e pode ser explicitado por números até para os impermeáveis que vivem a vida entre o apartamento de 150 m2, o Land Rover blindado e o shopping center com estacionamento caro e não servido por linhas de ônibus. Se esta gente perceberá mesmo a evidência dos números, é outra coisa.

Mudar ainda que timidamente a estrutura de apropriação de rendas de um país populoso é algo que insere no jogo variáveis com que os mesmos promotores da mudança não contavam. Eles, com as poucas exceções de sempre, pensam em termos organizadinhos demais e ficam pela estória do pessoal estar a comprar mais TVs e geladeiras.

Acontece que o maior consumo de TVs e geladeiras é a parte evidente do encontro dos interesses dos ascendentes e dos sempre estabelecidos. Haverá, sempre, espaços de não intercessão entre os interesses desses grupos. Os vendedores deslocar-se-ão em helicópteros, tratar-se-ão no Sírio ou no Einstein e contarão com uma benevolência inercial quando tiverem que recorrer a serviços públicos não essenciais.

Aí, os interesses desconectam-se. Para quem viu a situação melhorar timidamente no que se refere ao poder aquisitivo, breve será o intervalo para perceber que certas coisas, a despeito da melhora inicialmente mencionada, continuam estruturadas muito mais a favor de quem oferece serviços concedidos, principalmente.

É também muito natural que os governantes se acomodem e creiam que serão endeusados ou pelo menos reconhecidos perpetuamente pelo que já foi obtido. Mas, é sinal forte de vitalidade social pedir mais e isso houve com o MPL.

O desconcerto atingiu, tanto governo, quanto oposição e seu braço condutor, a imprensa. Uma semana intermediou a tomada de posições dessas duas partes envolvidas. Governos, em várias esferas, viram rápido a necessidade de reprimir a crescente violência e vandalismo dos movimentos, mas sem violar a proporcionalidade, como a tinham violado com violência brutal, no início.

Oposição e imprensa levaram aproximadamente uma semana até passar do convite reiterado à repressão brutal à percepção de que podiam apropriar-se dos movimento como se eles fossem à partida, específica e unicamente contra o governo federal. Nesse ponto, recuaram dos convites à repressão e passaram a criar pautas para os movimentos que não eram as deles movimentos.

Do ponto de vista da oposição, abria-se uma maravilhosa janela para inserir algo que nunca têm: povo. A partir daí, seria mais fácil dar a segunda volta do golpe sempre sonhado e trabalhado: tornar a coisa um caso judicial. Daí que inseriram os ovos da serpente: o anti-partidarismo – que nesses casos atende pelo incorreto termo apartidarismo – e a contrariedade a coisas que um movimento de massas não consideraria nem reputaria relevante, como se deu com a artificialíssima objeção à PEC 37.

Tão grande foi o descompasso entre o que os media diziam ser objetivos dos protestos e o que percebem as pessoas e vêem nas TVs, que a coisa revelou-se um tanto absurda. É complicado até para o mais rede globo dos seres negar que usaram de mão muito pesada no viés forçado que deram às coisas. As manifestações iniciadas pelo MPL não eram contra o governo, elas eram para além do governo.

O governo, este insistiu, inicialmente, na tolice de ver somente infiltrados a soldo para desvirtuarem os movimentos. Claro que infiltrados a soldo há muitos, porque Cabo Anselmo não é algo único, mas não é possível, tampouco que Cabo Anselmo seja 100%. Nesse ponto, a Presidente Dilma parece ter percebido com bastante acuidade de que se tratava, e disse haver boa-vontade em conversar com os proponentes reais, disposição de revidar o vandalismo puro e simples e vontade de aperfeiçoar o jogo político.

Sabiamente, o MPL denunciou a inautenticidade da virada à violência que se viu na maior parte dos protestos subsequentes aos momentos iniciais. Isso que se põe sob a sigla MPL quer tarifas de transportes adequadas e quer aprofundamento da democracia. Ora, isso convém aos integrantes deste governo que não tenham sido inteiramente capturados pela autoreferência ou pela inércia do salvador que se crê merecedor de sacrifícios diários no altar da celebração acrítica.

Seria inteligente que o núcleo a pensar o que foram melhoras evidentes nos últimos anos percebesse que seu projeto é deles e dos destinatários também, que são os manifestantes não voltados à porralouquice do contra todos e tudo e contra PEC 37 e outras irrelevâncias deste tipo. Os governantes não terão espaço para querer manter a autocracia. E não terão espaço para querer manter-se no governo se acharem que manifestações são nada, porque afinal eles seriam os depositários da verdade na condução de um povo incapaz de conduzir-se.

Haverá quem o perceba, espero eu. Porque, do contrário, a coisa toda volta a ser o substrato de apoio porralouca ao golpe que se dará contra a maioria, inclusive contra os que foram desempenhar patéticos atos de vandalismo. A parte vândala e pautada por uma lista de prioridade que parece advinda exatamente de onde estaria o alvo da manifestações, essa é massa de manobra clássica e sempre serve ao que se triunfante os porá em situação ainda pior.

Se a lógica formal fosse essa maneira divina de decifrar e expor a realidade, perceberiam todos que os movimentos não são, nem o pedido de derrubada de um governo, nem uma falsificação totalmente manipulada contra o governo. As manifestações – excluindo-se vândalos, infiltrados, neo-nazis e coisas do gênero – são vontade de participar na política, porque querem mais e não aceitam retrocessos, embora essa última negativa ninguém enfatize.

Para o governo hoje chefiado pela Presidente Dilma, o caminho mais sensato a trilhar passa por expurgar os elementos do governo que creem em simplismos e acham conveniente aliar-se à imprensa inimiga para tachar os manifestantes de alienados. E deixar de insistir em dizer -se aberto a conversas com movimentos organizados. Terá que falar com organizados e desorganizados, embora nunca tenha que conversar com criminosos, porraloucas ou nazistas a soldo.

Para a oposição, conviria que deixasse de achar sempre a melhor estratégia o quanto pior melhor. Além de ser facilmente identificável a patifaria, porque o comerciante em prejuízo não ouve conversa besta ideológica, a baderna não agrada a todos e nem sempre é eficaz pô-la na conta do governo, porque há contradições tão grandes que até a proverbial imbecilidade da classe média tem limites e é capaz de ver a farsa, quando evidente demais.

O que o povo quer, deve ser escutado. O mais difícil de tudo é que o médio classista ouve o que lhe diz quem não comunga com ele dos mesmos interesses. O médio classista é o sujeito que abomina o suicídio social, mas está sempre à beira dele por não pensar organizadamente com sua própria cabeça.

Hoje, manter tudo como está implica – a provar o dito proverbial do Príncipe de Salina, ou terá sido Tancredi, não lembro – mudar quase tudo. E, para desespero de quem tentou apropriar-se das manifestações e montar o cavalo selado, mudar tudo para manter tudo é dar mais uma volta nos parafusos da melhora de distribuição de rendas e principalmente no da democracia direta.

Antes do nada era qualquer outra coisa…

Há vários interlocutores condicionados por sistemas axiomáticos de matriz judáico-cristã com que tenho algum contato. Vez e outra, convidam-me ou insinuam o entabulamento de alguma conversa que será conduzida inexoravelmente para alguma coisa do velho texto da bíblia hebráica.

Uns dominam a axiomática derivada desses textos e alguma coisa de Aristóteles, além de terem sinceros propósitos conversadores, mesmo que cheios do final, ou seja, cheios previamente de verdades. Eles gostam essencialmente da conversa e devem achar bom o feed-back de lógica formal que não me é muito difícil dar-lhes.

Com esse primeiro tipo, converso de bom grado, evito os axiomas em si e fico pela laterais a saborear uma e outra operaçãozinha silogística em que conclusões fecham bonitinhas porque as premissas foram bem colocadas. Não ponho em causa as premissas, nem digo que afinal outras dariam conclusões também perfeitas.

Essas pessoas percebem mal que giram na regressão infinita ou, melhor dizendo, que evitam a regressão infinita como se fosse possível parar o infinito em apenas um dos lados.

Dia desses, meu interlocutor queria conversar sobre criacionismo e dizer que era absurdo o modelo do big bang – e tenho certeza que ele e eu ignoramos o Big-Bang na mesma e profunda medida – porque esta criação retrocederia ao nada.

Ainda pensei dizer-lhe que esse nada inicial era a mesma coisa que a Deidade inicial, estaríamos sempre e ainda com o modelinho causual aristotélico. Fôssemos com criação divina, fôssemos com Big-Bang, iríamos sempre tentar travar a regressão infinita num termo ou causa inicial. No fundo, era o mesmo, mas dizê-lo, assim sem mais, era apostatar e escandalizar o interlocutor contra que nada tenho.

Meu conversador indagava o que haveria antes do Big-Bang e isso não era armadilha intelectual, nem triunfalismo prévio do sujeito a gozar o esmagamento do outro por uma verdade pesada; era o dizer sincero de um homem preocupado com isso e disposto a encontrar alguém disposto à conversa e munido de algumas habilidades para o joguinho de causas, efeitos, exclusões.

Assim, ele fixava a criação divina, algo que não me escandaliza, nem me parece mais nem menos plausível que qualquer outra coisa. Mas, não digo isso, pelo menos a quem acho merecedor de respeito. E também não o digo a quem não acho merecedor de respeito, mas por razões diferentes, é claro.

O problema da criação é tão complicado que para mim é melhor posto como um não problema. Qualquer que seja a fórmula, ela é objetável pela evidente insinuação da regressão infinita, porque uma linha – e tempo pode ser precariamente visto assim – infinita não o é apenas num sentido, senão não seria infinita.

Se o sujeito tem fixação fetichista com começo, pouco importa onde o situe, mas importa logicamente que aceite um fim também. Como o fim não é aceite – nem na axiomática que crê numa parusia, posto que ela é fim num plano mas não no todo – o início tampouco é concebível: não há infinito só para um lado.

É claro que pôr um Deus ou o Big-Bang no início permite, para ambos, que se pergunte o que havia antes. Não é um Deus inicial que inibe a regressão, porque virá inexoravelmente a questão do que ensejou este Deus. Assim, no fundo, as duas proposições serão quase as mesmas, com diferenças de graus poéticos e públicos visados. Dá no mesmo, porque Deus ou Big-Bang, ambos podem ter ou não antecedentes.

Há, porém, outro tipo de sujeito conduzido pela axiomática religiosa, assim como outros conduzidos pelas variantes da religiosidade científica. Interessa-me o tipo conduzido pela axiomática judaíco-cristã que, ao invés de diretamente querer falar da criação a partir dos velhos textos genéticos quer transbordar seus valores vulgares a partir de frases feitas, de lugares-comuns, enfim.

Esse segundo tipo tem especial predileção por frases de efeito e especial aversão pelo pensamento um grau mais livre que a média do vulgo. É, basicamente, para não ficar a teorizar nem a colecionar exemplos muitos, o sujeito que gosta de dizer que política e religião não se discutem, que gostos não se discutem, que todo sujeito com mais de trinta anos torna-se conservador se não for burro, que um revolucionário acaba-se aos trinta anos e outras vulgaridades, tão comuns e aceites quanto tolas.

O colecionador de frases é o sujeito crente que as pessoas tendem a tornar-se ele e seus modelos e cheio de júbilo ao perceber um e outro caso que seriam gloriosas conversões próximas à mediocridade reinante e indicadora da normalidade a ser atingida.

Realmente, daria quilômetros de texto o estudo da satisfação do vulgo com o que ele acha oportunidades próximas de converter mais gente à vulgaridade. É a satisfação de quem antevê a conversão do que não compreende para o vocabulário escasso que adota, para o manejo de quatro ou cinco categorias imutáveis de moralidade de escravo, para a tendência ao linchamento e ao julgamento sumário.

O segundo tipo dessa gente caracteriza-se pela falta de autenticidade. São prosélitos da mediocridade, do conservadorismo que se quer disfarçar, da tendência à homogeneização pelo mais baixo, da inutilidade da liberdade de pensamento, do vale-tudo quando se tratar de manter-se a situação social.

Esta falta de autenticidade será revestida de uma mansidão de voz baixa e pausada que não revela conhecimento, mas cálculo frio de dissimulação da coleção de perfídias e baixezas que lhe suportam.

A tolice da frase feita deste tipo é não apenas tolice, mas um deleite de vingança. Os medíocres de todos os tempos e lugares vingam-se, e seu meio preferencial é vaticinar a estupidificação do que não aceitam não ser totalmente vulgar. É a raiva de tudo e todos não serem espelhos de si mesmos.

O homem excelente não se sente atingido por haver o vulgo: ele, talvez, lamente a vulgaridade, mas não a crê contra ele, nem quer ser prosélito do que é, para converter o vulgo. O vulgo, este quer e precisa que vulgares sejam todos.

Voltei, neste escrever, a Ortega y Gasset, como muitas vezes, sem achar que prodigalizo nesse retorno. O homem, referido aos valores, será nobre ou vulgar. Referido a si mesmo, será autêntico ou não autêntico.  

O segundo tipo que desenhei, em traços rápidos, é vulgar e inautêntico. Ele fala de valores moralizantes, o que equivale a falar de nada ou, no máximo, do que acha serem valores, a confundir subjetividades moralizantes e vontade mal disfarçada de homogeneização com valores.

O tipo não tem valores, tem apenas balizas e preconceitos de sobrevivência, recebidos de fora e assimilados sem pensar. Valores são categorias ontológicas e não são axiomas de matriz religiosa e tampouco anti-históricos.

O tipo está em desconformidade consigo próprio, é essencialmente inautêntico, porque insincero ao propor frases feitas e lugares-comuns. Ele não quer que essas tolices sejam modelos do homem excelente, ele quer que todos sejam ele, sem o dizer claramente. Ele proclama a tolerância sem acreditar em milímetro de tolerância e sem nunca ter pensado no que consiste isto.

Ele proclama que não há parâmetros e que gosto não se discute, o que é perto da máxima imbecilidade proponível e ao mesmo tempo não acredita nisso.

O segundo tipo, o axiomático inautêntico, nada discute, não tem gostos, tem raiva profunda e desejo de vingança profundo e fala mansamente. Ele é o tipo apto a vencer…

O Bispo alemão de Roma renuncia às funções. O subornado apaixonado e o culto são diferentes e semelhantes.

A renúncia do Bispo alemão de Roma às suas funções corporativas foi, por um lado, ato de grandeza: está velho, doente e com medo dos papéis que indicam atividades pouco edificantes do banco Vaticano e da corporação em geral.

Por outro lado, foi infame, pois revela pouca preocupação pelo antecessor, que foi deixado a fazer papel ridículo, a exercer o cargo fora de suas faculdades mentais e não teve a inteligência de fazer o mesmo que o sucessor fez.

Ambos trabalharam para o mesmo patrão. O primeiro, para quem quis perceber, era primário. O segundo, erudito e patife voluntário.

O primeiro teve êxito na derrubada do governo polonês e na lavagem de dinheiro que se fez a partir da P2, para tantos quantos se dispusessem a pagar o elevado preço cobrado pela Opera para branquear capitais.

Passou vinte anos a dizer tolices, que, na verdade, eram discurso ideológico pago pelos seus patrões.

Perto de morrer, o primeiro, que não era muito mais que um simplório apaixonado, teve clarões de grandeza. Tentou purgar-se antes de morrer. Em Cuba, iniciou o que seria grande em um pontificado pequeno e subornado. Disse que Cuba era ua questão Latino-Americana e, não, estadunidense.

A purgação do inocente – falta melhor palavra – que se vendeu é dramática. Ele conta palitos e digere com a raiva cara-a-cara de há quarenta anos. Uma e outra vez, os deuses dão-lhe a liberdade de ser homem, raramente, e ele fala…

O alemão dirigia os negócios do Estado chefiado pelo polonês. E dirigia a corporação no que é, para ela, mais importante que os negócios: o poder de estabelecer regras a partir de nada, ou seja, o poder de emular um criador.

O alemão tem a sorte dos cultos e inteligentes: sai de cena quando quer e lhe convém.

Cidadão de segunda classe. Ou, Sobrados e Mucambos precisa apenas de novos nomes.

Não me alongarei; tentarei ser o mais breve. A existência de garantias formais jurídicas serve ao Sobrado como amparo ao discurso de que nada mais precisa ser feito e que há igualdade no país. Mentira. Entre garantias formais e a efetividade delas, de maneira a superar ou diminuir a dicotomia com os Mucambos, vai longa distância.

Duas formas básicas de manter os Sobrados e os Mucambos são, primeiro, afirmar que não existe a diferença e, segundo, negar que o fosso mantém-se porque somos bandidos que consagramos garantias em lei, mas não damos a mínima para a efetividade delas. Os mecanismo formais que criamos para aparentemente dar efetividade às garantias, trabalham para os Sobrados.

Pois bem, terça-feira de carnaval é feriado no Brasil. Aqui, a legislação do trabalho prevê que haverá um dia de descanso semanal remunerado e que as jornadas não devem exceder a oito horas, com intervalo intra-jornada, se se quiser ficar no pagamento da hora de trabalho ordinária. E prevê que os feriados oficiais implicam o pagamento de horas extraordinárias, se o empregador quiser os empregados trabalhando.

Ou seja, o labor máximo por semana, a preço de hora ordinária, é de quarenta horas, assegurado, no mínimo, um dia de folga por semana. Quer isso dizer que se algum empregador quiser por seus empregados para trabalhar mais que quarenta horas ou para trabalhar em dia feriado, terá que pagar horas-extraordinárias.

Isso só vale para os funcionários e empregados dos Sobrados, todavia. Fomos, hoje, terça-feira de carnaval, almoçar em um restaurante chinês. Pelas tantas pergutei ao garçom se estavam pagando horas-extraordinárias, porque é feriado oficial. Ele disse que não.

Não pagam e isso parece normal. Normal, porque se o funcionário reclamar, é demitido e pronto. Mas, ele tem o direito, que está consagrado, inclusive, na constituição desse país demoníaco, em que a escravidão funciona mesmo quando todas as leis a proscrevem.

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