Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Psicologia social de mesa de café (Page 1 of 10)

A recompensa da tolice.

Recentemente, em Salvador da Bahia, um grupo de quatro pessoas jovens foi a um restaurante aparentemente sofisticado, para almoçar. Consta das notícias sobre o banal acontecimento que os convivas pediram vinho branco.

O vinho branco em questão, duas garrafas pedidas sucessivamente, foi um nobre produto da Adega Cartuxa, da Fundação Eugénio de Almeida, sediada no Alentejo.

Duas garrafas de Pêra Manca branco, pedidas banalmente…

Os convivas pediram a conta e ficaram, aparentemente, muito surpresos com o preço de cada garrafa, que foi de 1.650 reais, que eles disserem ter visto e entendido como sendo de 165 reais. Ou seja, um engano de um zero. É certo ir a restaurantes caros com a alma leve e desatenta para zeros.

Esta parte da surpresa e indignação com a conta foi filmada e lançada na plataforma de compartilhamento TikTok. Não vi o tal vídeo, somente li uma notícia sobre o acontecido.

A hipótese do engano, com a leitura errada do preço, é muito plausível, dado que se tornou elogiável ser desatento, superficial e despreocupado com o que quer que seja. O sujeito olha a carta e diz ao garçom: traz um desse.

O engano é muito mais plausível que a encenação planejada desde o início. Os convivas evidentemente não tinham qualquer idéia do que é uma Pêra Manca. Se tivessem, saberiam que custa caro.

A partir desta constatação, é tentador dizer que se tratava de quatro tolos superficiais desfrutando de suas superficialidades. E não deixa de ser isso precisamente, mas há mais coisas.

Se ainda vivêssemos por régua mais cartesiana, um episódio destes, em que as pessoas pedem coisas que não conhecem, seria mais um banal daqueles em que a ignorância gera o prejuízo financeiro.

Porém, dois amigos lembraram-me algo. Esse prejuízo deve ter sido indenizado pela plataforma TikTok, tamanho o número de visualizações que esta banalidade gerou. E, de fato, é bem provável que tenham sido de alguma forma recompensados pela tolice.

Aí está a insinuação do novo. Que as massas sempre cobram um direito à irresponsabilidade, ficou bem descrito estabelecido teoricamente desde o grande livro de Ortega y Gasset, na década de 1920 do século passado.

Nunca será ocioso esclarecer que massa, aqui, não é algo que se defina por classe social. Antes, é um tipo humano, uma forma de estar no mundo.

Cobram direitos sem obrigações correspondentes, acham que a abundancia material vem do nada, que as posições sociais são eternamente estáveis, sentem-se seguras, enfim. Veem piada na guerra, quando afinal conseguem vê-la aproximar-se, mesmo que ela se anunciasse aos gritos há anos.

Mas, o risco da tolice não era coberto por este estado mental. Esse risco ainda havia e meio como jogo. A tolice era um pouco como a vigarice. Se o embuste desse certo, ótimo, mas se desse errado que se suportassem consequências.

Não que tolice ou vigarice fossem desestimulados, que nunca foram. A tolice é um meio de controle social eficiente e a vigarice uma grande liberação de energia humana. Mas funcionavam num modelo causal mais ou menos previsível e não ensejavam recompensas quando vinham à tona.

Recompensar a tolice é tática genial na engenharia social de massas totalmente incapazes de pensamento crítico, autônomo e histórico e de ponderar riscos e a necessidade de esforços. Isto insere-se na lógica de cassino, ou seja, tudo pode vir a dar certo, a depender a sorte e da sagacidade do jogador.

Sagacidade é o termo certo, a afastar esforço e estudo. Ou seja, com sorte e a conjunção astral adequada, a tolice pode gerar recompensas.

A questão é que tipo de sociedade pode ser gerada quando estas crenças instalam-se…

O interesse fetichista por detalhes biográficos dos autores.

Este texto foi publicado originalmente em maio de 2013 e refere-se especificamente a Machado de Assis porque, na época, chamou-me atenção a insistência de um crítico em ver aspectos biográficos ocultos nas obras do autor. Como se as obras fossem peças de um código para se decifrar a psique enigmática do autor.

Esse fetichismo vem aumentando desde então e espraiando-se para subcelebridades como jogadores de futebol. Por isso, achei interessante a republicação.

Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.

A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.

Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.

Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.

O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.

Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.

Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.

Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.

Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.

O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.

É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.

O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade cultivados com imensa força.

O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.

Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.

A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.

Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.

O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.

O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.

O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.

Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.

É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.

Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.

De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.

É profundamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.

Cultura de Almanaque e mediocracia.

O homem médio manifesta, relativamente ao tipo superior, ressentimento. E, relativamente ao tipo inferior, manifesta ódio e desprezo. Para os tipos médios, o superior define-se mais intelectualmente que econômica e financeiramente, ao passo que o inferior define-se, basicamente, a partir do ponto de vista sócio-econômico.

No homem médio, o tipo que ele identifica – mesmo irracionalmente, à primeira vista – como superior causa-lhe um mal estar, que é a náusea de perceber algum intelectualismo que ele não alcança e considera, não sem algum acerto, esnobismo.

O tipo inferior, definido quase exclusivamente por parâmetros sócio-econômicos, é aquele que o homem médio gostaria de nem mesmo ser compelido pelo cotidiano a ver. Gostaria que não existisse, pura e simplesmente. Ele é o feio, desprezível, o perdedor que perde por vontade própria, eis que é necessário acreditar em igualdade de oportunidades. É, em suma, o tipo que pede dinheiro porque é preguiçoso, porque poderia estar a trabalhar por um prato de hidrato de carbono.

O ódio e o desprezo do tipo médio pelos inferiores é fenômeno de psicologia de massas de menor complexidade, quando comparado ao ressentimento sentido ante os definidos como superiores.

Como exemplo da primeira inclinação tratada, considere-se a postura que um médio empresário – um construtor civil cumpre a tarefa de caracterizar este tipo social – provavelmente apresentará ante um professor universitário. O médio empresário, no mínimo vinte vezes mais rico que o professor universitário, nutrirá ressentimento frente ao segundo, por sentir-se inferior a ele, mesmo que possua muito mais dinheiro.

Isto não parece surpreendente, quando admitimos que o critério de medida e comparação é, aqui, intelectual. Todavia, a surpresa reside precisamente no fato de o critério não ser puramente financeiro, que é o que se esperaria da proposição teórica dominante aceita pelo homem médio, inclusive.

A despeito de toda ênfase no material, a psicologia de massas implica outras variáveis mais sutis.

É necessário dizer e admitir que as classes dominantes liberais ajudaram muito a criação do homem médio ressentido, por um lado, e enfurecido, por outro. Isto manifesta a degeneração das classes dominantes liberais, pois no após segunda grande guerra elas mostraram-se muito habilidosas em lidar com o homem médio.

Elas deram-lhe a cultura de almanaque, a ciência de almanaque, as popular science e popular mechanics, os Manuais do Escoteiro Mirim, o midcult em humanidades, no modelo do romance exótico de Karl May.

Por meio deste pacote midcult, o tipo médio participava da ciência pelo conhecimento dos processos, mesmo que permanecesse à margem das causas. E, no que concerne às humanidades, sabia, mesmo sem profundidade, que havia grupos humanos diferentes nas longínquas Ásia e África.

Ele tinha um pacote cultural para chamar de seu, com bons vernizes e, embora continuasse a saber que havia uma upper culture, sabia-se de alguma forma inserido. Assim, até sua postura ante o tipo inferior era diferente, pois ela poderia ser parametrizada também culturalmente.

Mas, as classes dominantes liberais sucumbiram ao esnobismo de, mais e mais, ridicularizarem o midcult. E, assim, ajudaram a adubar o meio em que florescem os fascismos, tornando o tipo médio órfão de um pacote cultural para chamar de seu e o impedindo de seguir a definir seu pertencimento a partir de critérios culturais estabelecidos.

Claro que o homem médio ressentido ante o que identifica como superior e odioso ante o que identifica como inferior, buscaria o poder e o obteria, estabelecendo a mediocracia.

Deve-se negar ao dominador o conforto do soft power.

O controle social por meio de estruturas narrativas tem em seu estoque de meios a confusão permanente e controlada. É algo que teria uma metáfora razoável na reação nuclear em cadeia controlada por barras de grafite. Um processo meio arriscado, mas que gera muita energia.

A confusão permanente a que as pessoas são conduzidas impede-as de, criticamente, dissociar fatos e idéias que se ligam por nexos na verdade inexistentes. Por outro lado, a técnica impede as pessoas de associarem fatos e idéias obviamente conectados.

O que se vive é uma espécie de presente contínuo em que o ritmo é dado pela imprensa corporativa, que oferece fragmentos de realidades fáticas e oferece editorial, de forma a dar ao destinatário a cola que reunirá todo o sem sentido isolado. Isso dá um ritmo às vidas e gera dependência das pessoas.

O controle social por meio de narrativas em linguagem verbal e simbólica é o exercício ideal do soft power. Não somente mais eficaz, mas mais barato que o exercício do hard power, que, como o nome evidencia, implica a violência, verbal ou física, ou ambas juntas.

O problema maior da necessidade de se recorrer ao hard power é evidenciar que houve ruturas irreparáveis e que há quem negue, veementemente, legitimidade ao modelo dominante e o rejeite integralmente. Significa, enfim, que há que esteja percebendo por outros filtros e racionalizando por outras lógicas.

Sociedades com assimetrias sociais muito pronunciadas – como é o caso do Brasil – e com populações muito numerosas, recorrem a técnicas sofisticadas de controle social que permitam seguir adiante a apropriação brutal do feito por todos por um pequeno grupo. Isso deve ser feito sem que o explorado perceba-se como tal. Ou seja, é preciso criar o normal. Todos os processos devem ser normalizados e mesmo naturalizados.

Assim, cria-se ou delimita-se o campo de ação das pessoas sobre algum processo político. Ele está previamente dado por um certo número de abordagens pre-concebidas e todas tributárias da matriz levítica platônica. Todo o background teórico a partir de que as pessoas observarão o processo será moralizante.

A narrativa jurídica serve a este propósito normalizador, evidentemente. Para que isto funcione, no campo do controle social, é necessário que seja cultivado sem cessar o mito da imparcialidade da burocracia judicante, da mesma forma que se incensa este mito relativamente à imprensa corporativa.

Aceita a premissa de que estes campos do judicial e da imprensa corporativa regem-se por regras que asseguram o exercício de suas funções  imparcialmente – ou pelo menos que a imparcialidade seja preponderante – os resultados possíveis de qualquer embate estão previamente dados. Assim, o contraponto está previamente capturado. 

Os grupos contra dominantes centram suas narrativas na surpresa com a parcialidade de certas máquinas e em apontar incoerências internas a elas, o que é ineficaz em termos de contraponto. O ataque a modelos narrativos a partir de suas contradições é feito dentro dos modelos e, assim, não constitui suas negações.

Houve, no Brasil, um golpe de Estado que visou, basicamente, a duas finalidades: 1) alienar a soberania e as riquezas nacionais; e 2) conduzir um processo de reempobrecimento das classes baixas que melhoraram seus níveis materiais de vida entre 2002 e 2014. As duas finalidades vem sendo plenamente atingidas.

Há, por outro lado, grupos que se põem contra o golpe e suas finalidades. Mas esse contraponto tem muito pouca eficácia. Primeiramente, como algo originalmente planeado desde fora do Brasil, o golpe tem poderosíssimos suportadores. Neste ponto, convém dizer que os destinos brasileiros estão a depender muito mais da grande geopolítica que de qualquer coisa ou movimento interno.

Enquanto o império estadunidense tiver tempo a dedicar às desestabilizações na América do Sul, nós estaremos à mercê delas, sem muito a poder fazer. Todavia, esta dependência evidente dos processos mundiais não significa a total inexistência de um campo de atuação minimamente eficaz.

Esta ação implica compelir as forças dominantes a recorrerem ao hard power. Devem ser levados a exercerem a violência – verbal e física – abertamente, pois que um movimento brutal deve praticar brutalidades. Se ficam os dominantes a agirem no campo narrativo, sem necessidade de dar à luz a brutalidade pura, eles mantém-se tranquilamente.

O reempobrecimento avassalador dos grupos que tinham obtido significativas melhoras obrigará, por um lado, que o emprego da violência física torne-se mais intenso que já é. Mas este, disfarça-se em controle de criminalidade.

A brutalidade evidencia-se quando os grupos contra dominantes rejeitam, pura e simplesmente, as pretensões da institucionalidade. Rejeitam o jogo e suas regras aparentes, não recorrem aos seus meios de solução de conflitos e dizem as coisas claramente e sem a indignação que fica bem nos ingênuos.

As eleições que se realizarão em outubro de 2018, no Brasil, inclusive para escolha de presidente da república, não ocorrerão em ambiente normalizado institucionalmente. Elas seguem-se a um golpe de Estado e trazem este vício de origem. Quem as conduz pretende um resultado, que é qualquer um exceto um postulante nacionalista.

Um certame eleitoral assim não é legítimo, exceto se pudesse concorrer nele o ex-presidente Lula. Ele não concorrerá, evidentemente, porque não se dá um golpe de Estado tão sofisticado para levar o contra golpe apenas dois anos depois. 

Ora, os resultados são previsíveis, pois o processo é essencialmente viciado em tem objetivos claros. Não há ações que sejam demasiadas, nem ações de que o grupo dominante seja incapaz de adotar. Tudo é possível e tudo vale para seguir o projeto do golpe de alienação de soberania. Não haverá recuos, agora, por conta de escrúpulos jurídicos, por exemplo.

Assim, a única negação minimamente eficaz é aquela que se dirige contra o modelo. Se o processo é viciado, não se deve concorrer nele. Esse é o ataque mais veemente que se pode fazer, ou seja, negar o modelo e obrigá-lo a desnudar sua brutalidade.

Oziris Silva, apogeu e crepúsculo.

Em que pese o equilíbrio dentro das forças armadas, a Força Aérea ainda pode ser considerada símbolo de elegância. Ela surgiu no Brasil em 1941, quando se uniram a aviação naval e a aviação do exército. Veio a ter protagonismo internacional quando, em 1944, participou da 2ª grande guerra junto a Força Expedicionária Brasileira.

Foi nessa “arma” que ingressou o hoje Coronel da reserva Ozires Silva, filho de funcionários da Companhia Paulista de Eletricidade. Ele saiu de Bauru em 1947, aos 16 anos de idade, querendo formar-se engenheiro aeronáutico. Um apontamento que acho bastante interessante fazer é que a engenharia aeronáutica, naquele momento, logo após a segunda guerra mundial, era uma carreira absolutamente nova e sem muitos parâmetros, algo semelhante, mesmo que de bem longe, com a computação há trinta anos atrás…

Oziris Silva, acompanhado de um amigo, foi de casa para um Rio de Janeiro então mais romântico. Com relação ao Rio de Janeiro, as pessoas que andam à volta da idade atual de Ozires, 87 anos, lembram-se de suas escolas públicas como centros de ensino não somente de qualidade, como também de excelência.

Essas informações são importantes porque objetivamente definem o pensamento do Coronel, ao situá-lo cronologicamente. Este pensamento foi moldado, portanto, bem antes de “Uma Teoria da Justiça” (1971) de John Rawls, livro que veio definir o liberalismo moderno como modelo de solidariedade sentado em cima do Estado de bem estar (Wellfare State) e é o que de mais importante foi escrito nos Estados Unidos da América desde os Federalist Papers em termos de teoria política.

E foi moldado logicamente antes também do livro de Robert Nozick, “Anarquia, Estado e Utopia” (1974) que assentou as bases do libertarianismo, usando como trampolim o liberalismo clássico inglês (utilitarismo) e que as pessoas hodiernamente confundem com uma forma generalista, e portanto equivocada, do que seja “liberalismo”.

No dia 18/06/2018, Ozires Silva concedeu uma entrevista interessantíssima ao programa de televisão Roda Viva. Este programa televisivo é produzido pela TVCultura de SP que, por sua vez, é gerida pelo partido político PSDB no mesmo Estado. A política deste grupo é, via de regra, vender soberania para perpetuar algumas pessoas no poder político paulista, num tipo de neo-coronelismo da política brasileira, supondo-se de direita.

Uma das coisas mais interessantes sobre o entrevistado, porém nunca levantada, é que ele participou ativamente do período ditatorial brasileiro, em que aconteceram muitas torturas. Ora, a despeito de ser militar e de ter servido ativamente na época ditatorial, não pesa sobre ele nenhuma acusação. Essa inexistência de suspeitas sobre Ozires, com relação a participação em atos violentos não se deve a ter sido da aeonáutica, já que o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) no Rio de Janeiro servia efetivamente como “ponto de tortura”.

O fato é que além das reprensões “naturais” a movimentos sindicais, inclusive a uma greve na Embraer que ficou famosa em 1984, não paira sobre Ozires a sombra da tortura. E só isso já fala muito sobre a pessoa dele.

Todos esses apontamentos foram necessários para fazer o que para mim seria a observação mais importante sobre a entrevista. Percebe-se que em seu decorrer, vai-se desenhando um Ozires que não existe e, a certa altura, tanto o entrevistado como os entrevistadores começam a falar sobre empreendedorismo e forças de mercado.

É claríssimo que Ozires é um empreendedor nato, hábil e bem sucedido, tanto quanto é claro que o sucesso dele se deve muito pouco a “mercado”, “empreendedorismo”, “meritocracia” e seja lá o que for. A compreensão de que a Embraer, criada em 1969, tem mais a ver com o ímpeto de um jovem militar bem formado por escolas públicas de qualidade, proveniente de uma família de funcionários públicos (que então significava uma grande vantagem), e com um ímpeto nacionalista que talvez hoje esteja um pouco adormecido é primordial.

Diz Ozires que existiu uma reunião com o então presidente da república, um militar, para convence-lo a fabricar aviões. Eu não estava na tal reunião com o presidente, mas tenho uma certeza quase absoluta de que dentre as muitas coisas aventadas naquele momento, absolutamente nenhuma foi: vamos dominar o mercado. Isso em momento algum foi mencionado. Não obstante, algumas outras coisas eu acredito piamente que tenham sido mencionadas como, por exemplo, estratégia, defesa, investimento público, aquisição de tecnologia, tudo isso embalado num patriotismo, que sim, os militares tinham (muitas vezes usado de forma errada, mas tinham).

Esse tipo de relação onde existem investimentos públicos a financiar direta ou indiretamente negócios privados não é novo, inclusive perdura até hoje e é condição quase que sine qua non para os “empreendedores” pátrios obterem sucesso e/ou expandirem seus negócios. A novidade no caso de Oziris, é que ele não utilizou os recursos em empresa própria e construiu com recursos públicos um empreendimento tão grandioso quanto nacional.

Então, a entrevista, assim como a pessoa, impressionam de duas maneiras absolutamente distintas, uma por sua história absolutamente fantástica, outra pela história que querem atribuir-lhe, e que, pra minha decepção, ele aceita de bom grado, tornando quase irrelevante, de maneira irresponsável, uma conjunção de fatores decisivos para que o menino de Bauru se tornasse o criador da Embraer.

Deixo abaixo a entrevista, que de fato, é boa:

Por medo e ignorância.

A classe média é o eixo de transmissão do poder. Não é ela que toma as grandes decisões, evidentemente, mas é ela que permite executar os planos dos reais detentores do poder; é instrumental, enfim. Isso deve-se, em parte, ao fato de ocupar os postos chaves da burocracia estatal.

Nesta classe estão os formuladores de narrativas de justificação do governo no interesse do grande capital, como são os acadêmicos e os jornalistas de ocasião, por exemplo. Essas personagens são necessárias para o estabelecimento do domínio mais ou menos pacífico das grandes massas de pobres e remediados.

Em geral, os indivíduos não têm consciência da articulação da classe nas estruturas que conformam o real e dão fluxo ao exercício do poder. E tampouco costumam ter consciência de seus papéis individuais intra-classe. Essa falta de percepção, ou percepção parcial e confusa, é fundamental para o bom desempenho de seus papeis esperados.

O ponto central é agir estritamente dentro da lógica da luta de classes, mas em mão única e sempre a negar a existência de luta de classes.  Esse grupo é levado a isto por obra da imprensa corporativa que, praticamente, tem apenas esta classe como público alvo, porque os extremos não precisam ser convencidos de nada e seria demasiado caro construir três narrativas distintas.

O medo e a ignorância, características destacadas desta classe, ajudam bastante na tarefa de levar o grupo a trabalhar pelos interesses dos de cima e para travar os avanços dos de baixo. Convém fazer a ressalva de que essa instrumentalização não significa que a classe média não atue por seus próprios interesses, embora os resultados para a classe dominante sejam maiores.

Os médio classistas são levados a identificarem-se com os estratos superiores, o que se percebe até na simbologia visual, ou seja, nos trajes e nos trejeitos que emulam. Acreditam numa comunhão de interesses, que seria baseada na aliança contra os de baixo. Sucede que a parte que lhe cabe na apropriação dos resultados do trabalho é muito menor que a destinada à classe dominante. E a desproporção é tamanha que bastaria para despertar quantos pensassem com as próprias cabeças.

São como feitores de fazendas, prontos a servir aos interesses do fazendeiro e açoitar os trabalhadores, em troca de pouco, materialmente, e da honra de sentar-se na mesma mesa uma ou duas vezes por mês. Fazer tais serviços implica um nível muito baixo de auto percepção, além de necessidades materiais, claro.

Ela vive a luta de classes, uma realidade tão tangível que precisa ser constantemente negada. Essa vivência dá-lhe medo das grandes massas, que anseiam por ganhos materiais na proporção em que quase tudo lhes falta. A classe média é suficientemente sagaz para perceber que alguma redistribuição pode ser realizada em cima da sua parte da apropriação e teme.

A contradição surge na percepção das relações com o grupo que está acima. Embora também tenha medo dos de cima, não é da mesma forma que teme os de baixo, pois há um elemento reverencial, próprio do medo que se tem do que se anseia ou se tem por modelo ideal. Não se percebe a luta de classes nesta relação entre médios e altos, para enorme benefício dos que estão em cima.

O médio classista tende a ser conservador e a acreditar, assim, que as coisas são de tal maneira porque são e não poderiam ser diferentemente. Por trás desse simplismo, claro, há vários argumentos e narrativas de justificação do é assim porque é, para que essa petição de princípios e primarismo abissal não se mostrem tão claramente. Haverá, sempre, o recurso ao que se convencionou chamar meritocracia, que é nada mais que inércia social.

Essa negação da luta de classes conduz, eventualmente, o grupo a buscar perdas para ele mesmo. Às vezes essas perdas são suportadas por causa da recompensa que é ver os mais de baixo perderem mais, porém nem sempre esse deleite demofóbico é capaz de anestesiar totalmente os efeitos do próprio retrocesso.

A desestabilização política no Brasil foi obra planejada desde fora. O consórcio entre imprensa corporativa e sistema judicial comandou as ações que culminaram no golpe de Estado e no caos que sobreveio. E nessa operação a classe média teve papel fundamental, pois foi ela a agente incansável no exercício dos micropoderes pouco percebidos.

Sucede que o caos é funcional ao projeto externo de apropriação de riquezas naturais, mas não é interessante para a classe média, principalmente acompanhado de depressão econômica e destruição programada do Estado.

 

 

 

O caos é uma face visível da superestrutura.

O processo político brasileiro atual não oferece a previsibilidade que os costumeiros analistas tentam apreender e expor. Ele só tem alguma previsibilidade no âmbito macro, se olhadas as coisas mais ao de longe, mirando-se as linhas mais gerais, nos seus aspectos geopolíticos, ou seja, nas articulações com interesses maiores e externos.

No plano micro, aquele das jogadas e movimentos cotidianos, oferece-se o caos e um nível elevado de imprevisibilidade. Isso mostra-se claramente no uso constante da expressão blindagem e na surpresa quando se verifica o levantamento desta blindagem relativamente a certas personagens, que são deixadas a arderem nas fogueiras da inquisição moralista pela imprensa e pelo subsistema judicial.

O interessante, realmente, é a surpresa tida com o efeito guerra total a que se chegou, presentemente. Esse efeito não se pode dizer resultado de um planejamento prévio meticuloso que antevia todas as fases do processo com boa definição e ordenação. Mas, ele é um efeito necessário da forma de domínio estrutural que há. Neste sentido, o caos – e pouco importa qualificá-lo aparente ou não – é produto da superestrutura e previsível sua instalação.

Que haveria caos era esperado, tanto porque os movimentos golpistas desestabilizariam um país grande e complexo, quanto porque o caos em si é um elemento estratégico. Mas, os movimentos intracaóticos, táticos e estratégicos, não tem um nível de previsibilidade que permita análises micro para além da narrativa do já acontecido.

É preciso identificar e isolar os grandes objetivos que subjazem ao movimento golpista no Brasil, para não se cair na mera narrativa do cotidiano, com a identificação de um e outro ponto tático: alienações de soberania e de riquezas naturais. Esses são os movimentos por trás de toda a dinâmica posta em marcha, em que o caos interno da guerra de todos contra todos é a face visível.

Os agentes locais da desestabilização do país – não apenas das formas democráticas – concorrem por poder e dinheiro, duas coisas que veem, ou de fora, ou do Estado brasileiro, ou das outrora grandes corporações privadas nacionais. Era previsível que esta concorrência se acirrasse a ponto de atingir a guerra ampla e, em alguns casos, a autofagia por erros táticos e estratégicos comuns nos processos demasiado vertiginosos.

Notadamente nas corporações públicas, percebe-se avidez crematística sem precedentes, exatamente no momento em que o Estado tende a reduzir-se, de forma geral, e em que reduz-se drasticamente a arrecadação, especificamente, o que é uma consequência obvia do ambiente recessivo. O nível de apropriação financeira a que chegou o subsistema judicial é insustentável e o grupo deve percebe-lo, o que talvez explique a lógica de levar ao máximo o mais rápido possível.

A obtenção de poderes formais ampliados é condição necessária do aumento da apropriação dos recursos do Estado. Para tanto, foram necessárias bodas com a imprensa corporativa, que é o cônjuge mais poderoso, embora se esforce para não o evidenciar. Desse casamento surgiu o slogan moralizante fundador: na política todos são iguais e sujos. Era necessário instalar esse moralismo esquizofrênico.

Todavia, convém lembrar que tudo isso é política e, assim, não se mata a política, nem se a refunda redimida de pecados. Apenas promove-se a troca dos ocupantes de certos postos ou se tenta a instalação do Estado corporativo, que atendia por outros nomes em tempos pretéritos. E a habilidade política dos políticos em sentido estrito tende a ser superior à dos demais agentes que se aventuram na atividade, sem antes terem pedido votos.

Fora de dúvidas neste panorama é que a dinâmica caótica seguirá como força condutora do processo por mais tempo e não parece ser pouco. E que, assim postas as coisas, os objetivos de alienação de soberania e de riquezas serão atingidos.

 

A outra face da narrativa meritocrática: a culpa.

Não é simples o sistema que subjaz ao estado de aceitação pelas massas de medidas que pioram evidentemente suas situações social e econômica. Há uma narrativa bem construída com técnicas consagradas de engenharia psico-social, que prepara o terreno para que as pessoas – em maiores e menores proporções, consoante suas porosidades à imprensa corporativa – aceitem o saque do pouco que têm.

Apenas o discurso das medidas amargas necessárias para que se abra uma era futura de bonança não é suficiente para que alguém aceite perdas drásticas. É preciso que uma narrativa mais sutil instile nas camadas psíquicas menos dependentes de linguagem a tendência a aceitar o discurso da necessidade do que é contra si mesmo.

Esse papel cabe à culpa, a face reversa do mérito. Se Deus dá tudo e tudo retira, o mérito dá e a culpa retira. Ou, mais precisamente, a culpa permite que se aceite a retirada e o seu discurso de justificação. É o alicerce pouco consciente – mas já conformado em linguagem, evidentemente – sobre que serão depostas e assimiladas as camadas narrativas da necessidade de sofrer.

É sofrer a expiação de um mérito que a sinceridade mais interna – aquela que aqui e acolá revela-se involuntariamente – sabe inexistir. O mérito que pouco é mais que inércia, que é muito próximo a acaso ou que é realmente mérito na detenção da arte de tripudiar, esse mérito o meritocrata tem contato com ele, intimamente, dentro de si mesmo. Nessas ocasiões, não há mentiras.

Essa sinceridade – digamos interior, por falta de palavra melhor – entre em choque com a narrativa cuidadosamente arrumada em linguagem, a que se projeta. Desse choque surge a culpa e estão dadas as condições para a aceitação da piora, quase como uma penitencia ritual.

 

 

Condutores conduzidos.

Os mitos da racionalidade objetiva e do controle e previsibilidade integral dos processos históricos, políticos e econômicos levam muitos à perplexidade, porque a história insiste em desautorizar o sacrifício em homenagem a estas crenças. Esses mitos seriam atributos inerentes aos detentores do poder, sendo indiferente que se acredite terem poder por terem essas qualidades ou, antes, terem essas qualidades por terem poder.

O poder não se encontra onde parece evidente; ele é fugidio como são as forças difusas inerciais. Não é a reunião de núcleos individuais, embora as forças individuais intensas sejam um dos componentes a lhe dar inercia. Não provém, tampouco, apenas da detenção de riquezas imensas, porque as riquezas sem uma narrativa de justificação não produzem poder ou o produzem fraco.

A perplexidade que frequentemente se produz advém de se ver gente supostamente integrante de núcleos de poder – mesmo que em escalões baixos, como minions – a agir contra os próprios interesses econômicos, o que, de acordo com o senso comum, é a negação da racionalidade objetiva.

Isto significa que eles – os detentores e exercentes do poder – guiam-se por atitudes religiosas e desejos, a par com o que se consagrou chamar racionalidade objetiva. E significa também que a previsibilidade e o controle, se existem e são possíveis, são coisas distintas do que se diz serem. E, mais importante, significa haver muito de inércia e acaso por trás das situações privilegiadas destes detentores de poder, pelo menos daqueles de escalões médios e baixos.

Há uma metáfora que se aplica a isto: a do traficante de cocaína que é viciado em cocaína. O sujeito que vende o que acredita bom.

Mas, não há indicativos de que este processo difuso inercial, que é o poder, pudesse ser diferente. Até porque ele é essencialmente concentrador e livra-se por centrifugação dos integrantes acessórios, em velocidades cada vez maiores. Curioso é que estes indivíduos acessórios, mesmo após expurgados do processo, seguem a professar sua fé no sistema que os veio a descartar, o que é mais um elemento a desdizer a incensada racionalidade objetiva a presidir as ações.

Viram-se muitos indivíduos pequeno, médio e grandes empresários brasileiros fervorosamente a favor do afastamento do modelo de capitalismo meio inclusivo com foco em mercado interno promovido pelo Presidente Lula e, em menor escala, pela Presidente Dilma. Festejaram o êxito. Agora, seus negócios tornam-se menos rentáveis, porque o golpe só visou a favorecer, em larga escala, o esquema financista, o que era previsível.

Nada obstante, ao contrário de arrependimentos, como muitos querem ver, há perplexidade, como se algo tivesse dado errado por razões nebulosas de políticas econômicas. Nada deu errado, na verdade, porque o anunciado e realizado destinava-se, no plano interno, à destruição do poder de compra das massas, em detrimento delas – evidentemente – e de quem a elas vende.

Mas, significativa parcela dos que tem o poder econômico é, ao mesmo tempo, condutora e conduzida e incorporou o que a imprensa difundiu, sem qualquer filtro crítico. O ódio, algo que os realmente dominantes terceirizam para os médios e pobres, passou a guiar gente que se supunha capaz de racionalidade objetiva. Agiram como se comungassem dos interesses do sistema financeiro, como se fossem todos banqueiros ou se pudessem tornar.

À semelhança do que ocorre com a maioria das classes médias, seu único consolo será ver os pobres e miseráveis perderem mais…

 

 

Narcisismo é a neurose do tempo espetacular.

Não disponho de conhecimentos em psicanálise freudiana e lacaniana que me permitam, nem me sugiram, falar de narcisismo sob esta perspectiva pura. Narcisismo, embora impreciso e ambíguo conceitualmente, será usado sem pretensões de rigor teórico, portanto.

Identifico muito essa subjetividade narcísica com puerilidade, com desenvolvimento incompleto das pessoas mental e corporal. Pode ter algo a ver com substituição de pulsões e parece-me razoável supor que o narcísico tem muito a ver com a ausência de uma erótica, por ele substituída.

Em perspectiva psico-social, o espelho não é sua melhor metáfora, embora pictoricamente não haja outra mais bela e sugestiva. A parede é sua melhor metáfora, porque é o que faz a reflexão do som, veículo físico do discurso. No discurso, mais que na gestualística ou na indumentária, manifesta-se evidentemente o narcisismo como motor da ação. Esse discurso, na verdade, não é comunicação, ele não tem nem precisa de dialeticidade alguma.

O narcísico não precisa de aprovação ou desaprovação, ele precisa discursar, deitar fora uma narrativa que ele escuta atentamente, para ajustá-la mais e mais à sua satisfação, ao seu gozo de impor um discurso que não demanda feed back. Ao prazer narcísico basta obrigar o outro a escutar o discurso, via de regra uma narrativa dentro do acervo de taras normalizadas do emissor.

Nisso, faço um pequeno parêntesis para dizer que precisamente no aspecto antes apontado o narcisismo é muito cansativo nas relações cotidianas, pois leva pessoas a falarem longamente e frequentemente suas invariáveis taras.

Confunde-se com oportunismo, se pensarmos em móveis da ação humana que visa a prestígio e protagonismo, principalmente em momentos de confusão que, na dinâmica espetacular, tendem a ser todos. O discurso narcisista destaca-se, nesses dias atuais de golpe de Estado no Brasil.

A forma que assume é de análise arguta das sutilezas dos movimentos táticos acontecidos no processo. E esta análise é sempre conduzida no âmbito jurídico, segundo a lógica de tribunal, numa dialética previsível em que antecipações de movimentos pequenos são anunciadas como o caminho para as Índias.

 É interessante notar que essas análises descritivas são muito sagazes e corretas, no que são descritivas de um aspecto marginal do processo, geralmente bastante previsível, o jurídico. É o prazer do jogador de tabuleiro, enfim, de que o enxadrista é o protótipo. Jogo chato e tendente à autocelebração, foi alçado a grande metáfora da inteligência…

Esse despejar de analises descritivas argutas, precisas, que apontam o que houve e porque e dizem o que haverá em seguida no microssistema jurídico, é muito narcísico e o não comportar objeções evidencia-o. Não são coisas objetáveis porque geralmente exatas, factuais e não teóricas ou argumentativas. Claro que o analista não aceitará que sua análise descritiva não é uma proposição teórica ou mesmo que não é mais que constatação pontual, mesmo que inteligentemente construída.

Na situação política atual do Brasil, o predomínio deste jogo circular que toma o jurídico como âmbito exclusivo será danoso para a compreensão do processo político e histórico e retardará, senão impedirá, alguma reação ao projeto entreguista do país. Por outro lado, é receita quase certa de sucesso fugaz para seus praticantes, que brilham no ambiente espetacular que adora os narcisismos difusos.

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