Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Poesia (Page 4 of 6)

Uma faca só lâmina, ou serventia das idéias fixas, de João Cabral de Melo Neto.

O poema é muito extenso e o mais belo que há. Por isso, transcrevo apenas a primeira parte.

Poesia fria e anti-condoreira. Profundamente histórica, embora não o pareça à primeira vista. Impossível para quem não tenha algum ponto de contato com ela. Tão bem conformada que somente depois de algumas leituras percebe-se de que matéria fez-se.

Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

Dos versos íntimos, de Augusto dos Anjos.

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro da tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto.

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Orla marítima, de Ruy Belo.

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo das avenidas
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Como sacanear um poema.


José Luís Peixoto em seu livro “Uma Casa na Escuridão*”, escreveu isso que Antônio Abujamra cita, não que seja uma citação ruim, afinal de contas foi a partir dela que eu cheguei no José Luis. Mas afinal sabendo-se que na verdade, a citação “completa” fala mais de amor do que de filosofia e/ou desengano, o que cabe melhor!? Talvez a obra toda seja a melhor pedida, de qualquer forma, vai outra citação, com esse mesmo trecho escolhido pelo Abujamra.

EXPLICAÇÁO DA ETERNIDADE

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.
os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
por si só, o tempo nao é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe,
no entanto, a eternidade existe,
os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos,
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
foste eterna até o fim.

José Luís Peixoto (Galveias, Portalegre 4 de setembro de 1974, Portugal), é um escritor e dramaturgo português.

* – O nome do livro, após pesquisas incansáveis, vi que podem ser dois “Uma Casa na Escuridão” e “A Casa, A Escuridão”. Aviso para que ninguém pague pelo meu erro.

Exorcismo, de Carlos Drummond de Andrade. Uma ode anti-obscurantista?

Exorcismo

Carlos Drummond de Andrade

Das relações entre topos e macrotopos

Do elemento suprassegmental,

Libera nos, Domine.

Da semia

Do sema, do semema, do semantema,

Do lexema,

Do classema, do mema, do sentema,

Libera nos, Domine.

Da estruturação semêmica,

Do idioleto e da pancronia científica,

Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,

Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais,

Libera nos, Domine.

Do vocóide,

Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal,

Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico,

Libera nos, Domine.

Da leitura sintagmática,

Da leitura paradigmática do enunciado

Da linguagem fática,

Da fatividade e da não-fatividade na oração principal,

Libera nos, Domine.

Da organização categorial da língua,

Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos,

Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua,

Da ortolinguagem,

Libera nos, Domine.

Do programa epistemológico da obra,

Do corte epistemológico e do corte dialógico,

Do substrato acústico do culminador,

Dos sistemas genitivamente afins,

Libera nos, Domine.

Da camada imagética

Do estado heterotópico

Do glide vocálico

Libera nos, Domine.

Da lingüística frástica e transfrástica,

Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual

Da clitização pronomial obrigatória

Da glossemática,

Libera nos, Domine.

Da estrutura exossemântica da linguagem musical

Da totalidade sincrética do emissor,

Da lingüística gerativo-transformacional

Do movimento transformacionalista,

Libera nos, Domine.

Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock

De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

De Zolkiewsky, Jacobson, Barthes, Derrida, Todorov

De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

Libera nos, Domine.

Dentro da perda da memória, de João Cabral de Melo Neto.

Dentro da perda da memória

uma mulher azul estava deitada

que escondia entre os braços

desses pássaros friíssimos

que a lua sopra alta noite

nos ombros nus do retrato.

E do retrato nasciam duas flores

(dois olhos dois seios dois clarinetes)

que em certas horas do dia

cresciam prodigiosamente

para que as bicicletas de meu desespero

corressem sobre seus cabelos.

E nas bicicletas que eram poemas

chegavam meus amigos alucinados.

Sentados em desordem aparente,

ai-los a engolir regularmente seus relógios

enquanto o hierofante armado cavaleiro

movia inutilmente seu único braço.

O vento no canavial, de João Cabral de Melo Neto.

Não se vê no canavial

nenhuma planta com nome;

nenhuma planta maria,

planta com nome de homem.

É anônimo o canavial,

sem feições, como a campina;

é como um mar sem navios,

papel em branco de escrita.

É como um grande lençol

sem dobras e sem bainha;

penugem de moça ao sol,

roupa lavada estendida.

Contudo há no canavial

oculta fisionomia:

como em pulso de relógio

há possível melodia,

ou como de um avião,

a paisagem se organiza,

ou há finos desenhos nas

pedras da praça vazia.

Se venta no canavial

estendido sob o sol

seu tecido inanimado

faz-se sensível lençol,

se muda em bandeira viva,

de cor verde sobre verde,

com estrelas verdes que

no verde nascem, se perdem.

Não lembra o canavial

então, as praças vazias:

não tem, como têm as pedras,

disciplina de milícias.

É solta sua simetria:

como a das ondas na areia

ou as ondas da multidão

lutando na praça cheia.

Então, é da praça cheia

que o canavial é a imagem:

vêem-se as mesmas correntes

que se fazem e desfazem,

voragens que se desatam,

redemoinhos iguais,

estrelas iguais àquelas

que o povo na praça faz.

A Portugal, de Jorge de Sena.

Sena teve as razões dele, claro. Dele e de um tempo dele. É amaríssimo o poema abaixo.

Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não, nem é ditosa porque o não merece,
nem minha amada, porque é só madrasta
nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
Quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela
Saudosamente nela,
Mas amigos são por serem meus amigos
e mais nada.
Torpe dejecto de romano império,
Babugem de invasões,
Salsujem porca de esgoto atlântico,
Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
De mesquinhez, de fátua ignorância.
Terra de escravos, de cú para o ar,
Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
Terra de funcionários e de prostitutas,
Devotos todos do Milagre,
Castos nas horas vagas, de doença oculta.
Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
E santos com balcão de secos e molhados,
No fundo da virtude.
Terra triste à luz do Sol caiada,
Arrebicada, pulha,
Cheia de afáveis para os estrangeiros,
Que deixam moedas e transportam pulgas
(Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa.
Terra de monumentos
em que o povo assina a merda
o seu anonimato.
Terra-museu em que se vive ainda
com porcos pela rua em casas celtiberas.
Terra de poetas tão sentimentais
Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
Terra de pedras esburgadas,
Secas como esses sentimentos
De oito séculos de roubos e patrões,
Barões ou condes.
Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
Eu te pertenço.
És cabra! És badalhoca!
És mais que cachorra pelo cio!
És peste e fome, e guerra e dor de coração!
Eu te pertenço!
Mas seres minha, não!

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