Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Poesia (Page 3 of 6)

Morte e vida severina, na visão de Chico Buarque.

O vídeo tem nítido contorno político, assim como teve a interpretação de Chico desses versos divinos de João Cabral de Melo Neto.

A questão enseja essa abordagem porque a divisão das terras no Brasil ensejou e enseja muita pobreza e muita violência.

A poesia cabralina não era motivada politicamente, todavia, e o poeta não se agradou da abordagem de Chico, embora a tenha autorizado.

Dificuldade de governar, de Bertold Brecht.

1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2

E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

O Profeta de Meca, analfabeto, foi superior à dogmática cristã.

Este não é um texto religioso. Não é contra nem a favor de qualquer dos monoteísmos de raiz semítica. Eu, que o escrevo agora, acho-os, esses monoteísmos, limitantes e pouco originais. Na verdade, converteram-se em tentativas de apreensão do irracional pelo racional e em meios de controle social e político. Não advogo, tampouco, a causa dos misticismos ou das inúmeras gnoses, não se trata disso.

O caso é que uma coisa pode ser dita de várias formas. E, no dizer, as formas são causas materiais do próprio discurso. Não seria assim, caso não pensássemos a falar connosco, assim como um computador, que entende-se com o usuário por uma linguagem e com ele mesmo por outra. Eu falo comigo e contigo pela mesma linguagem, daí que as formas dela são também matéria.

A ressurreição dos vivos e dos mortos, desenvolvida com sutilezas em Paulo, está anunciada sem elas em João 6:40: e eu o ressuscitarei no último dia. Claro, no último dia nem todos terão já morrido, então os vivos ressuscitarão. É um problema tremendo esse, que talvez resolva-se pela transformação – metanoia. Mas, não cuido dele aqui.

Mais concreto é o problema da ressurreição dos mortos, porque a morte implica decomposição e é real. Tão real que o Galileu, para evitar mal-entendido, afirma que Lázaro morreu. Realmente, conforme o texto de João, as coisas encaminhavam-se para a má-compreensão, com a utilização do termo dormiu.

O Galileu era inteligentíssimo. Se Lázaro dormia, não tinha morrido. Se não tinha morrido, não seria ressuscitado! Logo, Lázaro morreu, sem eufemismos, nem metáforas.

A ressurreição dos mortos é racionalmente admissível, inclusive sob uma perspectiva materialista, porque descompor-se é diferente de desaparecerem os elementos componentes.  Esse desaparecimento, dizem-no a física e a biologia, é impossível. Então, é inevitável a terrível conclusão: as objeções que se lançam sob o manto do materialismo são, na verdade, objeções de fé!

São objeções quanto às causas eficientes desse reajuntamento, para recorrer ao modelo fácil de Aristóteles. Não há propriamente limitações materiais, nem formais, haveria, sim, um problema de motor não movido. E, posto assim o problema, ele persiste insolúvel sob a perspectiva do provável e do improvável.

Todavia, o modelo é fechado e um tanto arbitrário, pois Aristóteles não postulou qualquer hierarquia entre as causas. Ofereceu uma linguagem, uma maneira de apreensão de atos e fatos. O modelo não é uma verdade, enfim. Todas as causalidades podem ser arbitrárias ou mesmo axiomáticas.

O Profeta de Meca propôs, na Surata nº 36, Versículo nº 78: Quem poderá recompor os ossos, quando já estiverem decompostos? E, no Versículo nº 79, da mesma Surata: Dize: recompô-los-á Quem os criou da primeira vez.

The Ancient Sage, de Tennyson.

Thou canst not prove that thou art body alone,
Nor canst thou prove that thou art spirit alone,
Nor canst thou prove that thou art both in one,
Thou canst not prove thou art immortal, no,
Nor yet that thou art mortal – nay, my son,
Thou canst not prove that I, who speak with thee,
Am not thyself in converse with thyself,
For nothing worthy proving can be proven,
Nor yet disproven. Wherefore thou be wise,
Cleave ever to the sunnier side of doubt,
And cling to Faith beyond the forms of Faith!

She reels not in the storm of warring words,
She brightens at the clash of ‘Yes’ and ‘No,’
She sees the best that glimmers through the worst,
She feels the sun is hid but for a night,
She spies the summer through the winter bud,
She tastes the fruit before the blossom falls,
The hears the lark within the songless egg,
She finds the fountain where they wailed ‘Mirage!’

O Quinto Império, de Fernando Pessoa.

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz —
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

Dos olhos vendados.

De Daniel Miranda Castro.

Olhos,
não olhos atentos ou reflexivos,
ou determinados ou sequer ativos, não.
Olhos sem olhares, que o corpo está a a venda,
pois a alma já vendida não deu renda,
e só o dinheiro traz felicidade em migalhas.

Felicidade partida, pedem as gralhas,
que gritam muito pra dizerem pouco,
e pouco carregam, quem muito carrega é louco.

Seguem assim, gralhas a venda por suas migalhas
de olhos fechados, não ligam pros olhos,
não sabem de fato enxergar,
sabem que não sabem enxergar,
contudo se negam ao esforço de aprender,
e impiedosamente bicam quem os tenta ensinar

Olhe aqui Mr. Buster, de Vinicius de Moraes.

Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insônia
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial
Por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da
Coréia.
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros.
Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas “estações” do
ano.
Está tudo muito certo, Mr. Buster – o Sr. ainda acabará governador do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.
Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

Paisagem do Capibaribe, de João Cabral de Melo Neto.

Em 1950, em Barcelona, João Cabral publica O cão sem plumas. São quatro partes componentes de um grande poema, repetitivo, seco a falar de um rio, quase hermético, belíssimo.

É um rio que corta o Recife. Chega à cidade sujo, porque vem sujo desde perto de sua nascente. Chega largo na planície, inundando as várzeas onde moram as gentes muito pobres. Oferece-lhes as lamas pretas de suas margens, para atolarem as pernas até aos joelhos.

I. Paisagem do Capibaribe

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.

Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.

Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.

Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.

E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.

Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.

Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.

Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.

(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).

Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?

Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?

« Older posts Newer posts »