Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Poesia (Page 1 of 6)

Renoir, Fellini e Kubrick disseram quem é e como é a aristocracia ocidental.

Dizer que há um grupo reduzido e interligado de aristocratas que mandam no mundo ocidental – Europa, América do Norte e seus satélites coloniais africanos e sul-americanos – é inconveniente e quase proibido, a depender de quanto explicitamente se fale.

Dos três cineastas do título, é interessante notar que Kubrick foi o mais explícito e, não se sabe se por causa disto, veio a morrer antes do filme ser lançado. Deve ter sido coincidência. Normalmente, os identificados limitam-se a dizer que o identificador é um difusor de teorias da conspiração.

A identificação faz-se a partir da mostra dos códigos que regem as relações dos aristocratas muito ricos entre eles mesmo e entre eles e o restante das pessoas. Tende a escandalizar o público porque estes códigos não se baseiam absolutamente em critérios morais, embora consagrem critérios de honra. E as finalidades destes códigos são ocultar-se e manter o poder nas suas expressões econômica e social.

No seu filme, Renoir insere subtramas e intrigas que afastam um pouco a percepção do que era possível e impossível para a personagem André. em seu romance com a esposa do aristocrata austríaco.

Fellini é discretíssimo. A personagem de Mastroianni, Marcello, percebe na festa no castelo aristocrático romano que ele estava lá apenas fisicamente. Mas, o que parece é ser um filme todo focado na pequeneza existencial de Marcello.

Esses filmes e as identificações dos modos de ser individuais e de grupo dos aristocratas e de seus códigos de condutas para relações internas e externas vieram-me à mente pois lia sobre o marquês Camillo Casati Stampa di Soncino, aristocrata de uma das famílias nobres mais antigas de Itália.

Já havia lido sobre Casati Stampa há muito. Mas, voltei a me interessar porque li que Berlusconi comprou à filha herdeira de Casati Stampa, em 1974, a Villa San Martino. E Berlusconi, farsante e impudico, abriu a Villa a uma equipe de TV para provar que nela não se faziam as festas bunga bunga e para mostrar que havia erigido um mausoléu inspirado no túmulo de Tutancámon, para acolher os amigos que morressem…

O marquês era riquíssimo e tinha muitas casas por toda a Itália. E tinha uma Villa na Ilha de Zannone, que ficou conhecida como a ilha das orgias. Em 1958, Casati Stampa conheceu Anna Fallarino, que fora aspirante a starlet da Cinecittà e findara por casar-se com um engenheiro meio endinheirado, que a inseriu nos círculos de bom gosto romanos.

O marquês conseguiu a anulação do casamento de Anna, mediante pagamento farto, e veio a casar-se com ela em 1959. Na noite do casamento, Anna banhava-se, no hotel em que estavam, e Casati Stampa fez chamar um garçom, um rapaz jovem e bonito, com quem Anna desfrutaria à vontade, enquanto o marido apenas olhava.

Este acordo deu certo. O marquês pagava para jovens, dos dois sexos biológicos, bonitos, de condição social inferior, terem sexo com Anna, enquanto ele tirava fotos. Depois, descobriu-se que havia um arquivo de aproximadamente 1500 fotos encartadas em um diário verde, que trazia também anotações feitas por Casati Stampa.

Havia, porém, um limite estabelecido no pacto: não poderia haver envolvimento emocional nem amoroso entre Anna e os inúmeros amantes pagos pelo marido. Um dia, Anna foi introduzida a um jovem chamado Minorente e envolveu-se afetivamente com ele.

Em agosto de 1970, Casati Stampa matou-os e matou-se com uma espingarda de caça, na sua Villa em Roma. Deixou escrito que havia sido traído com o coração, por Anna. No testamento, estabeleceu que a marquesa Anna seria enterrada junto a ele, no mausoléu da família Casati Stampa di Soncino.

Muitos, notadamente psicólogos, como é intuitivo, debruçaram-se sobre a psiqué do marquês e puseram-se a especular se era impotente, se era voyeur, se era homossexual e por aí vai. Nada disso parece-me importante, eis que tais especulações parecem-me muito mais guiadas por balizas moralizantes que por balizas ou interesses epistemológicos. Claro que a investigação psicológica não é inútil, mas não atinge o mais interessante.

Os móveis psicológicos que impeliam o marquês a tais condutas sexuais não têm a ver com sua origem social e com a possibilidade de fazer o que gostava de fazer. Esta possibilidade concreta de agir abertamente como agia é que é reveladora do que é a classe social a que pertencia.

Há códigos para as relações dos aristocratas muito ricos entre eles e com as restantes pessoas, de fora do grupo. Eles, de uma forma geral, visam à preservação do poder nas suas expressões econômica, social e psicológica. Casati Stampa foi ferido no seu poder pessoal sobre Anna. Foi traído com o coração quando Anna enamorou-se do amante e estabeleceu uma relação que fugia ao poder do marquês.

Este caso é mais sútil, de fato, eis que é mais comum perceber-se a função conservadora dos códigos relativos à liberdade sexual dos aristocratas muito ricos na sua face de manutenção do poder econômico. Na corte dos Aquemênidas, por exemplo, a rainha e as mulheres da alta nobreza serviam-se sexualmente dos eunucos à vontade.

Não havia a interdição sexual na corte persa; havia a interdição de procriar fora do grupo e deslegitimar a nobreza com a geração de bastardos. Os eunucos, contrariamente ao que muitos pensam, não são impotentes quando castrados depois da puberdade, são inférteis apenas.

Semelhantemente acontece com as regras que vedam o acesso dos pequenos fidalgos e do burgueses ao seio da aristocracia muito rica, senão como pequenos bufões que eventualmente divertirão num e noutro jantar, como acontece no episódio da Doce Vida, de Fellini. Mas esse convívio esporádico raramente significa uma aceitação real e um ingresso no outro mundo.

A aristocracia dos muito ricos protege-se, individual e coletivamente, por meio destes códigos desconhecidos da maioria. Assim, mantém riqueza, prestígio social e honra, por bizarro que possa parecer. Nunca se tratará de moral, contudo.

A canção de amor de J. Alfred Prufrock.


“E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola.”

T. S. Eliot.

White Cup and Saucer, 1864, Henri Fantin-Latour oil on canvas, 19 x 28 cm.

Então no último dia de janeiro de um hoje longínquo 2015 eu publiquei no Facebook o trecho do poema de T. S. Eliot, e a pintura de Henri Fantin-Latour.
Hoje eu não consigo pensar num lugar pior para ter feito a publicação. Mas também não deixo de achar bom que ele, o Facebook, me recorde as postagens antigas.

Vivo sem viver em mim.

Santa Teresa de Ávila.

Vivo sem viver em mim,
E tão alta vida espero,
Que morro porque não morro.

(…)

Ai que longa é esta vida!
Que duros estes desterros!
Este cárcere, estes ferros
Onde a alma está metida.
Só de esperar a saída
Me causa dor tão sentida,
Que morro porque não morro.

Ai, que vida tão amarga
Por não gozar o Senhor!
Pois sendo doce o amor,
Não o é, a espera larga;
Tira-me, ó Deus, este fardo
Tão pesado e tão amargo,
Que morro porque não morro.

(…)

The Ecstasy of Saint Teresa by Gian Lorenzo Bernini

The Ecstasy of Saint Teresa by Gian Lorenzo Bernini

 

Meu coração tem um sereno jeito.

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto,
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa…
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa

“Home” por Warsan Shire.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

 

HOME

no one leaves home unless
home is the mouth of a shark
you only run for the border
when you see the whole city running as well

your neighbors running faster than you
breath bloody in their throats
the boy you went to school with
who kissed you dizzy behind the old tin factory
is holding a gun bigger than his body
you only leave home
when home won’t let you stay.

no one leaves home unless home chases you
fire under feet
hot blood in your belly
it’s not something you ever thought of doing
until the blade burnt threats into
your neck
and even then you carried the anthem under
your breath
only tearing up your passport in an airport toilets
sobbing as each mouthful of paper
made it clear that you wouldn’t be going back.

you have to understand,
that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land
no one burns their palms
under trains
beneath carriages
no one spends days and nights in the stomach of a truck
feeding on newspaper unless the miles travelled
means something more than journey.
no one crawls under fences
no one wants to be beaten
pitied

no one chooses refugee camps
or strip searches where your
body is left aching
or prison,
because prison is safer
than a city of fire
and one prison guard
in the night
is better than a truckload
of men who look like your father
no one could take it
no one could stomach it
no one skin would be tough enough

the
go home blacks
refugees
dirty immigrants
asylum seekers
sucking our country dry
niggers with their hands out
they smell strange
savage
messed up their country and now they want
to mess ours up
how do the words
the dirty looks
roll off your backs
maybe because the blow is softer
than a limb torn off

or the words are more tender
than fourteen men between
your legs
or the insults are easier
to swallow
than rubble
than bone
than your child body
in pieces.
i want to go home,
but home is the mouth of a shark
home is the barrel of the gun
and no one would leave home
unless home chased you to the shore
unless home told you
to quicken your legs
leave your clothes behind
crawl through the desert
wade through the oceans
drown
save
be hunger
beg
forget pride
your survival is more important

no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear
saying-
leave,
run away from me now
i dont know what i’ve become
but i know that anywhere
is safer than here

Warsan Shire é poeta, escritora e educadora. Descendente de refugiados Somalis, nascida em 1988 no Kenya, cujos pais depois imigraram para a Inglaterra, hoje vive em Londres.

 

PS: Os grifos no poema são meus.

Café… Colombiano, italiano, brasileiro… Ou com Poesia…

Outro dia, aconteceu uma dessas situações inusitadas, dessas que a oportunidade de estudar fora do próprio país proporcionam. Tenho como companheiros de classe, alguns colombianos, um italiano, e outros tantos brasileiros. O caso, é que em um desses intervalos entre classes, quando acontecem as conversas mais descontraídas, o brasileiro estava falando sobre um cappuccino, de marca Carrefour, fabricado na Alemanha, e disse que era bom. A despeito disso tenho que dizer, que por aqui, a “marca” Carrefour, é o que eles chamam de “marca branca”, ou seja, a marca do próprio super mercado, há de se dizer também, que existem bons produtos vendidos pelos mercados, produzidos por indústrias proprietárias de outras marcas comerciais, que fazem concorrência direta com seus rivais de “marca verdadeira”. Pois o brasileiro observou que dava atenção onde o produto era fabricado, porque apesar de ser de marca Carrefour, pode ser fabricado em algum dos diversos países da União Européia, e que essa atenção era justificada, pois via de regra, se decepcionava com produtos fabricados na Espanha.

Acontece que um brasileiro falar de café, que seja um cappuccino, junto a um colombiano, e um italiano, gerou um certo clima de disputa, afinal, de uma forma ou de outra, são países de tradição, seja no consumo, seja na produção. O brasileiro, disse também que havia tomado bons cafés na Itália, com o que, o italiano, já cheio de orgulho, disse que ali se tiravam os melhores cafés do mundo! Claro, feriu os brios do colombiano, que imediatamente em resposta, disse que na Colombia se produzia o melhor café! O brasileiro tentou jogar uns panos quentes, dizendo que no Brasil, também se produziam bons grãos, mas que seu consumo se dava mais em Portugal, por motivos óbvios. Mas o italiano não arrefeceu, e saiu com uma frase que acabou com a discussão, disse que lhe parecia muito adequado afirmar que os melhores grãos de café fossem produzidos na Colombia, mas que na hora de prepará-lo, quem o fazia melhor, eram afinal, os italianos. Menos mal que estávamos em clima de brincadeira, e não se iniciou um problema diplomático por qualidade de cafés.

E justo da Itália, apareceu uma idéia interessante, que é: deixar um café pago para uma pessoa que não pode pagá-lo, em cafeterías que aceitem esse tipo de “promoção” por assim chamar, seria um tipo de café solidário, baseado, claro, na confiança dos usuários na cafetería em questão. Em Salamanca, onde faço os meus estudos, uma cafetería começou tal promoção, que eu achei bastante interessante, portanto a passei ao Café e Poesia, um café de Campina Grande, que por algum tempo fechou as portas e agora reabre, no Museu Assis Chateaubriand, trazendo de volta uma agenda da qual a cidade ficou orfã pelo tempo em que permaneceu fechado, com saraus e exposições de arte, dentro do próprio ambiente do café.

A idéia foi repassada. Mas afinal, se encontra uma barreira, será que a clientela de um café desses moldes no Brasil, aceitaria a presença de uma pessoa que vai ali aproveitar a promoção do café solidário? Será que a clientela aceitaria ser o dínamo que impulsionaria a quebra do “status quo” social? Democratizando o consumo de um simples café, de um local que é público, e que para o público foi erguido??? E será que tal pessoa necessitada realmente se sentiria a vontade no ambiente? Talvez ainda existam diferenças sócio econômicas e culturais, que inviabilizem um projeto como esse no Brasil… Mas afinal que seja bem-vindo de volta o Café e Poesia, e caso alguém por lá resolva aparecer, que busquem sempre falar com o proprietário, garantia de uma boa conversa, e de um bom café.

Soneto de fidelidade, de Vinicius de Moraes.

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

As sombras de Goya. Filme de Carrière e Forman.

Acabo de assistir As sombras de Goya, um filme excelente. Não vou falar dos atores, que são bons e somente poderiam sê-lo. Um filme bom deve ter bons atores e até pode ter deles apenas razoáveis. Enfim, a ênfase em atores é superficialidade de quem não quer pensar e detém-se em nomes, ou seja, quase todo mundo. Mastroianni percebeu-o, ele que era um dos grandes e sabia que muito mais grande é o filme.

Fiquei encantado com o Museu do Prado desde a primeira vez em que estive lá. E não foi por causa de Goya, ou não somente. Fiquei com vontade de voltar ao museu e ao Retiro. Coisa que merecia aprofundamento, mas fico sem saber como fazê-lo e acho que vou alinhando impressões. Gosto de museus e de parques, mas gosto especialmente desses dois; digo isso também para dizer que nada mais em Madri atrai-me especialmente.

Mais estranho ainda é que me parece gostar mais de escultura que de pintura e ponho isso em dúvida, agora. Agora não, sempre estive nessa dúvida; deve ser algo que me impus, racionalmente, por conta da tridimensionalidade da escultura. Fato é que não tenho ganas de voltar ao Louvre, embora não o tenha esgotado, evidentemente, em três vistas, e ele é riquíssimo em esculturas. Mas, tenho vontade de voltar ao Prado.

Os El Greco e dois Velazquez nunca me saíram da cabeça. O crucificado e A forja de Vulcano, mais que as meninas, deles retenho a impressão de ter visto. As meninas, detive-me nesse quadro a partir de imagens de livros e buscadas na internet.

O Prado tinha que estar em Madri, para amenizar o que Madri é. Goya tinha que ser pintor do Rei e pintar a feiúra das reais personagens, fossem castelhanas ou francesas. Tinha que pintar, receber caro por isso, continuar a pintar, não escrever, não escutar, pintar, deformar, formar, conformar, não acusar, não escrever, não falar, olhar. Tinha que se lembrar de quem pintou, viver para pintar, como quem recebeu boa paga pelo trabalho e seguiu a fazê-lo.

À procura de saber quem foi o realizador do filme, fiz pequena busca e li, por azar, duas pequenas resenhas, ambas imbecis. Uma detinha-se no que chamarei aspectos externos, ou seja, filmográficos. Aquela besteira que se relaciona a ritmo, que vem de quem não conhece nem gosta de história e que se auto-intitula crítico de cinema. A outra, menos tola, criticava negativamente a exposição de um Goya pequeno, porque as outras personagens teriam mais destaque. A segunda crítica, na verdade, merece ser retirada da categoria de imbecil, é apenas religiosa.

Lembro-me de Julien Benda, na Traição dos Clérigos, a propósito desse segundo tipo de crítica. É dificílimo um sujeito profissional da crítica -de qualquer coisa – não querer que o criticado seja um clérigo, um religioso de qualquer preconceito que seja. É dificílimo porque os críticos não gostam de arte, nem de história, eles gostam de dogma. No Brasil, isso tem um nome, cuja menção basta para esclarecimento: fala-se em arte engajada.

Claro que o filme é um filme que, embora não destinado às multidões, é destinado a mais que o mínimo. Tem suas concessões, portanto. Pasolini não tinha concessões e era quase literatura com imagens. Talvez, por isso mesmo, quase ninguém tenha visto Salò e os 120 dias de Sodoma até ao final, o que é pior para quem não viu.

Para tristeza dos clérigos, Goya disse que a realeza espanhola era feíssima, disse que os franceses mataram como os próprios feios reais, que se uma nudez escandiza dão-se-lhe roupas, que o silêncio total aumenta os contrastes, que a política é profissão diferente da pintura.

 

« Older posts