Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Infâmias (Page 10 of 20)

Soldados dos EUA brincam com cadáveres de afegãos!

Não feche os olhos, olhe! É feio como nós somos feios internamente. Não é só matar, é divertir-se a matar e ter o cuidado de registrar a diversão. Não é novidade, mas não deixa de ser escandaloso apenas por faltar originalidade.

Eles não compreendem porque são vastamente odiados. Não compreendem que já se percebeu a profunda hipocrisia de seus discursos de direitos humanos ou democracia ou qualquer outra merda destas.

Adiante, o exército norte-americano levando o bem-estar, a democracia, os direitos humanos e uma mensagem de paz aos afegãos:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Khadafi, o bem-amado!

 

Esse painel de fotos é lindo! Nele, vê-se o Leão da Cirenaica – o apelido é por minha conta – junto a simpáticos amigos: Obama, Sarkozy, Berlusconi, Aznar e Blair. Que homem bem-querido!

Na cara de Sarkozy é possível distinguir, com algum esforço de interpretação fisionômica, a gratidão.

Porém, bastou-lhe a audácia de anunciar que venderia petróleo somente para a China, Rússia e Índia para… tornar-se um enviado do Príncipe do Mundo e tome bomba na cabeça.

Dignidade mantida: Mantega, Pimentel, Mercadante, Tombini e Lobão.

Uma palestra, ou encontro, ou a coisa sob qualquer nome que se lhe queira dar, ocorreu em Brasília, a reunir centenas de empresários brasileiros e norte-americanos. À tarde, chegaria Obama, para falar a essa audiência sôfrega pela visão do deus encarnado.

Cinco Ministros de Estado brasileiros foram ao tal encontro: Guido Mantega, da Fazenda, Fernando Pimentel, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Edison Lobão, de Minas e Energia, Aloísio Mercadante, de Ciência e Tecnologia, e Alexandre Tombini, Presidente do Banco Central.

A segurança, toda composta de agentes norte-americanos, quis impor aos Ministros de Estado revistas de segurança, daquelas que fazem o revistado tirar até os sapatos. Isso, no país deles, Ministros! Vejam, não se tratava de identificar as personagens, mas de revistá-las.

Negaram-se a essa indignidade os nomes ai de cima e foram-se embora, pura e simplesmente, como qualquer homem minimamente honrado faria.

Retrato do Brasil: a opinião de um jornalista sobre o médico preso.

Lê-se, hoje, no Jornal da Paraíba, na coluna de um jornalista, uma nota que é um instantâneo do modelo de sociedade que criamos: excludente e consagradora da igualdade relativa.

A nota, que começa com um lugar-comum tolo de latinice jurídica, permissa vênia, está escrita em tom de opinião. O jornalista diz que pessoalmente entende que as punições ao médico que cobrava ilegalmente por atendimentos pagos pelo Estado não devia estar preso em uma cela comum de presídio, que isso é punição muito rigorosa.

Os lugares-comuns e a redundância de falar-se em entendimento pessoal não importam aqui. Importam a afirmação de excesso de rigor, de falta de necessidade de prender-se o médico em cela comum e, principalmente, o que vem no segundo parágrafo da nota.

No segundo parágrafo, tudo está claro. O jornalista sugere que, para a sociedade, são mais interessantes punições de natureza pecuniária. Subjacente a essa noção está a lógica da igualdade relativa e da inflexibilidade social.

Significa que pessoas não-comuns – médicos, por exemplo – não podem ser presos em celas comuns. Significa, na verdade, que pessoas não-comuns não devem ser presas e, sim, pagar em dinheiro quando apanhadas a delinquir.

Ou seja, devem ser estabelecidos níveis diferentes de punições, segundo as posses das pessoas, e quem não tem dinheiro é punido com a perda da liberdade, ao passo que os possuidores são punidos com pagamentos. É a teoria da punição censitária, suprema afronta ao princípio de igualdade.

Para não parecer a defesa da desigualdade, pura e simplesmente, os propagadores disso inserem nos seus discursos o elemento eficácia. Dizem que a punição em dinheiro é mais eficaz para quem tem dinheiro para suportá-la. Na verdade, ocorre precisamente o contrário, porque quem tem dinheiro teme menos a punição incidente sobre o que tem.

Todos, sem exceção temem mais a reclusão, a privação de liberdade. Assim, sendo a reclusão a represália estatal mais temida, é também a mais eficaz do ponto de vista da prevenção, evidentemente.

O discurso é de uma fragilidade conceitual escandalosa, um sofisma mal-disfarçado, mas sempre se insiste nele e com êxito, pois fica a parecer sutileza intelectual e refinamento. Não passa do suporte intelectual mal desenhado da exclusão e da diferença ,que mantém classes de pessoas absolutamente distintas nesse país, embora as leis, os papéis, isso que nada vale, afirmem o contrário.

Para desmistificar simplesmente essa tese da eficácia das penas pecuniárias para os mais ricos, consideremos o seguinte:

um fulano tem 1 milhão de reais, no banco; uma conduta é considerada ilícita e a lei prevê para ela o pagamento de 100 mil reais de pena; a mesma conduta considerada ilícita agora resulta em reclusão de cinco anos. De qual das penas o fulano terá mais receio? Qual delas será mais eficaz para demovê-lo da conduta ilícita? A que está ao alcance dele ou aquela que não se resolve com dinheiro? É simples…

Bombardeio da Líbia. Ataque cirúrgico!

Os franceses começaram – divertem-se com os capazes Rafales – o bombardeio da Líbia. Os norte – americanos seguiram-nos e dispararam mais de 100 mísseis de cruzeiro Tomahawk. Assim, muito singelamente, começa a intervenção humanitária dos impérios, a bem de defender os civis nos países colonizados: com bombardeios aéreos e míseros 100 mísseis.

A intervenção humanitária com bombas e mísseis faz-se como sempre: matando e destruindo tudo que se diz defender. A intervenção humanitária a bem dos civis merece um nome próprio no jargão militar atual: ataque cirúrgico. Um dos nomes mais cretinos e inapropriados entre tantos lugares-comuns.

Comparar-se um bombardeio com uma intervenção cirúrgica é algo como falar de uma cirurgia feita com um machado, um cutelo e uma agulha de costurar saco de couro. Não há coisas menos assemelhadas que uma saturação de bombas e uma operação cirúrgica.

Uma cirurgia que se comparasse a um ataque com mísseis de cruzeiro seria um sangramento, uma destruição, um esgarçamento de tecidos, um rompimento de todos os vasos sanguíneos que somente poderiam resultar na morte do paciente. E é isso mesmo.

É cirurgia que se faz em cadáver a ser enterrado desfigurado, costurado a pontos largos, cheio de equimoses e crosta de sangue coagulado, cadáver a ser velado em caixão fechado, de tão feio que é.

Assim defendem-se os civis – porque a palavra dá autoridade, como se militares não fossem gente. Defendem-se civis matando-se civis, claro! E defendem-se civis segundo peculiaríssimos critérios de escolha dos civis que devem ser defendidos.

Civis de outros países não devem ser defendidos, mas os da Líbia devem sê-lo, sendo mortos. Civis de países dóceis ou daqueles em que as revoltas foram docilizadas, esses que cuidem de si. Civis que o rei da Arábia Saudita manda matar não são civis, evidentemente. Civis do Bahrain são alguma coisa diferente.

O caso é que a mão pesada dos Rafales e dos Tomahawks cai sobre os inimigos. Certo, assim funcionam as coisas. Mas, digam-nas, às claras. Digam que matam os inimigos, os que têm a ousadia de revelar que os subornaram, os que têm o petróleo de que precisam.

 

Máfia na saúde pública, em Campina Grande. A cumplicidade social tem inércia própria.

Os meios de comunicação noticiam o caso de um médico cirurgião que cobrava dos pacientes o que o Estado brasileiro já lhe pagava. Fala-se que o esquema envolve enfermeiros e funcionários de hospital, que atuavam para obter pagamentos dos doentes por atendimentos que deviam ser gratuitos. Se assim ocorreu, há um crime, pura e simplesmente.

No Brasil, existe o SUS – Sistema Único de Saúde. Trata-se de uma rede de pagamentos feitos pelo Governo Federal a hospitais e clínicas que devem atender às pessoas, desde que tenham voluntariamente aderido ao sistema. Isso criou-se para cumprir o preceito constitucional da saúde pública universal e gratuita.

O governo central distribui aos Municípios e aos Estados Federados dinheiros públicos para se pagarem atendimentos médicos à população, prestados por entidades privadas conveniadas ao sistema. Um médico que trabalhe nesse sistema aceita suas regras e recebe segundo uma tabela com valores para cada intervenção. Ele não é obrigado a aderir ao modelo, convém esclarecer.

Se ele adere ao sistema público, não pode remunerar-se de qualquer outra forma pelo serviço médico que presta, porque aí está a exigir vantagem indevida e a enriquecer ilicitamente, até porque recebe duas vezes pelo mesmo serviço.

Faltam médicos no Brasil. Além de serem poucos, relativamente à população, estão mal distribuídos pelo território. Há cidades que os têm, na relação para cem mil habitantes, mais que o recomendado pela ONU. Há outras cidades que os têm em proporções ridículas, relativamente às suas populações.

Por conta dessa escassez, os serviços médicos são caros. É resultado evidente da lei de oferta e procura, segundo a qual uma oferta pequena para uma demanda grande encarece os preços. Esse é o aspecto objetivo do problema, aquele que permite apontar uma solução também objetiva: aumentar o número de médicos. Leva tempo, mas é possível e deve fazer-se.

A escassez tem o efeito indesejado de aumentar os preços e o poder de chantagem dos profissionais, mas não guarda relações teóricas diretas com outra face do problema. Esse outro lado tem relações com a sociedade brasileira, com a forma de organização dela. Tem relação com a estratificação social e as forças de manutenção da estrutura.

Quando falei em cumplicidade social, no título, não quis insinuar que haverá cumplicidade com a não punição do médico especificamente descoberto a cobrar pelo que não podia. O especificamente descoberto a delinquir provavelmente será linchado, em primeiro momento, e esquecido, ao depois. É o espetáculo.

A questão é precisamente que a punição é – caso ocorra – pontual. Porque, na verdade, é punição espartana, não no sentido habitual do termo, de simplicidade e contenção, mas de exemplo a estimular a não descoberta. Em Esparta, os jovens bem-nascidos eram retirados das famílias para serem educados pela Cidade. Eram estimulados a tudo, a matar um meteco, se fosse o caso, mas, se fossem descobertos, levavam uma sova de deixar às portas da morte.

Tudo pode e tudo acontece, só não pode ser descoberto. Bem, esse é o resumo de algum modelo espartano, porque nós o elaboramos e chegamos à fórmula que lincha o descoberto, mas ao final o absolve. Mas, principalmente, chegamos à fórmula que prescreve a absolvição geral com um e outro apedrejado pelo caminho.

Os médicos que cobram duas vezes pelo que já receberam são muitos; esse que foi descoberto é apenas o que se sentiu mais à vontade no crime. Os servidores públicos que pedem dos usuários o que eles não precisam dar são muitíssimos. Os que entregam uma prestação obrigatória como se fizessem um favor são quase todos.

A raiz disso – não há como evitar dizê-lo – está na concentração brutal de rendas no país. O nível extraordinário de concentração é parente na linha reta da apropriação do Estado, um instrumento de extorsão de recursos do todo e de repartição do produto entre poucos, além de aparato de violência e contenção social.

Assim ele é percebido e assim ele vem funcionando, a despeito de uma e outra reação, de uma e outra intenção dos chefes de governo. Na percepção social dominante, o Estado não é uma entidade supra-individual que existe em função da nação, mas um poder patrimonial que existe em função dos proveitos que se podem retirar dele.

O mais simples indivíduo que se torne funcionário público ou trabalhe em colaboração com o poder público sente-se um recebedor de salário desobrigado de quaisquer deveres realmente públicos. Claro que se sente obrigado aos deveres de contenção formal e de representação teatral de um papel ridículo de aparente probidade, mas nada de assumir-se servidor, em sentido próprio.

Assim percebe-se a realidade, seja o indivíduo empregado do Estado, diretamente, seja o que se chama um empreendedor privado. Qualquer que seja a posição do indivíduo, se ele tiver um certo nível de rendimentos, será um sócio dessa coisa chamada Estado. Mas, ele negará, ele afirmar-se-á independente desse Estado, ele se comportará como se nem existisse Estado, desprezível.

E, por ser desprezível ou maravilhoso, assim esquizofrenicamente, o Estado não será compreendido, não será percebido o que é, ninguém vai saber o que implica, o que significa, os direitos que eventualmente ele lhes assegura. Essa esplêndida confusão vai permitir que ele siga a ser o instrumento de meia dúzia, pago por todos.

E, quando um ladrão for descoberto, será empalado em praça pública, ou não será empalado nem nada, e os outros ladrões vão comentar sua sorte, em casa a bebericar uísque e a dizer que fulano devia ter tomado cuidado. Eles dirão exatamente isso, que fulano devia ter tomado cuidado!

Está fácil, assim. Essa gente –  nós – devia ter que defender seus interesses com os punhos, ou os revólveres, ou as facas. Assim como está é fácil, criamos uma coisa genialmente perversa, criamos a inércia social, quase o modo contínuo. Quando um de fora entra, um de entre milhões, ele torna-se nós!

No final e ao cabo, se é para continuar a falar nos crimes da saúde pública, o que acontece é o seguinte: se as vítimas são pobres, pode acontecer. Se alguém é descoberto, rompendo o pacto de inércia social pelo excesso, faz-se o espetáculo e tudo segue; premiam-se os que cometem crimes mais discretos.

 

Narradores da ESPN: escravos apaixonados pelos senhores.

Vejo Barcelona contra Arsenal, no canal ESPN. Vejo e percebo – além do espetacular futebol do Barcelona – como são firmes as prisões da alma.

Os narradores da tal ESPN nasceram em Londres, cultivam a Rainha, tomam chá às cinco da tarde e falam com os incisivos superiores projetados para fora das bocas. São mais britânicos que o Big Ben, mas tentam disfarçar. É pior.

Isso é comum nos escravos saídos das classes médias altas brasileiras. Eles são devotados aos senhores, mais que a si, à beleza, à liberdade. Têm complexo de vira-lata e buscam senhores exteriores. Quanto menos próximos e mais ricos, tanto melhor.

O típico escravo oferece sua devoção ao senhor mais rico e àquele a que acostumou-se a considerar o mais poderoso, o mais tradicional. Os ingleses desempenham bem esse papel de senhores ricos, tradicionais e poderosos, logo são os que mais avidez de servir despertam nos servos brasileiros.

Parece-me que é coisa involuntária, porque narrador de futebol na televisão esforça-se para aparentar imparcialidade. Ou seja, se a servidão, a devoção, transparece, é porque foi maior que algum esforço de contenção. A coisa vem de dentro, é maior que alguma racionalidade, é maior que o assombro de ver este Barcelona jogar.

Eles não dizem mais que lugares-comuns sobre o futebol arte da equipe de Guardiola. Uma e outra obviedade sobre os riscos de deixar Messi dominar a bola. Eles sofrem quando os ingleses perdem o controle, quando batem e tomam cartões amarelos.

Eles amenizam as agressões dos jogadores do Arsenal, a ponto de adentrar o ridículo às escancaras: quando Van Persie meteu a mão na cara de Daniel Alves, o servo narrador pôs-se a dizer que não foi um murro e que por isso não estava caracterizada a agressão!

Bonito, só seria agressão se fosse aos murros. Muito bom…

Grande oferta de Milagres: o comércio evangélico.

 

Este é um templo da Igreja Mundial do Poder de Deus, em Campina Grande, Paraíba. Uma faixa de pano promete grande concentração de poder e milagres! A foto está ruim porque tirada do carro em movimento, desde um telefone, mas o essencial está lá.

É uma dessas denominações que negoceiam com o sucesso financeiro e os milagres, na lógica da retribuição de favores entre o pedinte e o Deus a quem se pede. Não há espaços para muitas sutilezas, nem licenças poéticas. Por exemplo, nota-se que não há o comércio da salvação, de forma ampla.

Nestas denominações, o comércio é de soluções imediatas para problemas concretos, tratado pelos intermediários que são os pastores. Os corretores dos favores divinos possuem o conhecimento dos desígnios divinos e expõem aos pedintes o que eles precisam fazer para obter os favores.

Esse deus é uma figura híbrida, porquanto não se apreende pela teoria da graça, nem pela predestinação. Ele é um deus em constante agitação com seus apetites imediatos e sedento de manifestações de adulação. É um rei a quem se deve visitar sempre com presentes, mesmo sem se saber se gostará deles e que sempre se fique nas ante-salas dos assessores.

Um deus a quem se deve seduzir, cuja vontade pode ser perquerida, passível de ser agradado ou desgradado por ações de criaturas suas, por ações que deviam para ele serem previsíveis e sem novidades. É, pois, um deus que se afasta nitidamente da definição doutrinária que lhe dá o atributo da onipotência, entre outros.

Claro que dar atributos a um deus já é um passo em direção à loucura e um namoro firme com a heresia. Um deus criador é o que é. Ele é independentemente dos adjetivos que lhe dão suas criaturas, que não o podem apreender simplesmente por meio da linguagem, dando-lhe predicados.

Mas, no caso do deus das denominações evangélicas que prometem milagres e poderes e favores, a absurdidade é mais flagrante. Digo mais flagrante no sentido de evidente, não que seja mais ou menos que outra. Sim, porque o deus omnipotente, omniciente e omnipresente é também absurdo.

O dos três atributos é absurdo pelo que não pode ser conhecido nestes termos, ou seja, não é objeto de investigação que conduza a ser adjetivado propriamente. O do comércio de favores é absurdo porque é contraditório.

Se é um deus que pode dar tudo a quem lhe pede – omnipotente – por que precisa ser agradado segundo padrões humanos para conceder esses favores? Se assim é, esse deus não é livre, porque precisa ser agradado. E, se não é livre, não tem o poder de sê-lo e, portanto, não é omnipotente.

Mas, aí abre-se uma senda para a percepção do caso. O grande fazedor de milagres é precisamente o pouco poderoso, assim como o mágico é precisamente o que menos altera a realidade. O milagre é a metáfora mais colorida que há, o recurso retórico mais forte e drástico, muito mais eficaz que a repetição e a ênfase discursiva ou de gestos.

Não é à toa que a enorme maioria dos milagres operam-se por intermediários. É sinal de que os intermediários são seus próprios realizadores, porque os deuses não têm porque os fazer. Uma deidade criadora não faz remendos pontuais na criação, pois melhor faria descriando-a e recriando-a novamente, com os erros sanados.

Nada obstante, os milagres existem, como as bruxas. Mas, são, como as bruxas, manifestações de poucos poderes, sinais ou metáforas, ou exortações. Costumavam ser entendidos mais pudicamente, mais reservadamente, até em respeito à sua significação e à sua ineficácia como meio de atuação ou resolução de problemas.

Mas, são comerciados e anunciados como fartos e frequentes e à disposição de quem deseje seguir o roteiro que leva a eles. Milagres que podem ser mágicas subtis e imediatas ou podem ser processos verificados em prazos variáveis. Que geralmente envolvem a obtenção de disponibilidades econômicas, de pagamento de dívidas.

Milagres como ganhos na loteria, como obtenção de tranquilidade, como um nome apenas para uma vantagem que se pode obter mediante um jogo de busca-e-recompensa. Milagres que são a negação da graça, porque se obtém por insistência e não se obtém apenas por ter sido a insistência pouca.

Grita-se mais alto para obter o milagre e, se não se o obtém é porque gritou-se pouco. Paga-se dinheiro por milagre e, se ele não veio foi porque pagou-se pouco. É preciso pedir ao intermediário, pagar a ele, em público, pois ele sabe de que o deus gosta. Ele mesmo, o intermediário, tem que ser um exemplo de beneficiado por milagre, a estimular os pedintes.

Ele será exemplo no carro que tem, nas vestes, na morada. Seu êxito material é seu certificado de amizade com o deus a quem apresenta as requisições dos pedintes. Sua intimidade e a condição de favorito percebem-se no seu sucesso crematístico, único sinal aceito na lógica mercantil.

 

Shopping Manaíra, morte, espetáculo e escravidão.

Aconteceu o seguinte, conforme lê-se no sítio de notícias WSCOM: um homem de meia idade, pelo 50 anos, estava no Shopping Manaíra, em João Pessoa, na Paraíba. Começou a sentir-se mal e a gritar por ajuda, porque sentia fortes dores no peito. Uma mulher dispôs-se a ajudá-lo, levá-lo ao carro e daí ao hospital.

Nesse passo, chegaram os seguranças do tal shopping center, afastaram a mulher e arrastaram o homem para a calçada, deixando-o lá. O homem morreu na calçada da entrada do centro comercial, de enfarto fulminante, sem socorro.

Há e ainda continuarão as reações previsíveis, ocorridas dentro do modelo e que não o modificam, de indignação emocionada. O lugar-comum dessa indignação é insensibilidade. Será gritado e repetido à exaustão, inutilmente. Cessarão os gritos, esquecer-se-á o acontecido, até que outro escândalo volte a despertar a indignação e a ensejar queixas contra a insensibilidade.

Tudo será percebido como um fato isolado, escandaloso mas isolado. Passados os frêmitos iniciais e cessados os gritos de insensibilidade, passa-se a esperar o fato seguinte, a ser percebido da mesma e exata maneira, ou seja, como se não fossem sintomas de uma moléstia maior.

Ninguém deixará de frequentar esse templo de múltiplos altares, o shopping center Manaíra, nem qualquer outro. O problema está precisamente em que são templos, dedicados à religião do imediato, da abundância mercantil, da dominação avassaladora que os dominados não percebem.

Nessas engrenagens demoníacas, são curiosos os papéis de alguns escravos. Digo alguns porque todos o são, inclusive o morto, então convém apontar de qual deles se fala. Os seguranças do estabelecimento estão entre os escravos pior posicionados segundo uma escala que considere rendimentos apenas. Socialmente, sob uma perspectiva mais ampliada, é um papel que daria várias teses de investigação científica.

O segurança, mais especificamente no Brasil, faz parte de um aparato de contenção social e busca ser simpático com seus senhores, ao máximo. O máximo de simpatia ou de competência no trabalho corresponde às atitudes que julga serem as mais desejáveis pelo senhor.

Os senhores querem tranquilidade, querem os problemas afastados, querem aparência de tranquilidade, para que os sacrifícios possam ser oferecidos nos templos da abundância comprada a crédito. Querem segurança, ou a aparência dela, querem que o evento sujo, estranho, imprevisto, seja afastado para longe.

Os escravos ávidos de bem servir ao senhor serão sacrificados sem oportunidade de invocar em defesa suas competências e  sua lealdade. Se agissem sem competência e deslealmente, seriam sacrificados da mesma forma. Eis o que não se quer perceber: aqui há pouquíssima aleatoriedade, quem perde é sempre o mesmo lado.

A platéia de escravos outros aplaudirá o sacrifício de uns seus semelhantes e o espetáculo seguirá seu rumo.

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