Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 9 of 17)

A liberdade não é azul, nem branca, nem vermelha.

A liberdade é substantiva ou adjetiva? De certa forma, parece que tanto faz que seja tomada como categoria ontológica por si, ou como predicado de um sujeito, ela é um elemento de confusão permanente e, assim, utilíssima nos discursos que menos esclarecem que confundem.

À partida, percebe-se que é axiomática, a partir do postulado o homem é livre. Axiomática, eis que a pergunta o homem é livre por que? revela praticamente inviável, na medida em que não se faz, nem, consequentemente, se responde. Não há razão, nem fato, que indique a veracidade ou a plausibilidade lógica do postulado, que, no limite, significa nada.

É nitido que a proposição é ideológica e axiomática, como são aquelas a dizerem o homem é bom ou o homem é mau. Em torno a isso, pode-se passar uma vida a investigar e mais que ser inútil a investigação – porque a utilidade é algo realmente desonroso em termos intelectuais – é querer distinguir se ocorre mais preto que branco em quadro com iguais ocorrências dessas variações cromáticas extremas.

Escapando de abordagens ontológicas e gnoseológicas, por superficiais que sejam, pode-se ficar com a proposição comum, que aceita conceituar a coisa como possibilidade de escolha. Isso implica que haja alternativas e que elas, em si, não condicionem previamente as escolhas, e mais, que haja consciência de todo o processo. Ou seja, é algo complicado até mesmo a partir da abordagem mais simples.

O modelo revela-se à compreensão pela válvula de escape que ele mesmo prevê, como frequentemente ocorre. Ele é normativo, tem estrutura de construção legislativa e tem fiscais autorizados, que se organizam no formato de grupos sacerdotais e corpos de juízes. Nossa matriz greco-judaica não faz as coisas de outra maneira além da legislação.

A válvula de escape, a exceção que permite ver o conceito de liberdade depurado, encontra-se no estado de necessidade, categoria de direito criminal que carrega a aspiração profundamente arrogante de pureza total de condicionantes externas.

O exemplo clássico dos manuais é aquele dos dois náufragos cuja salvação depende de uma tábua capaz de fazer flutuar apenas um. O que vencer a luta pela tábua não terá, juridicamente, cometido homicídio, porque não lhe era exigida conduta diversa, não se supõe que estivesse frente a duas ou mais alternativas, posto que uma delas seria sempre o próprio perecimento.

Aqui fica claro o limite: ele encontra-se na permanência do indivíduo. O modelo assume, portanto, existirem situações de falta absoluta de liberdade, o que afasta qualquer substantividade que se quisesse presente. Uma categoria substantiva não pode ser e não ser, em momentos cambiantes e determinados; isso é próprio das predicações.

A famosa exceção revela o que se esconde com a tenacidade do silêncio, a maior delas. A liberdade – entendida como ocorrência de opções – é, portanto, relativa às circunstâncias e, o que é nitidamente paradoxal, pode ser afastada pela conjunção de fatos perfeitamente aleatórios e independentes dos sujeitos em questão.

Diferentemente seria se o modelo não fosse tão permeado de axiomas de matriz religiosa. Se, por exemplo, se aceitasse que a permanência na vida encontra-se perfeitamente entre as escolhas possíveis, teríamos que o náufrago sobrevivente seria homicida, porque havia para ele a opção de deixar-se morrer. Mas, parece que a incoerência é necessária a todos os modelos que tentam apreender os comportamentos humanos.

A proposição da liberdade substantiva plena, sem exceções portanto, não carregaria absurdidade alguma, assim como não seria absurdo concebê-la como relativa, sempre. Isso de exemplos não me agrada muito, pois fica a parecer manual de direito, porém mais um pode ser valioso. Se os dois náufragos foram mãe e filho temos a possibilidade de aceitar sem escândalos que o limite foi atingido por outro lado e a liberdade estava presente onde poderia ser excepcionada: com tal dupla de sujeitos, não espantaria que um deles optasse livremente por morrer-se, precisamente para que não morresse o outro.

A exceção é arbitrária e axiomática, tanto quanto a regra e tanto quanto as demais exceções axiomáticas que se articulam para que o modelo seja aparentemente destituído de descontinuidades.

Em termos práticos, isso que se chamam opções possíveis não passam de comparações profundamente assimétricas de possíveis e prováveis retornos. As assimetrias são tamanhas que é fácil perceber-se a virtual ausência de liberdade, exceto se estivéssemos num modelo que consagra honradez em moldes de valentia de cavalaria. Don Quixote, se não fosse reputado louco, mas real paradigma, viabilizaria a coerência dessa proposição da sempre possível escolha livre, mas ele foi reputado louco…

Se eu caminho pelo passeio, de relógio no pulso e algum dinheiro no bolso e um simpático sujeito aborda-me de revólver em punho e exige-me o dinheiro e o relógio, tenho, em princípio, a liberdade de negar o pedido e arriscar-me a levar um tiro, que pode ser fatal, pode ferir-me gravemente ou pode ferir-me superficialmente.

As vantagens relativas de manter o relógio, o dinheiro e a honra de não perder as coisas exceto por vontade própria, por um lado, e evitar passar dez dias num hospital, por outro, são demasiado assimétricas. Existe a possibilidade e muitas vezes a opção mais custosa é feita, precisamente porque quem a fez reputou-a menos custosa.

Aqui, fica evidente que até os parâmetros de valoração dos custos relativos são arbitrários e remetem simplesmente à experiência e ao quantitativo. Ou seja, na maioria dos casos avalia-se mais positivamente perder bens que perder saúde, sentir dor ou perder a vida. Mas, a simples ocorrência da exceção, faticamente e mesmo em número reduzido, revela o paradoxo de parametrizar o normal supostamente absoluto a partir do simplesmente contingente.

A mesma sociedade que tacitamente aceita a ausência de liberdade em tais situações de preços relativos muito díspares – e assim revela profunda sabedoria do senso-comum relativizador – continua, se for convidada a falar mais teoricamente, a insistir nos seus absolutos relativizados cotidianamente.

O divórcio radical entre discurso subjacente ao modelo e realidade vivida a cada momento não desperta senão em dois ou três a percepção de que o modelo axiomático é uma prisão. As pessoas são ensinadas que há liberdade, tanto em assuntos e momentos que nada têm a ver com isso, como em casos de sua ausência evidente; e seguem a repetir o mantra, mesmo que suas experiências lhes mostrem inúmeros casos de diferenças brutais de preços relativos que indicam a ausência prática de qualquer liberdade.

A privação material extrema, por exemplo, deforma de tal maneira a capacidade de optar livremente que é estúpido supor a persistência de um campo de opções, exceto se se tratasse de algum grupo de heróis e santos sobre-humanos. Essa raça de Titãs, todavia, sabemos que foi exterminada em tempos pré-homéricos…

Filet mignon na manteiga, pimenta-do-reino, sal grosso e vinho tinto.

O filet mignon bovino é peça extremamente mole, quase sem gorduras nem nervos, mas pouco saborosa, de si. É uma peça cara, por essas bandas, também, basicamente por ser pequena, muito macia e por perder-se pouco depois de tratada.

Para que tenha vantagens além da maciez, dado o pouco sabor intrínseco da peça, convém que seja temperado e que esteja fresco e sanguinolento. Ele adquirirá o sabor aos temperos que se usarem e o sangue ajudará bastante na composição.

Há, basicamente, três maneiras de prepará-lo: em medalhões, em escalopes e como rosbife. Particularmente, prefiro o rosbife, mas dá mais trabalho e estou com preguiça.

O rosbife implica passar a peça inteira previamente temperada em óleo ou manteiga muito quentes, em uma caçarola, rapidamente. A peça ficará frita por fora e suculenta por dentro; depois, mete-se numa assadeira e rega-se com um pouco de vinho, por exemplo, e vai ao forno baixo por vinte ou trinta minutos. Resulta em uma panela e uma assadeira para serem lavadas ao depois…

Uma peça de trinta e poucos centímetros pode ser cortada em medalhões até aproximadamente um terço do seu comprimento; depois, se se continuar a cortá-la contra as fibras, resultará em medalhões muito pequeninos. Então, o restante da peça, na parte que se vai estreitando, pode ser cortada em finos escalopes, ou seja, no sentido das fibras.

Tomei uma peça de filet relativamente pequena, de menos que um quilo, e pus para repousar com sal grosso e pimenta-do-reino moída e um pouquinho de vinho tinto. Duas horas bastam para adquirir algo dos temperos. Depois, cortei-a em medalhões e escalopes e os mantive no mesmo suco, agora já com o sangue que havia dentro. Mais meia horinha.

Seria demasiado longo falar das vantagens e desvantagens da manteiga e do azeite para se fritarem os escalopes e medalhões. A preferência varia de dia para dia. Evidentemente, a manteiga resulta mais pesado, talvez por somar gosdura animal a gordura animal. Mas, é mais saboroso e foi a escolha para hoje. Convém lembrar, todavia, que a manteiga queima e a janela de oportunidade é menor que com o azeite.

Pois bem. Cortei cebolinha – essa planta filha dos deuses, quem sabe deuses mediterrâneos – em rodelinhas bem fininhas. Pus um grande pedaço de manteiga na caçarola e deixei-a derreter e se liquefazer; em seguida, a cebolinha entra na panela e fica a impregnar-se desse lácteo derretido e quente por quatro ou cinco minutos. Nesse ponto, tudo estará muito quente, como convém.

Começa a parte mais sedutora, olfativa e sonoramente: deitam-se os medalhões na mateiga quentíssima com rodelinhas de cebolinha já douradas. O cheiro da carne mole e ensanguentada no primeiro contato com a manteiga fervente é de fazer salivar alguém que não preze a culinária! O crepitar destes pedaços de carne frios subitamente apresentados ao calor gorduroso apraz até a um parcialmente surdo.

Aqui, um parêntesis, como sempre se devem fazê-los para falar do que veio antes: o sal grosso, daquele em grãos que parecem pedriscos, deve ser retirado de tudo que vá para uma caçarola, senão o resultado é desastroso. As carnes que vão para grelhas altas, como em churrascos, podem estar recobertas de sal grosso – que depois basta sacudi-las e retirar o excesso –  mas as que vão para panelas não.

Os medalhões devem ser virados algo rapidamente, pois não se pretende esturricá-los. Pouco tempo depois, deita-se na panela o caldo de sangue e vinho que havia acolhido a peça inteira, anteriormente. Nesse momento, baixa-se o fogo e tampa-se a caçarola, para os sucos impregnarem-se na carne e apurar-se o caldo que cozerá por dez ou quinze minutos.

Para acompanhar essa carne molíssima, gosto de arroz branco cozido com pouco ou nenhum sal. Há quem prefira batatas, que realmente acompanham bem o filet, principalmente se ele for cortado em medalhões grossos e resultar em pouco molho.

Um Malbec, argentino, obviamente, vai multiplicar o sabor dessa carne amanteigada. Quase todos são bons. Convém abrir as janelas de par em par, porque é provável que gotas de suor desçam discretamente das têmporas…

Soma, psiqué e pneuma. Ou, seria possível vender parte da alma ao Príncipe do Mundo?

Os gregos pré-helênicos deixaram-se seduzir pelas partições trinitárias e estabeleceram o modelo persistente até hoje da unicidade composta divisível, esse delicioso paradoxo.

Os elementos do humano poderiam traduzir-se por corpo, consciência e alma, a implicarem-se reciprocamente, aos pares, e a implicarem-se os três como condição da unidade. Aos pares, implicam-se necessariamente para a validade de cada qual e os três ao mesmo tempo como condição de existência não de cada elemento, mas da unidade do humano.

O preceptor do filho de Filipe da Macedônia forneceu um modelo que permeia quase tudo: ele estabeleceu como seriam feitas as definições e isso não foi pouca coisa, porque definir é das mais enraizadas manias. Segundo o caminhante, a definição faz pelo gênero próximo e a diferença específica.

Nesse quadro teórico, é fácil perceber que a partição trinitária da unidade humana serve bem ao propósito de a definir. O corpo estabelece o gênero próximo, em que se encontram os animais todos. A diferença específica insere complicações, porque não é uma, mas duas.

Psiqué, ou consciência, estaria de bom tamanho para diferença específica a definir o humano, na medida em que os humanos não a vêem senão neles mesmos, o que pode ser inclusive estreiteza de visão. Mas, achou-se de inserir mais um elemento, que implicando-se necessariamente com a consciência, inseriria um complicador: ele renderia ensejo a proposições para além da unidade e especificidade, ele abriu a porta para se pensar a permanência.

A consciência passa a ser a diferença específica que depende de uma alma, depende de um sopro. Os gregos pré-helênicos foram sabios a ponto de não inserirem um elemento criador nesse modelo, sabedoria que perde-se, todavia, com Platão, que oferece o modelo tão absurdo quanto triunfante dos planos superpostos.

Essa partição trinitária responde bem ao problema do sujeito que é objeto de si próprio, coisa que as ontologias posteriores não conseguem resolver, porque deixam-se aprisionar pela lógica da superposição de planos mais ou menos coincidentes ou, melhor dizendo, pela crença no ideal do ajustamento de um plano a outro, o que confunde qualidade e quantidade em problemas insolúveis e insere valor onde ele não funciona adequadamente.

O corpo e a consciência fundamentam a unidade do humano, a segunda a permitir um juízo sobre a extensão, que deriva inicialmente unidade de limitação física, espacial. Os corpos não se fundem, por um lado e, por outro, a perda de alguma parte não suprime a unidade. O corpo sem afecções age todo num mesmo sentido e sob comando único.

A alma entra na equação, a princípio, como causa formal da consciência. Isso evolui para causa formal de existência do uno e, mais notável, como elemento a permitir a proposição da permanência. O modelo trinitário vai aperfeiçoando-se constantemente, ou seja, vai sofrendo mutações que não significam necessariamente melhoras ou pioras, que não é disso que se trata.

Inclusive, esse modelo subjacente à definição do humano individual projeta-se para a tarefa insana de uma teologia. O monoteísmo resultante do preconceito mosaíco inoculado pelos inúmeros misticismos gregos e orientais e pelo neo-platonismo que vicejavam na bacia do Mediterrâneo no século I a.C. adota o trinitarismo como base teológica e tem êxito no absurdo cuja absurdidade torna-se argumento de sua própria autoridade.

Esse humano individual, indivisível embora trinitário, segue caminho com poucas perturbações, no mundo seguidor dos monoteísmos de matriz greco-judaica. A unidade eleva-se a dogma e nesse panorama uma heresia pouco percebida torna-se lugar comum. Acredita-se na possibilidade de se vender a alma ao Príncipe do Mundo, em barganha estranha a envolver a permuta de um elemento imaterial constitutivo da unidade por vantagens materiais.

A alma, único elemento da unidade que conceitualmente subsiste na ausência dos demais e passa a constituir a unidade em si e só, evidentemente desempenha o papel de muleta conceptual da idéia de permanência. Pois exatamente ela é admitida como o que será passado ao Príncipe do Mundo, na barganha que, no fundo, implica a fragmentação do uno.

Em perspectiva de rigor lógico, a venda da alma é inconcebível, sob pena de ruir todo o edifício conceitual do humano uno e idivisível. Realmente, se um elemento é destacado, a unidade acaba e, pior, o negócio seria irreversível, na medida em que a alma é permanente.

Cientes do problema, alguns seres mais sagazes deslocaram a percepção da coisa e insinuaram sutilmente que a barganha dar-se-ia pela consciência, o que inseriu relativização tão infame quanto são todas. Assim, a barganha não seria eterna e irreversível, primeiramente, e seria possível um pacto relativo não desestabilizador do sistema unitário, em segundo lugar.

A ciência, essa ideologia de laboratório, tardou mas veio em socorro da lógica da demi-vierge. Pelos anos de 1960, uns cirurgiões e neurologistas resolveram divertir-se com uma das poucas coisas interessantes abaixo do azul do céu: a unicidade da consciência. É possível que esse gozo não tenha sido inicialmente planejado e que tenha se revelado à medida que as investigações avançavam.

Fato é que um tratamento cirúrgico para portadores de epilepsia grave revelou a fragilidade da unidade humana, tão dogmaticamente aceite. Claro que a investigação em si e as implicações dela são amplamente desconhecidas, como acontece com as coisas mais interessantes.

Os cientistas propuseram a secção do corpo caloso, parte fibrosa que faz a ligação entre os dois hemisférios cerebrais. Assim, uma tempestade elétrica iniciada num hemisfério não se comunicaria ao outro, permitindo ao epilético manter a motricidade controlada no lado em que se deu o ataque, além de reduzir a extensão da desordem elétrica no cérebro.

Inicialmente, foi um sucesso aparente. Mas, aos poucos, percebeu-se que Stevenson não fizera apenas ficção e que o senhor Hyde é bastante real. Vários dos pacientes submetidos à calosectomia radical apresentaram a extraordinária manifestação da mão alheia. Nos destros, a mão esquerda agia autonomamente, em situações ligadas principalmente à violência física e à sexualidade sem travas morais construídas a partir de linguagem.

As alterações cognitivas foram igualmente fascinantes, com pacientes incapazes de nominar objetos submetidos à percepção táctil com a mão esquerda, quando impedidos de ver os objetos que lhes eram oferecidos ao contato. A informação táctil recebida na mão esquerda era dirigida apenas ao hemisfério cerebral direito, o que impedia sua percepção a partir da linguagem, que é predominantemente instalada no hemisfério esquerdo.

Mas, a mão alheia era a evidência de que, no mínimo, a unidade era algo mais complicado e certamente menos dogmático do que sempre se usou aceitar. Ora, embora a percepção da ação autônoma do membro superior permita dizer que a consciência não foi dissolvida, porque o sujeito percebe que sua mão age autonomamente, é certo que a unidade não prescinde da ação concertada de todo o corpo, sob uma só vontade. E isso não havia mais, nesses casos.

Tampouco seria inteligente identificar a ação da mão alheia a meros atos reflexos, porque era coisa de uma vontade alheia, mas ainda de alguma vontade, contrária à consciência. O problema é que sempre era decorrente de uma vontade elaborada em níveis de elaboração infra-liguagem. Isso pode conduzir à conclusão de que consciência é, em resumo, linguagem, e que vontade e consciência não são planos superpostos idênticos.

Bem, quaisquer que sejam as conclusões, algo de maravilhoso fica para os relativistas do pacto diabólico: afinal, parece ser possível a venda de parte da alma ao Príncipe do Mundo…

Percepção reduzida por projeção da parte sobre o todo.

Pessoas e grupos tendem a achar-se o centro em torno de que as coisas giram e isso é manifestação de auto-referência com muita inércia. Parece mesmo uma tendência de psicologia social, tão amplos são os efeitos.

Alguns lugares-comuns refletem a atitude de projetar o todo como símile da situação pessoal e de grupo restrito. Aqui, em Campina Grande, é comum as pessoas dizerem que a cidade está deserta e que todos estão em João Pessoa, para o veraneio na praia, nas férias de verão, em janeiro. Semelhantemente, é comum dizer-se que Brasília torna-se cidade deserta no carnaval, porque todos se vão para destinos festivos momescos.

Claro que esses lugares-comuns têm raízes em algo de realidade, mas é um tanto de realidade para poucos, que se projeta como percepção válida para tudo. Ora, muitas pessoas das classes média e alta vão mesmo, todos os anos, como a cumprirem obrigação inadiável, passar o veraneio na praia, no mês de janeiro. Claro que muita gente sai de Brasília e vai passar o carnaval em destinos turísticos ou nas suas cidades de origem.

Mas, basta um pouco de percepção para observar que essas viagens de pessoas de classes mais favorecidas atingem parcela pequena ou muito pequena das populações das cidades que usei como exemplo. É bem reduzido o número dos que podem ter duas casas, uma na cidade de moradia, outra na praia, assim como é reduzido o número dos que podem simplesmente dar-se férias em janeiro, independentemente de quaisquer fatores além da própria vontade.

Quem cria o discurso, que por sua vez cria a realidade aceita, é sempre um grupo reduzido. Ele parte de sua imensa auto-referência e faz da realidade geral a sua realidade própria e o discurso resultante espalha-se e reproduz-se acriticamente por quantos não se inserem nas condições dos criadores do lugar-comum. Trata-se de afirmação de si que toma ares de axioma social amplo e irrestrito, enfim.

O lugar-comum, essa projeção do particular no geral, não é somente deficiência de percepção, mas falsidade numérica observável facilmente. Nestes tempos quentes de janeiro, quem se dispuser a ir ao centro de Campina Grande caminhando, em manhã de sábado, verá tanta gente como nos outros meses do ano. Verá menos automóveis, por estreita margem, mas pessoas no mesmo número.

O mais interessante é que o lugar-comum não é somente um dito descasado da realidade para a imensa maioria das pessoas, ele carrega também um juízo de valor. Quem diz que a cidade está deserta porque todo mundo está na praia, diz que é ruim estar numa tal cidade. Este juízo negativo de ficar numa cidade supostamente deserta, por sua vez, carrega nítida afirmação de pertencimento social.

Ou seja, fica quem não cumpre o ritual – independe que se goste ou não – de passar o veraneio na praia, o que leva a concluir que o juízo negativo é de distinção de classe.

Interessantes consequências da estreiteza de visão que o lugar-comum dissemina são que algumas pessoas vêem-se obrigadas a cumprirem ritual que não lhes agrada, no fundo; que muitas pessoas vêem-se sonhando com a possibilidade de cumprir o ritual, mesmo que não o percebam intimamente com algum sentido.

Devaneio: execução em praça pública.

Parte das classes médias vive dias de excitação enorme por conta do espetáculo oferecido pelo supremo tribunal federal e a imprensa majoritária. Trata-se de um suposto julgamento de ação penal contra vários réus, uns políticos, outros ex-políticos, banqueiros, publicitários.

Uma malta que teria criado um imenso e genial esquema – todos em perfeito e sincronizado acordo de vontades – para que o governo subornasse por meio de pagamentos mensais sua própria bancada de apoio no congresso.

Coisa que se fosse provada seria um feito a merecer registro nos anais da política brasileira, em que a tradição é comprar deputados esporadicamente, caso a caso, o que é mais caro evidentemente.

Até o presente, não apareceram as provas de pagamentos para que os parlamentares votassem pela aprovação das reformas tributária e previdenciária, que são as duas grandes votações que dão suporte à acusação. Nunca é demais lembrar que essas duas reformas foram aprovadas quase à unanimidade, ou seja, por partidos de governo e de oposição, o que aponta que se houve suborno foi um desperdício…

À parte a falta de provas, é fascinante perceber o tribunal supremo desfazendo todas as inverdades que os bacharéis em direito aprendemos em cinco anos de faculdade sobre penal e constitucional. Estava tudo errado afinal e esse intrépidos senhores togados vieram reparar iniquidades longevas

Aquela estória de presunção de inocência em matéria criminal era coisa para coitados, para românticos anacrônicos que não perceberam as emergências do momento presente. Aquela conversa de que na dúvida absolve-se foi enfim superada, a bem da celeridade no processo, valor supremo destes tempos tão céleres.

A maior de todas as tolices, a exigência de que a conduta dos malfeitores se adeque a uma previsão legal, que os tolos conheciam por tipicidade, isso acabou-se. Hoje, no recém inaugurado direito penal, bondosamente revelado pelo supremo tribunal, vigora a escolha caso a caso segundo o supremo discernimento que os magistrados têm.

Não haverá quaisquer riscos decorrentes dessas inovações porque os magistrados são infalíveis e neles se encontra coisa mais sólida e segura que em simples leis com pretensões a generalidade e abstração.

A EXECUÇÃO DOS MARCADOS PELO MAL

Andou muito bem o tribunal, porque o país estava farto da leniência da justiça com os políticos que cometeram os crimes mais graves da história deste país. História que, obviamente, é amplamente conhecida por todos, já que somos um povo cultivador da memória, das letras, da tolerância.

Livramos-nos de perigosos e inadequados anacronismos nestes tempos de emergência, em que o mundo e o Brasil estão infestados de terroristas e toda sorte de malfeitores. E nós, desacostumados a ver a face da corrupção, que nunca houve significativa por aqui, acreditávamos até pouco que a poderíamos combater com românticos sistemas garantistas.

O tribunal, por outro lado, ouviu os clamores públicos por justiça, ouviu a indignação dos justos cidadãos pagadores de impostos, que não suportam nem concebem que o país seja destruído pelos intuitos criminosos de uma perigosa e bem articulada quadrilha.

Não se concebe que meliantes deste grau de perigosidade ousem invocar preceitos arcaicos da velha ordem, como se todos não soubessem imeditamente que são culpados de tudo quanto os acusam e provavelmente de ainda mais.

Diante da gravidade das acusações e da importância de puni-los exemplarmente, iniciou-se o debate sobre a fixação das penas. Uma tímida parcela inclinou-se pela utilização das penas que a antiga ordem previa. Logo, como era de esperar-se, foi vencida e convencida pela maioria de que nada da antiga ordem teria serventia neste caso excepcional.

Os debates evoluiram e surgiu uma bela idéia. Os crimes eram tão graves e os culpados tão execráveis que convinha ao país livrar-se da simples possibilidade de ter a descendência desta gente entre seus cidadãos. Realmente, criminosos deste tipo têm algo de genético, ou seja, têm uma propensão natural ao crime, coisa que se transmite aos seus descendentes.

Daí que houve consensso quanto à castração de todos os culpados. Eles não poderiam engendrar mais seres detestáveis como eles e a medida justificar-se-ia plenamente. Até alguns choramingas que insinuaram inicialmente não haver evidências científicas de inclinações naturais foram convencidos.

Ora, que conversa mais tola essa de negar que a maldade é como a marca de Cain! É transmissível, sim, e o mal tem que ser cortado pela raiz para que não volte a macular um país que o não conhecia. Que sejam castrados, portanto!

Todavia, a inteligência insinuava-se aos poucos; aparecia furtivamente a um e outro membro deste magnífico tribunal, a revelar-se cada vez mais, em aspectos diferentes. Eis que um magistrado percebeu a possibilidade de aplicar-se pena muito mais efetiva e que implicaria também, por decorrência lógica, a pena antes cogitada da castração.

O ideal era executar os culpados! Ora, executando-os, tanto se lhes aplicava a pena máxima possível, quanto livrava o país de possível descendência que eles pudessem deixar. Foi rápida a adoção desta genial solução por todos os integrantes do tribunal, que logo perceberam sua superioridade sobre o que antes cogitara-se.

Porém, a fada da sapiência não deixou de pairar airosamente no magno recinto tribunalício. Esta boa emissária não se fatigava nos seus misteres até que os homens tivessem visto a verdade em sua plenitude. Foi aí que o magistrado da acusação teve um sonho e acordou encantado com as visões tidas.

Ele percebeu que a execução dos culpados era, sim, a pena máxima e o expurgo de alguma descendência futura, isso era verdade. Todavia, restava a descendência já nascida! Aquela gente carregada de culpa atemporal já tinha filhos!

O acusador compareceu à sessão seguinte com um discreto sorriso de quem se sabe guardião de uma idéia inédita e genial, daquelas que se devem revelar aos poucos, gozando o assombro dos outros e a inveja por não a terem aventado antes.

Acontece que a inteligência realmente estava entre aqueles ungidos. Tão logo o acusador desvelou partes da idéia, os demais perceberam-na. Não lhe negaram os créditos, mas percebia-se que a sintonia era tamanha que pouco mais ou menos, qualquer um teria chegado àquela conclusão sobre as penas idéiais.

Assim foi que a fada descansou; sua missão chegara a termo e tudo estava bem encaminhado. Com relação à forma de execução, ela estava segura que podia deixar essa parte somente para os magistrados, que eles saberiam levar as coisas da melhor maneira.

E ficou decidido que seria tudo em um só grande dia; que se iniciaria pela manhã cedo, à volta das sete e meia, afinal eram muitos os executados. Seria na grande praça que se abre em três lados para os palácios de governo, do parlamento e do tribunal.

Os culpados seriam conduzidos em fila, trajando uma túnica de pano grosso, pés e mãos amarrados. Alinhados em frente à grande tribuna, ouviriam a exortação para reconhecerem seus delitos de lesa nacionalidade e sua afirmação de aceitação da justa pena.

Decidiu-se que às pessoas assistentes seriam distribuídos pequenos binóculos, bebidas à vontade e leques para se abanarem. Deliberou-se, ainda, que a lei criminalizadora da posse de armas de fogo seria suspensa naquele dia, afinal suspender leis era imperioso nas emergências. Poderia haver algum partidário dos culpados pronto a querer agedir o egrégio povo ou, pior, os mais egrégios magistrados.

As execuções seriam por três meios: enforcamento, decapitação na guilhotina e fuzilamento. Assim, o meio do primeiro executado seria sorteado e os seguintes iriam na ordem. Isto proporcionaria mais sentido de justiça ainda, na medida em que cada assistente poderia rejubilar-se com o meio de execução que mais lhe agradasse.

Seriam pouco mais de cem os acusados a serem justiciados no grande dia. Às sete horas, já não cabia mais uma pessoa na grande praça; estava completamente tomada de gente eufórica pelo espetáculo da justiça a ser realizada materialmente.

O magistrado chefe quase não consegue ler o sumário de três linhas da sentença condenatória, tal era a gritaria na praça. Nada obstante, o justo magistrado não deixou de instar a multidão ao silêncio, pois não se permitia relativizar aquela importante formalidade. Era imperioso ler o sumário!

Afinal sorteou-se o meio de execução do primeiro culpado e deu enforcamento. Não poderia ser mais adequado, tratando-se o primeiro executado de um homem de aproximadamente 40 anos. Aconteceu o que muitas vezes dá-se nesta cena que os frágeis acham repugnante: o enforcado teve uma ereção…

A massa entrou em transe furioso, afinal aquele infame, aquele filho de Satanás tivera a ousadia de desdenhar de um ato de suprema justiça levantando voluntariamente seu membro viril, em evidente provocação ao povo e aos representantes dele e de deus na terra.

Daí em diante, a crônica não conseguiu mais registrar nada. A fúria justiceira do povo não podia mais ser contida. Alguns creem que daquela imensa confusão, que resultou em 3500 mortes, um ou outro culpado conseguiu escapar.

De minha parte, acho bastante improvável porque lastimavelmente nem um só dos magistrados escapou, embora protegidos por soldados. Estes, coitados, também pereceram todos nessa grande saturnália.

Ignorância afirmativa: o que tem de argentino no Colón?

Os maiores sociólogos do senso-comum que há, nas cidades grandes, são os taxistas. Eles são conservadores, em sua maioria, mas não são desonestos intelectualmente, ou seja, não estão a representar papéis aparentemente complexos.

Táxis em Buenos Aires ainda são meio de transporte relativamente barato e, portanto, interessante para deslocamentos grandes. Para pequenas e médias distâncias, o ideal é caminhar e perde muito quem não fizer esta opção.

Quase sempre é possível conversar com os taxistas. Em outras ocasiões, gostava mais de falar de política, mas deixei isso de lado. Hoje, basicamente amenidades e futebol; é bom deixá-los falarem.

E eles são quase unânimes em insinuarem que nós brasileiros e o Brasil em geral estamos muito bem. Eles percebem as coisas muito a partir da taxa de câmbio, da quantidade de sacos que os brasileiros carregam consigo e das opiniões de quantos deslumbrados estiveram lá na tentativa de trazer tudo que for possível na bagagem.

Que nós brasileiros e o Brasil estamos melhores é óbvio, mas isso é negado, internamente, exatamente pela classe média que se comporta de maneira a afirmá-lo no exterior. A mesma gente que insiste em reclamar de tudo, em casa, dá sinais evidentes do contrário, fora de casa!

Prova que certa camada social reclama muito por reflexo condicionado ou até por reflexo totalmente involuntário e incondicionado. Por puro e simples conservadorismo político e preconceito de classe contra um certo ex-presidente da república que, o único, era de extração social realmente baixa.

A parcela da população brasileira que tem do que reclamar e o devia fazer, está em relativa letargia, infelizmente. Mas, quando derem vez ao morro, toda a cidade vai passar…

Bem, o caso é que destinos turísticos de brasileiros em Buenos Aires, de coração e sinceramente, são os centros de compras, desde as evidentes Galerias Pacifico até os centros caros de Palermo.

Mas, é engraçado como há uma pontinha de desconfiança com o entregar-se totalmente aos desejos mais puros e reais. Há que se inserir algo menos comercial ao roteiro e qualquer coisa serve.

Curiosa necessidade humana, essa de disfarçar um pouco as vontades mais verdadeiras. O sujeito, no mais das vezes, queria era sair nu pela rua, correndo, gritando, saltando, com o cartão de crédito na mão, a gritar eu compro, eu compro, como um novo eureka de um tristemente novo Arquimedes.

Bem, o caso é que fomos visitar o Teatro Colón. Este edifício é enorme e belíssimo. Mais bonito por dentro que por fora, de uma beleza suntuosa, de neoclássico eclético. Estão lá os inevitáveis vitrais franceses, os mármores Carrara, os tetos em estuque doirado, os espelhos enormes, o mobiliário terceiro império tardio. Esse Teatro é mais belo que a Opera Garnier, que certamente foi um modelo considerado na época da construção.

O Colón foi o ponto turístico – não tentarei inventar termos para fugir desse péssimo lugar-comum – onde menos avistei brasileiros, afinal não é um centro de compras. Todavia, pouco não significa nenhum. Éramos suficientes para termos direito a visita guiada por uma simpática jovem a esforçar-se por falar português.

A guia da visita dos brasileiros era simpática e servia-se de sagazes meios de agradar a platéia, como desculpar-se inicialmente pelo precário português falado – falando-o perfeitamente – perguntar aos visitantes de onde vinham e contar uma e outra anedota bem suave sobre a construção do teatro.

O perguntar de onde vêm os visitantes produz um belo efeito, pois todos anseiam por falar, mesmo que seja para dizer alguma irrelevância. A cultura da participação, ainda que se participe com um nada, é muito bem reputada.

Lá pela metade da visita, ao cimo do segundo lance de escadas, que dá acesso aos camarotes, a guia parou a explicar que a construção do teatro envolveu três ou quatro arquitetos italianos e franceses, mármores de três regiões distintas da Itália, espelhos belgas, vitrais franceses e por aí segue.

Perto de terminar a exposição, a guia foi interrompida por uma audaz e segura de si senhora do Rio de Janeiro, que a indagou o que naquele Teatro era argentino. Ó aparente sagacidade, coisa rápida que faz alguém meter-se no caminho da grosseria e da burrice…

É perverso tentar constranger pessoas que, em função do ofício, não podem responder adequadamente, embora saibam como fazê-lo. A jovem, muito delicadamente, disse o óbvio: embora arquitetos, mármores e vidros não fossem argentinos, a idéia de erguer o teatro, o sítio e o dinheiro que o pagou eram-no.

Se eu fosse um ser mais tolerante e, portanto, mais dado a provocações e ironias, teria perguntado à senhora do Rio de Janeiro o que ela acha que é brasileiro no Theatro Municipal da antiga capital do Império e da República, exceto o suor dos trabalhadores, e alguma areia retirada de Botafogo.

Mármores, espelhos, vitrais e o restante a compor um típico teatro fin-de-siècle como o Municipal do Rio de Janeiro vieram todos da Europa e nem por isso o edifício pode-se  considerar não-brasileiro.

A lógica fácil, a falta de educação, a falta de cultura formal e o estar sempre à vontade por sentir-se mais rico levam a grosserias imensas, que somente deviam ser praticadas na mesa de um bar, entre pessoas que não estão obrigadas ao silêncio por conveniências profissionais.

Os deuses morrem de rir.

A proposta mais interessante que já vi, para interpretação do conhecido postulado de Nietzsche, é de Deleuze. Ele diz que os deuses morrem de rir quando um deles afirma-se único.

Poucas coisas fazem rir mais que a afirmação de desigualdade a partir de aspectos que, ao contrário, embasam precisamente a igualdade. Se fosse um deus, eu riria muito também, se escutasse tal reivindicação.

A necessidade de afirmação – em termos que são mesmo políticos – de monoteísmo é paradoxal. O um não precisa afirmar-se senão em face ao dois. Afirmando-se contra o dois ele o reconhece, porque seria ocioso fazê-lo contra o nada. Ou seja, é proposta tendente a girar em círculos.

A única saída para o um, se existisse, era ser absolutamente positivo, ou seja, afirmativo de nada. Ser negativo significa admitir os outros – ao menos como referências potencialmente existentes – e implica necessariamente o tempo, duas coisas com que o um absoluto é teoricamente incompatível.

Lembro-me bastante de um precioso trecho de Ortega e Gasset sobre a simples negação ou contrariedade. Ele diz que afirmar-se anti – Pedro não passa de afirmar-se favorável a um momento anterior à existência de Pedro, ou seja, não é uma proposta, senão um anseio de regresso.

Daí, se um teísmo que se quer único afirma-se contra outro – ainda que tenha o cuidado retórico de dizer do outro que é falso – simplesmente está a propor o retorno ao momento em que o outro não havia, proposição que não tem qualquer relação com a unicidade ou pluralidade.

No fundo, essa necessidade de afirmar-se transparece a única coisa verdadeira que existe; coisa que é mais forte que a busca por afirmações coerentes e não paradoxais. Coisa que é mais forte que as tentativas do paradoxo esconder-se pelo esforço de quantos catedráticos de Bolonha ou Paris haja.

Não se trata aqui de elogiar essa coisa, mas de tentar deixá-la evidente pois, na verdade, é desejável que ela não se manifeste tanto e que se manifeste menos não por conta de racionalizações profundamente irracionais. Isso é o desejo de guerra, a unica realidade, ao fim e ao cabo. Um significado quase sem significante.

Convém não tentar aprisionar esse desejo com racionalizações superficiais e desonestas, extamente para que o âmbito da organização pelo racional possa ser plenamente desenvolvido, para que a potência racional torne-se em ato no seu espaço próprio, que não é negativo.

Apenas para inserir um fato – que não precisa ser visto sob a perspectiva acima, necessariamente – digo que o centro de Campina Grande tem visto um grupo de dez ou quinze ciganas, todas coerentemente trajadas. Nada tenho, contra ou a favor de ciganas, apenas não quero conversa com elas.

Não vou parar para escutar alguma coisa sobre as linhas da minha mão, mesmo que surja uma disposta a ler a esquerda, a que não veicula qualquer mensagem, estranhamente. Também não gosto do detestável hábito delas de pegarem nas pessoas; de porem as mãos nas pessoas, de se dirigirem a elas com um contato físico.

Mas, não vou parar em frente das ciganas para lhes dirigir insultos ou questões. Elas que se fiquem onde estão, que não fazem mal a ninguém.

Pois bem, outro dia desses, um evangélico – desses tão radicais quanto estúpidos – prestou-se a fazer um discurso repleto de insultos e asneiras, aos berros, de uma forma tal que constrangeu as ciganas, o que se sabe não ser coisa fácil. Imagine-se a violência desse discurso.

No fundo, ele reclama seu público, pois não faz mais que ler mãos, também. Reclama por conta da mistura louca da racionalização que é seu disfarce e das erupções da verdade, a ponto e ponto, que é seu desejo de matar.

Luís Figo

Costumava ver mais futebol que atualmente. Isso era de 1998 para trás, no tempo em que era vivo um tio que gostava muito de futebol; na casa dele eu estava frequentemente e víamos muitos jogos pela televisão.

Lembro-me de Luis Figo a jogar desde antes de 1998. Não há qualquer erro de datas, porque o futebolista é dois anos mais velho que eu e estava já em evidência, no Barcelona, quando eu assistia o campeonato espanhol assiduamente.

Minha primeira impressão foi que era um jogador muito habilidoso nos espaços curtos e médios. Depois, que era um jogador relativamente forte, com o centro de gravidade baixo, ou seja, difícil de derrubar.

Não como Maradona, o paradigma do jogador baixo, forte, habilidosíssimo, da bunda grande, pernas abertas, a bola colada aos pés, dificílimo de por no chão exceto com grande violência, mas Figo fugia ao comum.

Comecei a suspeitar que Figo driblava muito para trás aqueles dribles largos e aparentemente fáceis. Mais depois e quase contemporaneamente, percebi que o passe depois do drible para trás era sempre certeiro, para o meio e para um companheiro que tinha obtido espaço por conta das firulas do Figo.

Adiante, percebi que o homem chutava muito bem a gol. Chute forte, tiro tenso, a longa distância. Nada como Cristiano Ronaldo, mas tampouco desorezível em alguém com outras qualidades. Percebi o óbvio, que Figo corria o jogo inteiro.

A síntese da minha penúltima consolidação de pensamento foi que ele era laboriosíssimo, ou seja, que era um jogador muito disposto e trabalhador para a equipe. O homem corria o jogo todo, não considerava perdidas certas bolas e ainda conseguia ver onde estavam os companheiros a receberem passes certeiros.

Por fim, percebi que Figo era um excepcional jogador, precisamente por ser tudo que vinha percebendo aos poucos: habilidoso, dedicado, corredor, bom passador, difícil de parar com falta, bom chutador, organizador do jogo, cadenciado.

Com ele, aposentou-se o elemento fundamental da equipe portuguesa. Aposentou-se a inteligência.

Crença e causalidade. Religiosidade e ciência.

Não há, no fundo, incompatibilidades entre os sistemas baseados nas crenças e aqueles baseados nas causalidades, exceto por que os primeiros evitam as armadilhas das regressões infinitas. Não há, porque ambos servem-se de crenças e de afirmaçõs de causalidades, em cadeias maiores ou menores.

O dito acima não se confunde com postular a compatibilidade absoluta entre religiosidades e ciência ou filosofia. São afirmações diferentes, pois pode haver sistemas filosóficos focados mais nas relações que nas causalidades e crenças.

É claro que penso na assertiva de Hume, agora: as relações são exteriores aos seus termos. Os termos, aqui, são quanto se capta sensorialmente, quanto de percebe de fora como informação. Mas, são também as causas. O todo, que seria uma relação, muito provavelmente está para fora, ou para além do simples conjunto dos termos em comparação, ou seja em dinâmica relação.

Crença e desejo estão por todos os lados, enervados, nas postulações religiosas e nas científicas, a condicionarem as causalidades enunciadas em cada segmento componente de uma estrutura teórica.

Os triviais – e repetidos – exemplos são os melhores. A indução clássica de que amanhã haverá uma aurora decorre de hoje a termos visto e ontem também e antes de ontem e, aparentemente, desde sempre. Ora, o que há é a crença na aurora de amanha, porque a de hoje não é, de maneira alguma, um antecedente causal lógico válido para assumirmos que ele haverá amanhã.

O nascer do sol de amanhã, quando e se ele ocorrer, será o do hoje de amanhã, nunca uma decorrência causal de ter ocorrido antes. Ou seja, a relação entre as auroras e suas sucessões estão muito além do aprisionamento dela a partir de seus termos isolados e de alguma aparente causalidade.

Visto por outro ponto, a crença está antes e depois da relação ou do postulado. Antes como axioma e depois como resultado efetivamente produzido e projetado, ou seja, não espontânea resultante de um método científico. Talvez fosse mais adequado nomear a crença ao depois como desejo, mas isso afastaria a percepção de circularidade que permeia grande parte dos raciocínios e enunciações.

Os modelos causais tendem a serem circulares na medida em que os pressupostos confundem-se com as conclusões ou finalidade, se assim se preferir chamar. O sistema aristotélico das causalidades inicial, formal, material e final é, assim, nitidamente autoreferente, circular e tendente ao sofisma de indução. Essa mesma estrutura básica ampara as religiosidades de matriz grega, persa e judaica.

Se as relações estão fora de seus termos, mais que a conclusão empirista clássica da redução ao dado, temos relações autônomas, sucessivas horizontalmente ou mesmo paralelas. Dissociadas, portanto, da clássica lógica da imputação, que é, afinal, uma lógica da formação do juízo. Ora, uma lógica da construção do juízo não se faz sem altas doses de crença.

Assim, talvez seja válido afirmar que a ciência e a religiosidade operam segundo o mesmo modelo, com vantagens para a religiosidade, que não precisa fazer esforços para disfarçar a crença.

A Presidente Dilma tem 77% de aprovação popular.

77% de aprovação popular, aferidos pelo IBOPE, entidade insuspeita de governismo – na verdade, sempre suspeita de oposicionismo a qualquer coisa minimamente tingida de vermelho, por mais claro que seja.

Isso, a despeito de campanha mediática diária e sistemática contra o governo, a servir-se basicamente da seletividade na ênfase que se põe no escândalo de ocasião. O grande instrumento de ataque da imprensa é a seletividade: dá-se destaque ao que interessa aos desideratos do meio de comunicação e o que não interessa não sai.

É interessante perceber como apostam na estupidez, o que fica evidente no descompasso entre matérias de TV e matérias de jornais e revistas. Supostamente – como está nos manuais – a TV é o meio para os estúpidos e os jornais e revistas para os menos estúpidos.

Assim, revistas e jornais dos grandes grupos de comunicação não puderam fazer de conta que não houve um conúbio mafioso enorme entre um senador da UDN, um criminoso conhecido, um governador da UDN e outros funcionários menores, porque deixariam a banda passar se nada dissessem. Mas, as TVs silenciaram, assim como silenciou a revista Veja, uma publicação de baixíssimo nível, que não é questão de ideologia, mas de associação criminosa mesmo.

A Presidente não é tão genial, politicamente, quanto o ex-Presidente Lula. Mas, tem a possibilidade de governar até melhor que Lula, porque é mais disposta ao confronto e menos gestada na política. Além, é claro, de ser inteligentíssima e culta. E, tem Lula para ajudá-la politicamente, o que não é pouco.

A Presidente deu uma ordem, claro que a deu, para que os dois maiores bancos públicos do país, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, reduzissem suas taxas de juros no crédito à metade! Ao mesmo tempo, reduziu a contribuição previdenciária patronal de vários setores industriais e de serviços a zero!

O que ela quer? Quer fazer um mercado interno ainda mais robusto, estimular o consumo, estimular a criação de empregos. Quem perde imediatamente com isso? 0,5% da população brasileira perde com isso: os bancos privados e seus empregados na imprensa e nos partidos políticos.

Os bancos privados terão que reduzir suas margens de lucros com empréstimos cariíssimos, que hoje os sustentam. Porque, se não seguirem o BB e a CEF, ficarão para trás. E eles os podem seguir, sem riscos de quebrarem, apenas terão que ganhar menos…

Enquanto isso, uma parte da imprensa fala mal das medidas, mesmo que sempre tenha insistido na estória dos juros serem muito altos e os impostos também. É cômico ver o pessoal dos media tentar falar mal do que sempre defendeu, servindo-se dos argumentos mais tortuosos, como se dissessem é bom mas é ruim! É o que eles pediam, precisamente, mas têm que falar mal, por questões de política golpista.

A Presidente deu à imprensa raivosamente golpista o papel ridículo, o que foi genial! Enquanto eles dizem é bom mas é ruim, o povo percebe as coisas, a despeito de ver TV e a despeito da classe média ler avidamente o lixo editorial que se publica semanalmente.

77%… Realmente, é quase nada.

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