A liberdade é substantiva ou adjetiva? De certa forma, parece que tanto faz que seja tomada como categoria ontológica por si, ou como predicado de um sujeito, ela é um elemento de confusão permanente e, assim, utilíssima nos discursos que menos esclarecem que confundem.
À partida, percebe-se que é axiomática, a partir do postulado o homem é livre. Axiomática, eis que a pergunta o homem é livre por que? revela praticamente inviável, na medida em que não se faz, nem, consequentemente, se responde. Não há razão, nem fato, que indique a veracidade ou a plausibilidade lógica do postulado, que, no limite, significa nada.
É nitido que a proposição é ideológica e axiomática, como são aquelas a dizerem o homem é bom ou o homem é mau. Em torno a isso, pode-se passar uma vida a investigar e mais que ser inútil a investigação – porque a utilidade é algo realmente desonroso em termos intelectuais – é querer distinguir se ocorre mais preto que branco em quadro com iguais ocorrências dessas variações cromáticas extremas.
Escapando de abordagens ontológicas e gnoseológicas, por superficiais que sejam, pode-se ficar com a proposição comum, que aceita conceituar a coisa como possibilidade de escolha. Isso implica que haja alternativas e que elas, em si, não condicionem previamente as escolhas, e mais, que haja consciência de todo o processo. Ou seja, é algo complicado até mesmo a partir da abordagem mais simples.
O modelo revela-se à compreensão pela válvula de escape que ele mesmo prevê, como frequentemente ocorre. Ele é normativo, tem estrutura de construção legislativa e tem fiscais autorizados, que se organizam no formato de grupos sacerdotais e corpos de juízes. Nossa matriz greco-judaica não faz as coisas de outra maneira além da legislação.
A válvula de escape, a exceção que permite ver o conceito de liberdade depurado, encontra-se no estado de necessidade, categoria de direito criminal que carrega a aspiração profundamente arrogante de pureza total de condicionantes externas.
O exemplo clássico dos manuais é aquele dos dois náufragos cuja salvação depende de uma tábua capaz de fazer flutuar apenas um. O que vencer a luta pela tábua não terá, juridicamente, cometido homicídio, porque não lhe era exigida conduta diversa, não se supõe que estivesse frente a duas ou mais alternativas, posto que uma delas seria sempre o próprio perecimento.
Aqui fica claro o limite: ele encontra-se na permanência do indivíduo. O modelo assume, portanto, existirem situações de falta absoluta de liberdade, o que afasta qualquer substantividade que se quisesse presente. Uma categoria substantiva não pode ser e não ser, em momentos cambiantes e determinados; isso é próprio das predicações.
A famosa exceção revela o que se esconde com a tenacidade do silêncio, a maior delas. A liberdade – entendida como ocorrência de opções – é, portanto, relativa às circunstâncias e, o que é nitidamente paradoxal, pode ser afastada pela conjunção de fatos perfeitamente aleatórios e independentes dos sujeitos em questão.
Diferentemente seria se o modelo não fosse tão permeado de axiomas de matriz religiosa. Se, por exemplo, se aceitasse que a permanência na vida encontra-se perfeitamente entre as escolhas possíveis, teríamos que o náufrago sobrevivente seria homicida, porque havia para ele a opção de deixar-se morrer. Mas, parece que a incoerência é necessária a todos os modelos que tentam apreender os comportamentos humanos.
A proposição da liberdade substantiva plena, sem exceções portanto, não carregaria absurdidade alguma, assim como não seria absurdo concebê-la como relativa, sempre. Isso de exemplos não me agrada muito, pois fica a parecer manual de direito, porém mais um pode ser valioso. Se os dois náufragos foram mãe e filho temos a possibilidade de aceitar sem escândalos que o limite foi atingido por outro lado e a liberdade estava presente onde poderia ser excepcionada: com tal dupla de sujeitos, não espantaria que um deles optasse livremente por morrer-se, precisamente para que não morresse o outro.
A exceção é arbitrária e axiomática, tanto quanto a regra e tanto quanto as demais exceções axiomáticas que se articulam para que o modelo seja aparentemente destituído de descontinuidades.
Em termos práticos, isso que se chamam opções possíveis não passam de comparações profundamente assimétricas de possíveis e prováveis retornos. As assimetrias são tamanhas que é fácil perceber-se a virtual ausência de liberdade, exceto se estivéssemos num modelo que consagra honradez em moldes de valentia de cavalaria. Don Quixote, se não fosse reputado louco, mas real paradigma, viabilizaria a coerência dessa proposição da sempre possível escolha livre, mas ele foi reputado louco…
Se eu caminho pelo passeio, de relógio no pulso e algum dinheiro no bolso e um simpático sujeito aborda-me de revólver em punho e exige-me o dinheiro e o relógio, tenho, em princípio, a liberdade de negar o pedido e arriscar-me a levar um tiro, que pode ser fatal, pode ferir-me gravemente ou pode ferir-me superficialmente.
As vantagens relativas de manter o relógio, o dinheiro e a honra de não perder as coisas exceto por vontade própria, por um lado, e evitar passar dez dias num hospital, por outro, são demasiado assimétricas. Existe a possibilidade e muitas vezes a opção mais custosa é feita, precisamente porque quem a fez reputou-a menos custosa.
Aqui, fica evidente que até os parâmetros de valoração dos custos relativos são arbitrários e remetem simplesmente à experiência e ao quantitativo. Ou seja, na maioria dos casos avalia-se mais positivamente perder bens que perder saúde, sentir dor ou perder a vida. Mas, a simples ocorrência da exceção, faticamente e mesmo em número reduzido, revela o paradoxo de parametrizar o normal supostamente absoluto a partir do simplesmente contingente.
A mesma sociedade que tacitamente aceita a ausência de liberdade em tais situações de preços relativos muito díspares – e assim revela profunda sabedoria do senso-comum relativizador – continua, se for convidada a falar mais teoricamente, a insistir nos seus absolutos relativizados cotidianamente.
O divórcio radical entre discurso subjacente ao modelo e realidade vivida a cada momento não desperta senão em dois ou três a percepção de que o modelo axiomático é uma prisão. As pessoas são ensinadas que há liberdade, tanto em assuntos e momentos que nada têm a ver com isso, como em casos de sua ausência evidente; e seguem a repetir o mantra, mesmo que suas experiências lhes mostrem inúmeros casos de diferenças brutais de preços relativos que indicam a ausência prática de qualquer liberdade.
A privação material extrema, por exemplo, deforma de tal maneira a capacidade de optar livremente que é estúpido supor a persistência de um campo de opções, exceto se se tratasse de algum grupo de heróis e santos sobre-humanos. Essa raça de Titãs, todavia, sabemos que foi exterminada em tempos pré-homéricos…