Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 6 of 17)

O poder do dinheiro e o vácuo de outras forças sociais.

Muito se tem falado em corrução, presentemente, em termos de moralismo político. Muito embora seja abordagem quase destituída de sentido, por difusa e histérica, aponta para algo que se repete na história: o escândalo com o poder social do dinheiro.

Vários períodos históricos viram a acusação veemente do excessivo poder social do dinheiro e poucas coisas em comum tinham estes períodos, exceto terem-se revelado épocas de transição, em que não se anunciavam claramente os novos princípios retores a predominarem na sociedade.

O dinheiro, ao contrário do amplamente aceite, não é uma força primária de conformação social. Os destacados princípios hierarquizadores das sociedades são pertencimentos a raças, clãs, religiões, círculos intelectuais. O dinheiro destaca-se como critério de hierarquização quando os princípios primários recuam na sua importância. Ele impõe-se no vácuo dos outros, embora esteja sempre presente, como força meio.

Afastando-se de concepções puramente economicistas da história, percebe-se que toda a dinâmica social não está em função do que se pode comprar, embora seja notável uma aceleração desta motivação, a partir de quando a quantidade de coisas passíveis de aquisição aumentou muito.

Em momentos históricos de pouca disponibilidade de coisas comerciáveis, o dinheiro raramente sobrepõe-se a outros princípios de poder social, embora o público o anuncie com surpresa e escândalo. Raramente sobrepõe-se ao poder social do guerreiro ou do sacerdote, até bastante recentemente.

Não é demasiado, nem deve ser escandalosa a menção por si só, lembrar que no medievo europeu o dinheiro, ou pelo menos grande parte dele, estava em mãos dos judeus e estes eram destituídos de poder e ocupavam baixa posição na hierarquia social. Evidência do predomínio de outras fontes de poder social, como religião e raça.

Crises de transição histórica geralmente oferecem o espetáculo da acusação indignada do poder do dinheiro, que nada mais é que o libelo confuso contra uma corrução crematística, por parte de quem se vê na correnteza de águas turvas sem saber para onde vai. O surto moralista e moralizante é muito efeito do aturdimento com o entorno em mudança. Incompreensão, enfim.

Todavia, a afirmação do poder do dinheiro – não sua acusação como falta ou consequência de corrução – passa a fazer mais sentido na sociedade industrial, porque a oferta de coisas aumenta exponencialmente. Se não assume realmente condição de princípio primário de poder social, atua em paridade com outros que se destacaram mais preteritamente.

Alguém poderia ver nisso algo positivo, na medida em que o critério hierarquizador das sociedade assumiria ares mais objetivos, a partir da detenção de dinheiro. Sucede que esse modelo levado aos limites eliminaria a própria base do avanço técnico e consequentemente material da sociedade. Se os homens de idéias e de ciência virem-se destituídos de qualquer poder social que emane precisamente desta condição, é previsível que seu número reduza-se até o ponto do regresso técnico.

Seria, assim, demasiado audacioso vaticinar o predomínio do dinheiro como fonte primária de poder, a fazer sucumbirem todas as outras. Principalmente porque as organizações de marca clerical, como as religiosas, acadêmicas e as militares sempre se insinuarão a fazer, no mínimo, papel de intermediação.

Mas, o destaque do dinheiro como fator de poder é notável e crescente. De minha parte lamento apenas pelo correspondente recuo na sensibilidade estética e cultural. Não é preciso ter artesãos dedicados para saciar a vontade do possuidor de muito dinheiro. A indústria sacia o colecionador de bens materiais…

A morte de uma estrela. Ou, tentativa de compreender os efeitos da decadência norte-americana.

Este texto foi originalmente escrito em abril de 2010.

Era previsível que o processo histórico acelerado cobrasse aos EUA algum preço. A decadência é real, no sentido de perda de soft-power. A influência é exercida diversamente; não mais organizada e nitidamente, mesmo que por meio da guerra, mas por intermédio do caos, da destruição levada quase como imposição de solidariedade na agonia que se avizinha. As faces mais destacadas do processo são econômicas. É lugar-comum fixar-se no econômico, como nas obviedades em geral. Mas a desordem é para muito além do econômico. Esse é o risco para o mundo em geral e para os sul-americanos particularmente.

Dois processos se distinguem, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas e suas mortes serão diferentes, portanto. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

Ódio golpista e diferenças relativas de classes.

A imprensa conseguiu enfim criar níveis de ódio suficientes para se levar à frente o golpe de Estado fundado na difusa histeria moralizante. Semeou no terreno mais fértil: a classe média.

O interessante é que os sujeitos a serem instalados no poder estatal pelo golpe não são de classe média, nada devem a esse estrato social e nada farão por ela. A classe social onde fermenta o ódio golpista à maior temperatura perderá com o que patrocina.

Cega, não percebe ser instrumento de algo que beneficia a meia dúzia. Todavia, há algo sutil a ser notado. Mesmo que entre a névoa alguns consigam perceber que economicamente nada ganharão com o golpe entreguista, persistem a querê-lo. Por que?

Porque a classe média aceita piorar sua situação econômica desde que os pobres piorem mais. Desde que volte a ter servos mais baratos, que volte a sentir-se segura numa relação esclavagista, que volte a frequentar aeroportos e restaurantes vazios, ela aceitará retroceder também.

O cerne da coisa é a percepção da redução das diferenças relativas. Muita gente não apenas começou a consumir e a frequentar espaços nunca franqueados, como reduziu a atitude mental do servo. Ou seja, passou a perceber-se como gente, como cidadão.

Reduziu-se o número dos que por uma refeição ou roupas velhas empenha gratidão tão cara ao médio classista, que precisa deste conforto. Isso, essa redução das diferenças – não só econômicas, como sociais – o médio classista não perdoa.

Ele entra pra ajudar um golpe entreguista, certamente perderá, mas saíra contente desde que os pobres percam mais e retornem aos seus lugares de serviçais prontos a copiosos agradecimentos por uma refeição.

A excitação permanente das massas.

Sou homem, nada de humano me é estranho.

Públio Terêncio Afro

O grande número é mantido em estado de permanente suspensão e excitação mental, por uma sucessão de fatos escandalizados, dramatizados, pintados em preto sobre fundo branco. Assim mantido por obra mediática, ao contrário de melhorar sua instrução e sua capacidade de ajuizar, torna-se num grupo intelectualmente zumbi.

O típico homem massa vê no mínimo um crime dito bárbaro por dia, na TV e nos jornais baratos que só falam de crimes e de futebol. O alimento da sua histeria é farto e sua contínua digestão nutre o tensionamento constante de suas fibras nervosas. O homem massa vive tenso, escandalizado, histérico.

Brutalmente insincero, diz não entender como as coisas podem passar-se assim ou assado, notadamente quando se cuida de algum crime dos que violam mais que as leis, seja pela violência quase ritual, seja pela relação da vítima com o agressor. Ora, dizer-se incapaz de compreender alguma ação humana é por-se como extra humano ou infra humano, o que é falso.

Tudo de humano é cognoscível para um ser humano. Demanda algum esforço, claro, e saber que potencialmente todos são iguais. Há quem se contenha mais ou menos, que se conheça mais ou menos, eis as diferenças.

A ira, essa energia fortíssima, é objeto de dezenas de milênios de esforços humanos de contenção. Todas as codificações sociais e jurídicas visaram a conter-lhe a explosão. Tarefa exitosa, posto que reduziu muito as oportunidades de explosão, basicamente com a ameaça da exclusão. Mas, a ira em estado puro emerge sem quaisquer considerações prévias, sem ponderações de custos e benefícios. É energia pura.

A forma de obter antídoto ao tétano é clássica. Inoculam-se os cavalos com pequenas e constantes doses e, com pouco, tem-se os anticorpos no sangue do cavalo.

A forma de embrutecer grandes grupos e torna-los incapazes de julgamento e permanentemente imersos numa histeria escandalizada é semelhante. Rações de diárias de informações dramatizadas e desarticuladas; ensinamento diário de que não é possível compreender certas coisas, como se a obras dos homens não fossem humanas.

Dilma e os acordos e escolhas errados.

É inútil pagar a quem recebe e não entrega, bem como celebrar acordos com partes desleais. Há incompatibilidades incontornáveis e nem tudo está disponível para se resolver com dinheiro ou boa vontade e concessões.

A presidente Dilma parece ter-se deixado guiar pela tolice de crer nos acordos. Ordenou ou deixou que se adotassem medidas altamente concentradoras de rendas, a bem de agradar aos mais aquinhoados no Brasil, para que estes recuassem nos seus impiedosos, desmotivados e constantes ataques ao governo.

Eles não recuarão. A única coisa que os faria acalmar-se seria a privatização da Petrobrás, mas não creio que Dilma chegasse ao ponto do crime de lesa-pátria.

Subjacente a muitas parvoíces praticadas está a idéia de que a economia de um país nada mais é que a economia de um lar em escala ampliada. Esta crença, evidentemente muito apreciada – na proporção direta de sua estupidez – leva ao fetiche e histeria da austeridade, assumida como dogma.

Nesse sentido, o governo brasileiro, sem que o país viva qualquer crise relevante, nem cambial, nem fiscal, anunciou aumentos drásticos de impostos sobre a gasolina e o diesel, ao mesmo tempo que aumentou os juros pagos pelos títulos da dívida pública.

Não é preciso ter frequentado os bancos da escola de economia, de engenharia ou de matemática pura por quatro anos para perceber que as medidas visam a aumentar a arrecadação para exatamente pagar mais juros, na outra ponta, a meia dúzia de detentores de títulos.

A piorar, o principal aumento de imposto deu-se sobre a gasolina e o diesel, algo que todos têm que comprar, mesmo que na forma de um pacote de bolachas, porque tudo é transportado por alguma máquina movida a diesel.  Ou seja, o aumento de impostos foi profundamente regressivo, pois atingindo indistintamente a todos, atinge os mais pobres mais intensamente.

Para piorar, a medida foi erroneamente percebida como uma recomposição de preços dos combustíveis derivados do petróleo, como forma de ajudar as contas da Petrobrás que, segundo a imprensa, estariam ruins. Mas não foi isso absolutamente o que ocorreu, porque o aumento dos preços da gasolina e do diesel foi apenas nos impostos.

Além de algo regressivo e destinado a arrecadar para concentrar rendas mediante pagamento de juros a poucos, ainda alimentou o discurso de destruição da Petrobrás.

Os beneficiados com estas formas de retirar do todo para repassar a poucos não terão qualquer gratidão pelo agrado recebido do governo, na medida em que são predadores consumados e se creem merecedores de tudo. Não adianta agradar essa gente e desagradar a quantos escolheram este governo.

Para aumentar a arrecadação por impostos havia várias alternativas menos regressivas e que só desagradariam aos que já estão desagradados e tem raiva atávica do governo que melhorou mais a vida dos mais pobres.

Poderiam ser elevados tributos sobre a importação de espelhinhos, sobre cigarros e bebidas, poderia ser instituído um imposto sobre grandes fortunas, poderiam ser criadas novas faixas de imposto sobre a renda, poderia haver mais rigor nas aduanas. Seria interessante, por exemplo, abrir todas as malas dos passageiros provenientes de Miami…

Isso do parágrafo acima acirraria o ódio de quem já o nutre em doses elevadíssimas. Mas, seria menos ruim que desagradar o grande número e, pior, sem agradar realmente a maioria. O governo precisa conduzir-se com mais inteligência estratégica.

As redes sociais e os comportamentos nem tanto assim.

Um grande fenômeno de nossos tempos são as denominadas redes sociais. No Brasil, começou com Orkut e tempos depois chegamos ao Facebook, Twitter, WhatsApp, pra citar algumas das mais conhecidas… Caso é que serviam, a principio, para reencontrar amigos e ver como estão, coisa que antes se fazia com um reencontro de “X anos” de colégio, faculdade, ou o que seja. Logo se tornou local de discussão, quando se descobria que aquele seu amigão de outrora pensava completamente diferente de você, e logo também se tornou algo mais elaborado, a partir do episódio da “primavera árabe“, algo como uma “ágora” do século 21.

Com a evolução, também começaram a haver distinções entre tais redes, em algumas você é meio que obrigado a convivência com os pares a partir do momento que os aceita (como o Facebook), em outras você escolhe as pessoas de sua convivência (como o Twitter), e em outras ainda, você é obrigado a conviver, sem escolhas (como o WhatsApp). Bom, digo isso porque no WhatsApp uma pessoa qualquer pode te jogar dentro de um grupo, e você fica ali, talvez pensando, sair é um bocado deselegante, então tá, deixa ai.

Pessoalmente eu gosto de todas, e acho todas legais, não somente essas três, mas todas as outras que vocês puderem imaginar, inclusive a melhor que é a LastFM, que contabiliza as músicas que você escuta, mas isso é outra história…

Caso é que com a disseminação do WhatsApp no Brasil, pipocaram grupos de discussão de todas as amizades que eu angariei ao longo da vida, inclusive formaram-se algumas nos próprios “grupos”. E no Brasil aconteceu um fenômeno político interessante de “bipartidismo” em âmbito federal, e isso gerou discussões acaloradas, que se intensificaram a priori por dois motivos: o primeiro, parte da imprensa que claramente é reacionária; e o segundo, as eleições.

Mesmo estando fora do país, pela experiência em tais grupos, dava pra perceber que não era uma boa hora para estar lá. Não pelas discussões em si, mais porque boa parte delas se baseia nas mesmas manchetes da imprensa, e acaba tornando-se enfadonho rebater sempre os mesmos argumentos, e ser invariavelmente taxado de seguir algum dos partidos, por qualquer motivo.

Pois bem, acontece que nas discussões, como eu estou um pouco mais distante do país no momento, procurava sempre ter um pouco de leveza e paciência, que não era notável nos interlocutores, fossem quem fossem… Fato claramente gerado pelo clima de animosidade que tocava a todos que estavam no olho do furacão.

Mas, o mais interessante aconteceu com um argumento “tu quoque” usado mais de uma vez, contra o que quer que fosse que eu defendesse, justamente por estar longe: “-Você não está aqui no país, portanto, não deveria opinar sobre o que não conhece!”; “-Você está longe, por isso defende isso!”; “-Sua realidade é outra!”. Todos enfim dizem basicamente o mesmo, que não estar presente invalida toda minha linha argumentativa. Ora, há argumentos tu quoque elaborados, que podem mesmo chegar a confundir. Esse eu classificaria no máximo, como infantil. E se o argumento era esse, ato continuo, eu deixava de discutir e/ou argumentar qualquer coisa que fosse com a pessoa que o proferiu, porque afinal.. Não valia a pena.

Porém as eleições acabaram, e com elas, eu esperava que acabassem as animosidades, coisa que de fato aconteceu na grande maioria dos grupos, e quando, aqui e acolá, aparece alguma, basta não falar e deixar morrer… Mas um caso interessante aconteceu ontem, eu já não comento sobre política em nenhum grupo, há não ser uma piada ou outra que ache engraçada, porque notei que mesmo sem eleições, o clima continua tenso.

Mas, em um de meus grupos, começaram a falar mal do Brasil, que brasileiro era mal educado, enfim, uma série de preconceitos, baseados ou não em fatos, onde todos tinham um objetivo comum, denegrir o país, ou a imagem do país, claro, isentando-se individualmente ao mesmo tempo, de forma que comentários como “Brasileiro não paga metrô (ou ônibus) no exterior, isso é uma vergonha, má educação” acompanhado de “Eu sempre paguei” eram um lugar comum, cito esse, porque foi a minha gota d’água… Mas estavam todos a exprimir-se sobre tudo, desde “jeitinho brasileiro” à “malandragem”.

Como eu estou fora já há algum tempo, e sei que aqui os comportamentos são iguais ou muitas vezes piores, passei a antagonizar algumas das assertivas… Sobre educação, pode-se perguntar a um Holandês sobre a educação dos ingleses, que vão a Holanda destroçar o país, por causa de algumas leis demasiado “permissivas” na opinião dos primeiros… Sobre andar sem pagar, pode-se perguntar a qualquer italiano o significado da expressão “Fare il portoghese“, que vai ai por entrar sem pagar, desde o metrô, até qualquer outro lugar onde você possa entrar sem pagar, mas que seja “obrigado” a pagar. Sobre a fama das brasileiras serem putas, é um problema e existe, mas não é especialmente nosso, veja-se as Russas por exemplo, ou faça-se uma busca rápida no google com os termos, “inglesas”, “festa”, “Ibiza”.

Em suma, todos os comportamentos descritos como sendo de “brasileiros” os há em todas as nacionalidades, claro, observamos os nossos problemas, por conhece-los mais de perto, e sempre nos incomodará mais, um brasileiro estúpido, que alguém de outra nacionalidade ainda que este seja um pouquinho mais estúpido que o brasileiro.

No entanto, o mais interessante veio a seguir, entre a discussão sobre viralatisse brasileira, e política ali nos entremeios, alguém perguntou o que eu fazia para manter-me. Oras, o que eu faço ou deixo de fazer absolutamente não influi na minha linha argumentativa, obviamente a pessoa buscava um argumento “tu quoque” para usá-lo contra mim mesmo, e isto estava implícito no discurso.

Ante a minha resposta jocosa, veio a insistência e era notável que a intenção era a mesma, do “você não está no país, não deveria falar”, só que nesse caso o caminho era mais ou menos “você tem bolsa do governo, por isso o defende”, ou “você não paga imposto, não devia falar de quem paga”, e por ai vai… O motivo da curiosidade era a ajuda a uma terceira pessoa, e/ou falar das dificuldades encontradas por gente que tentou sair do país, e encontrou demasiados obstáculos. O que claramente denotou-se falso a partir do uso da expressão “filhinho de papai”.

Agora, em nenhum momento eu disse o que fazia para me manter, porque nada do que eu faça para me manter invalida qualquer argumento meu, assim como estar fora do país tampouco invalida que eu fale algo sobre o país. E aqui chegamos ao ponto máximo do post, no grupo, eu não sou o único que mora fora do país, há outras pessoas que vivem (no plural) fora do país. No grupo, efetivamente há pessoas (no plural) que são mantidas pelos pais, seja por motivos quaisquer. Não obstante essas pessoas nunca tiveram argumentos rechaçados por viver fora, ou por qualquer outro motivo. Por uma causa muito simples, eles pensam igual ao restante.

Então a conclusão óbvia, mais uma vez, é que se você pensa igual, se é manada, se é massa, tudo bem, pode-se destilar o preconceito que for, o comportamento que for, ou a bobagem do momento, que você será bem aceito no grupo, o pensar diferente será rechaçado, ainda que com bons argumentos, por qualquer razão que se tenha em mente e esteja a mão, sempre que falte um argumento razoável para que continue ou se evolua em qualquer discussão.

Não é a toa que Rachel Sheherazade seja tão popular, mas ainda bem, que as coisas que ela diz só tenham o respaldo que têm no Estado onde ela nasceu, e aqui eu estou sendo tão preconceituoso ao falar mal do Estado, quanto todos foram ao falar mal do Brasil, mas essa não é a realidade da maioria do país, e aqui eu não divido o país em cores, ou partidos, ela não é maioria, ponto final.

A OTAN empurra a Rússia para o oriente.

Há quem não saiba, quem sabendo não aprenda e quem simplesmente prefira agir irresponsavelmente, sabendo de história ou não. É difícil precisar as inclinações específicas dos líderes da OTAN, dentre estas da tipologia anteriormente afirmada.

A Rússia, em duas ocasiões muito conhecidas, pressionada fechou-se e voltou-se para oriente: quando de Napoleão e quando de Hitler. Não hesitaram em fazer terra arrasada, entregar Moscou em chamas e recuar. Esse recuo mostrou-se fortalecedor, porque eslavizou as ricas estepes.

Independentemente de fetiches financeiros e discursos permeados de terminologia economicista, a Rússia nunca está suficientemente quebrada para ser francamente vulnerável a uma tomada ou a uma integral submissão.

A terceira Roma, a herdeira do império Bizantino, a nação que invoca o estandarte da águia bicéfala, não será reduzida assim simplesmente, principalmente hoje que detém arsenal nuclear. E a OTAN sabe disso!

É um pouco assustadora a irresponsabilidade da manobra que se serviu da Arábia Saudita para forçar uma baixa drástica dos preços do petróleo, com as finalidades de estrangular financeiramente a Rússia, a Venezuela e o Irã. Primeiramente, comprova a qualidade de estado vassalo dos EUA e de Israel que ostenta a Arábia Saudita.

Os sauditas foram comandados a aumentar a produção dos poços antigos por meio da injeção de água salgada altamente pressurizada. Isso é irreversível, porque se o processo estancar o restante do poço fica permanentemente contaminado.

Sempre se soube que o país mais rico em óleo é dos menos aquinhoados com know how do processo de extração e refino do petróleo, pelo que depende totalmente do conhecimento técnico dos estrangeiros. Assim, ficou fácil induzir os sauditas à injeção de água salgada pressurizada nos poços mais antigos para aumentar sua produtividade.

Por outro lado, os EUA reduziram drasticamente sua dependência de hidrocarbonetos importados, em decorrência dos avanços na extração de gás e óleo por meio de fratura hidráulica. Claro que essa mágica cobrará custos imensos em termos ambientais e sanitários, mas isso será problema dos mais pobres, que ficarão na terra arrasada.

Ocorre que esta queda de 40% nos preços, em poucos meses, é absolutamente artificial e não se compreende numa perspectiva de processo lento e contínuo de aumento da produtividade de poços antigos e na abertura de novos. É algo nitidamente especulativo, portanto.

Assim, cuidando-se de movimento estratégico baseado em especulação, as tendências podem inverter-se rapidamente, antes que se atinja o desejado efeito de quebrar a Rússia financeiramente. Aliás, antes disso, podem ocorrer as quebras dos países árabes e a desestabilização integral do médio oriente, algo sempre desejado por Israel.

Convém lembrar que são coisas diferentes um país em que o setor petrolífero é forte e outro em que o setor petrolífero é a única coisa que existe. Uma redução drástica dos preços do óleo quebra um país como o segundo, mas não chega para tanto num dos primeiros.

A Rússia volta-se mais e mais para o oriente, notadamente para a China e para a Índia. E isto, presentemente, envolve alianças estratégicas relativas a vendas maciças de armamentos de alta tecnologia. Além do comércio de alto volume, essas transferências solidificam relações.

Não é de todo improvável que o comércio trilateral entre Rússia, Índia e China abandone a intermediação do dólar norte-americano na liquidação das transações comerciais. É dificílimo prever se e quando isto ocorrerá, mas os indícios são fortíssimos para serem desprezados.

Vistas as coisas por este lado e lembrando que estes três países são grandes credores líquidos dos EUA, percebe-se o quão arriscada é a manobra da finança mundial – que tem a OTAN a soldo – contra a Rússia. Os credores podem, com relativa facilidade, induzir desvalorização ou valorização do dólar abruptamente e com efeitos devastadores, em qualquer sentido que vá o movimento.

 Caso vendam suas promissórias norte americanas maciçamente, o dólar cairá subitamente, causando um empobrecimento drástico num já pobre EUA, com efeitos sociais terríveis e provavelmente com grandes agitações de massas. No sentido inverso, caso entesourem mais, a valorização do dólar tornará o mais deficitário país do mundo ainda mais comprador…

Ou seja, esta investida contra a Rússia é de tal irresponsabilidade que somente pode provir de mentes apostadores no quanto pior melhor, na guerra nuclear localizada e controlada, no extermínio de 1/3 da população mundial e coisas deste jaez.

O mito da igualdade é essencial à manutenção da desigualdade.

Talvez mais preciso fora ter dito, no título, essencial à não percepção da desigualdade, o que é muito confortável para a maioria. Mas, é óbvio que se celebra a igualdade como se sacrificam os filhos ao Legislador dos pobres do deserto ou a Ártemis, para a boa consciência ou para ter bons ventos guerreiros.

Esta igualdade primeva, cantada como axioma fundador dos preconceitos religiosos mediterrâneos e, muito depois, do liberalismo, é a base sólida sobre que se constroem desigualdades cada vez mais profundas. Aqui, refiro-me às econômicas, sociais e de gênero, ademais de outras históricas menos destacadas.

A igualdade cantada hoje é caricatura do que se recebeu de Atenas. A original era clara, não terna, não natural, histórica. Era igualdade política de 10% da população, nada mais. Assim, é algo que se compreenda: a igualdade dos aristocratas que matavam e saqueavam, mas precisavam ter as coisas em bons termos entre si.

Naturalizada pelo cristianismo e pelas revoluções burguesas, torna-se em monstro negador da história, a bem de perpetuar um estado muito histórico. A igualdade natural, essa nunca se percebeu bem, nem foi festejada, por mais evidente que seja ela entre preto, branco, amarelo, quando se mergulha a rasas profundidades suficientes para descer abaixo da primeira camada melaninizada.

A naturalização da igualdade é partir de um dado para inserir nele axiologias disfarçadas. O valor é o mérito – o substituto no vulgo para a graça – que permite a certos indivíduos triunfarem sobre outros. Sendo todos iguais, o triunfante vence por seus esforços, que seriam possíveis também para os perdedores. Daí que da igualdade, explica-se a desigualdade.

Profunda desonestidade intelectual, esta tão sólida no pensamento dominante. Extrair justificativas para resultantes de processos históricos em algo natural e, pior, inicialmente igual naturalmente, é misturar água e vinho e perder ambos. Na história, não há igualdade.

A democracia burguesa avançou tanto no seu fetiche que passou a impor opressão desnecessária a elementos que não a punham em risco. A tal igualdade natural evoluiu da explicação da perda pela preguiça para um motivo de esquecimento da existência de vulgo e excelência. Esta diferença, advirta-se, não é nem poderia ser razão para que uns e outros sejam considerados merecedores de perecimento. Ela é.

Nisso há igualdade e há democracia; e elas são vigorosas, estão nos pobres e nos ricos, nos poderosos sem dinheiro e naqueles com dinheiro, nos subjugados, enfim, em todos os grupos que se separem por critérios econômicos e sociais. A maioria – independente de mais ou menos dinheiro e poder – é profundamente vulgar e ignora duas coisas: dignidade e delicadeza.

Embora raras, essas qualidades existem. Porém o vulgo, seja banqueiro ou mendigo, toma a raridade pela inexistência e não as vê. Ou, entrevendo-as, faz de tudo para bani-las como indesejáveis que são, acusadoras de sua vulgaridade, causadoras de inquietações, como inquietantes são todos os sinais de que algo melhor era possível.

Os chineses não esbracejam à toa.

Nós, filhos da cultura mediterrânea, e os anglo-saxões, filhos bastardos desta com um amante moralista, acreditamos na persuasão. Este é o núcleo do nosso agir, não a justiça ou a equidade, como se diz e se parece acreditar. Nada disso. O centro da nossa forma de estar é o tentar convencer numa disputa.

 No início, parecia ser a diversão de 400 a viverem das minas de prata e do trabalho de estrangeiros sem cidadania. Uma bela diversão, convenhamos, esta de conversar e acreditar plenamente na autonomia do discurso, acreditar-se, enfim, criadores. Política como ocupação da classe dominante segura de si gerou o endeusamento do discurso.

Claro, havia, como há, os períodos de trabalho, ou seja, de guerra. Intervalos de esforços que afastavam a aristocracia de sua diversão conversadora.  Dessas coisas, uma foi-nos legada: a terrível herança da lógica da persuasão, do discurso, do convencimento, do logos. O legado da aristocracia guerreira perdeu-se…

Essa gente que gesticula inutilmente não compreende o que é a China e seus braços quietos, tão quietos quanto as entonações de voz e suas falas mansas e monótonas. Realmente, a gesticulação, assessório da fala, é-nos muito própria e cara, a nós que acreditamos no discurso enfático, com todas as nuances e variações estilísticas que seduzem gerações e dão ensejos a quilômetros de papéis escritos em honra e dissecação desta coisa maravilhosa: a retórica.

Pois bem, a retórica, se há na China, como culto divino com altares em todas as esquinas, não é como a conhecemos por aqui. Talvez isto não seja um luxo, como a princípio pode parecer, por lembrar divertimento de ociosos. Talvez seja precisamente o contrário, ou seja, um signo de pobreza, de sociedades que se reuniram em torno a um cereal caro como o trigo. Ora, reunir-se em torno ao caro é pobreza a dar na vista.

Os que se uniram a comer arroz fizeram-no por duas razões: necessidade e inteligência. Ora, fazer as coisas por necessidade, para aplacar as necessidades, racionalmente, superando a humanidade, ou seja, o desejo de matar e morrer, é algo de extrema riqueza. E mais rico ainda é fazê-lo sem por o discurso persuasivo como o lugar preponderante. Não há tempo e espaço para as duas coisas simultâneas.

Mantivemos essa nossa lógica de tribunal, que nada tem a ver com justiça, pois convencer não é questão de justiça, e deixamos de fazer as guerras para que a aristocracia pudesse morrer e ter assim o que prantear em altares domésticos. Mandamos morrer os lacaios, os cidadãos de terceira classe, os mercenários…

Veremos os chineses no protagonismo econômico total sem compreender o que acontece, sem os compreender absolutamente e, pior, sem aceitarmos o fato. E continuaremos a tentar convencê-los por meio de discursos tão inúteis quanto os gestos que os acompanham.

Compro, logo existo.

A proposição cartesiana, a estabelecer relação causal entre pensar e existir, sempre me pareceu alguma ironia, porque não me permito achar Descartes tolo. Acresce que ela é perfeitamente inversível, pois existo, logo penso, faz também sentido, à partida e sob perspectiva lógica formal.

Descartes era muito antropocêntrico, como seu século, e assim toda sua ontologia. Soa meio infantil, mas é inegavelmente uma proposição direta e servível. Ele não cogitava do fim da história, isto é certo…

Fato é que experimento mais uma das boas visitas à terra dos que se lançaram ao mar, há quinhentos anos, e se entregaram ao decadentismo mais lento e constante já visto. Não uso desta oportunidade para falar das minhas impressões, que não mudaram substancialmente.

Não venho com este texto para comentar alguma beleza, alguma sutileza percebida, alguma coisa interessante ou original. Isto aqui tem a ver com deselegância, brutalidade, novo-riquismo. Tem a ver, portanto, com a classe média alta e alta brasileiras. Elas são piores fora do Brasil que nele, o que inicialmente soa contraditório.

Fora, estão mais à vontade e não conseguem evitar o destaque, por contraste ao que circunda. Não é uma questão de ser percebido por características étnicas ou pelos trajos. Essas coisas estão já bastante baralhadas e, relativamente aos trajos, a classe dominante viajante brasileira é vanguarda, ou seja, aquilo que está a um átomo de ser ridículo.

A questão é: os brasileiros, no exterior, compram tudo quanto vêm pela frente. Precisamente os estratos sociais que nutrem mais ódio contra o governo atual, que lhes melhorou sensivelmente as condições econômicas, são os que mais viajam e mais compram. É superlativo o consumismo desta gente e totalmente diversificado.

É de tal maneira brutal, que constrange até alguns que vendem e ganham a vida com isto, posto que a ausência de gosto e necessidade de afirmar a posse de dinheiro sobrepõe-se a tudo. Há setores em que o comprar e vender envolve um jogo de regras conhecidas, em que se fingem curiosidades e se afirmam refinamentos, além de se discutirem preços. Conversam vendedor e comprador em certos ramos do comércio, a valorizarem a transação.

Com a invasão brasileira isto não acontece. A compra é um ato isolado, a ser repetido à exaustão. Tanto faz que sejam souvenires comuns, daqueles que se vendem nas áreas mais turísticas, quanto sejam roupas, relógios caros e ruins com marcas de roupas, cosméticos, bebidas, eletrônicos, computadores, qualquer coisa, enfim.

A preparação que antecede a ida de um grupo alto médio classista brasileiro ao aeroporto, depois de suas jornadas aquisitivas, é coisa a ser observada ao menos uma vez, que mais de uma tende a intoxicar ou deprimir. Em frente ao hotel está o ônibus que conduzira os humanos ao aeroporto; em frente ao veículo, um guia atarefado, a pedir ordem, a lembrar que o avião não espera…

Descem as malas e isto é o que importa; é a imagem que gostaria, se o talento fosse suficiente, de pintar com palavras: a descida e acumulo das malas no saguão do hotel e, depois, na fila de cheque do aeroporto.

Há velhotas a conduzirem malas de 40 Kg, algo prodigioso que me faz pensar no descompasso entre os limites mentais e os físicos. O consumo, a posse do que foi avidamente consumido, estende muito os limites físicos e permite que estas malas tão grandes quanto um pigmeu sejam empurradas, roladas e afinal cheguem aos seus destinos.

Claro que ainda há destes viajantes mais ligados ao século XIX e que necessitam de serviçais para carregar suas bagagens dignas de mudanças definitivas. Terrível é não gratificarem os serviçais, coitados deles que pensavam ter saído da escravidão até depararem hordas de brasileiros neo ricos ainda a supurarem as feridas narcísicas.

Alguém que perca seu tempo a ler este retrato do feio poderá obstar que as personagens aqui comentadas são mais universais que se supõe. Ao que direi previamente que há elementos a provar a originalidade.

A franquia de bagagem por peça, nos voos saídos do Brasil e com retorno a ele, se comprados os bilhetes no Brasil, é a maior do mundo: duas peças de até 32 Kg! Esta massa, se se compuser de roupas e outras coisas de higiene pessoal, é suficiente para uma pessoa comum viajar seis meses ou mais. Não se entregue ninguém à tolice de achar 64 Kg de roupas pouquinha coisa.

A acomodação destas dúzias de volumes pesadíssimos no veículo que conduzira o homo qui emit leva mais tempo que o habitual, quando se trata de conduzir outras variações do que Lineu chamou generosamente homo sapiens. A chegada à aerogare, contudo, é o momento triunfal!

Uma simpática funcionária da companhia aérea perguntava-me se as coisas estão assim tão caras no Brasil. Compreendi perfeitamente. Respondi-lhe que sim, estão mais caras que lá, mas nada que justifique um furor aquisitivo tão desenfreado e tão difuso. E nada que justifique o pagamento por excesso de bagagem, algo frequente a despeito da enorme franquia para o homo qui emit.

Cobrar do alto médio classista brasileiro a taxa por ter excedido o imenso limite de peso para as bagagens é um martírio para o coitado do funcionário da companhia aérea. Acontece que muito candidamente o pequeno-burguês brasileiro não tem em mente que seus limites são superiores aos de todos os demais cidadãos do mundo. Eles creem-se aquinhoados muito naturalmente por algo que não poderia ser diversamente.

Aqui outro ponto interessantíssimo: a classe dominante – ou, melhor dizendo, os servos intermédios da classe verdadeiramente dominante –  não percebe as suas diferenças relativamente a grupos de outros países, que se encontrem mais ou menos nas mesmas condições sociais e econômicas nas suas origens.

Acha-se igual ou melhor, o que revela incapacidade brutal de ver-se, de ver os outros, de perceber diferenças e semelhanças. A gente brasileira que viaja para fora é, insofismavelmente, pertencente aos estratos mais altos da sociedade. Não há bilhetes de menos de 1000 euros, exceto se o destino for a Argentina. Isto não é pouco dinheiro e há que se lembrar dos outros milhares que serão gastos com bugingangas.

Pois esta gente é totalmente autorreferente, ignorante, consumista e desprovida de gosto. E acha-se mal posicionada na escala social brasileira; e acha-se merecedora de mais dinheiro; e lamenta não poder ter mais escravos domésticos; e diz gostar de ir à Europa…. Para quê, afinal?

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