Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 5 of 17)

Prends la soupe, petit garçon!

Agosto é um mês terrível no entre-douro-e-minho. O calor é infernal e os dias são demasiado longos até para quem gosta deles longos. O sol é inclemente e fico a pensar na quantidade de problemas cutâneos que terão no futuro os locais e os europeus do norte, todos a sonharem com uma tez acobreada, que obtém.

Este inferno de calor e sol tem suas compensações; bem poucas, é verdade. A cidade, Braga, no caso específico, fica esvaziada de seus moradores das classes médias e altas; pois estão todos a cumprirem suas obrigações de veraneio nas praias vizinhas. Torna-se mais fácil caminhar e tomar um fino aqui e acolá, exceto ir a centros comerciais, é claro.

Não faz muito sentido está necessidade premente de ir à Póvoa, a Esposende, à Vila do Conde e a onde mais próximo seja. Isso seria perfeitamente compreensível se se estivesse na Suécia, mas onde há quatro meses de calor e oito de relativo frio, é um pouco como arremedar hábitos suecos. Não é disso que se trata, todavia.

Em agosto, todo o êxito obtido pelos emigrantes em França, Suíça e Luxemburgo mostra-se. Quem saiu de seu país obrigado precisa mostrar aos filhos dos privilegiados de antanho que prosperou. E assim se faz! Não são poucos os automóveis de último tipo com registros de França e não é pouco o francês que se escuta por toda parte.

Dizer que na cidade ouve-se tanto francês quanto português seria sucumbir à sedução do exagero. Mas, dizer que no Sá Carneiro ouvia-se tanto uma quanto outra língua em iguais proporções seria apenas cumprir dever de honestidade.

Nos centros comerciais, esses infernos menos quentes, a coisa pode tornar-se cômica. Estava num deles – o maior de quantos na cidade – e, sentado a comer algo, prestava atenção em um grupo sentado ao lado. Havia duas gerações e muitos colaterais.

A senhora, mãe do menino a quem alimentava, dizia-lhe, com ar impaciente:

– Prends la soupe, petit garçon.

E nada resultava, porque o menino fazia birra e divertia-se com primos e amigos e um previsível telemóvel. Ao que a senhora insistia:

– Prends la soupe, petit garçon!

E nada do menino tomar a sopa…

– Prends la soupe, garçon!

Eis que a senhora, muito velha pra ser de língua mãe gaulesa e muito nova para se ter esquecido da língua mãe, torna a ser aquela de há quarenta anos, despe-se da bem assimilada língua de Molière, e explode em autenticidade:

– Toma logo esta sopa, menino, senão parto-te os cornos!

O menino, que certamente fora alfabetizado em francês, porque nascido em França, percebeu logo que a brincadeira terminara. Curioso, porque certamente entendia melhor as exortações na sua língua nativa, mas não ignorava a gravidade do retorno súbito da sua mãe à língua nativa dela.

Exportadores ou contrabandistas e pequenos burgueses ávidos por espelhinhos?

Eis que o dólar norte-americano aproxima-se de custar quatro reais e isso parece ser uma mudança de patamar na taxa de câmbio, mais que apenas esquizofrenia e chantagem de mercado. E isso é bom, pois a moeda brasileira estava muito valorizada. Claro que esta desvalorização a par com aumento dos juros dos títulos públicos é a ante-sala do suicídio, mas esta é outra conversa…

O dólar barato encarece coisas brasileiras como soja, café, assúcar, carnes, minérios, aço processado, alumínio processado e outros produtos mais de pouca elaboração e pouco dependentes de insumos importados. A perda de competitividade na exportação dessas commodities é dramática para o balanço de pagamentos e para a manutenção de reservas em moeda conversível.

Claro que não é algo tão elástico a ponto de ser desejável ter a moeda nacional extremamente desvalorizada, porque resultaria inflação, na medida em que importa-se muita coisa banal e insumos importantes. Como está, atualmente, parece um ponto de razoável equilíbrio.

Acontece que isso desagrada quem sempre está desagradado: a classe média que nunca viajou tanto ao exterior em busca, na enorme maioria das vezes, de comprar bugigangas baratas, seja para as acumular em casa, seja para as revender aos deslumbrados seus semelhantes.

Nos espaços de convívio forçado com a pior parte da classe média brasileira – o trabalho, basicamente – essa desvalorização do real é assunto candente. Todos a lamentam, como uma verdadeira traição ou o último prego no caixão. Ficou mais caro ir a Miami! Como se vive assim?

O engraçado é que o pequeno-burguês a lamentar a alta do dólar tem de, logicamente, lamentar o aumento do custo da atividade de contrabando ou de compra leviana e enlouquecida de tudo quanto vê pela frente. Ora, fazer contrabando é ilícito; fazer compras como a satisfação de um vício é superficialidade em forma pura.

Lembraria o pequeno-burguês contrabandista-consumista que os dólares usados para estes deleites têm de entrar no país de alguma forma? Que esta forma primária é a exportação de produtos nacionais? Que esta exportação depende muito dos preços relativos?

O grande capital não é o único poder.

Com relação ao golpe de Estado que se processa no Brasil, a ser consumado por meios que lhe conferem aparências de formalidade, muitos começam a dizer que não ocorrerá porque não interessa ao grande capital nacional.

Esta negação parte da premissa – muito sedutora e difundida – de que o grande capital é a única coisa a basear o poder. Chamam-no base do poder real, esteio deste a agir por intermédio de vários delegados nas estruturas do Estado e na imprensa. Isso é, em grande parte, verdadeiro. Não de todo, nem em todas as épocas, todavia.

O dinheiro não é sempre e em todas as épocas o maior poder social, mesmo sendo a grande força de cooptação de estruturas burocráticas e da imprensa. Corporações e grupos de interesse que vivem à margem do Estado apresentam dinâmicas próprias e nem sempre é possível guiar-lhes os passos estritamente. Sempre há alguma imprevisibilidade.

É óbvio que para o grande capital nacional e para partes do capital estrangeiro com interesses no Brasil não interessa o golpe de Estado, pelo caos subsequente que trará. De regra – exceto para a grandíssima finança – a desorganização e a insegurança que dela resulta não são coisas boas. Reduz os ganhos, evidentemente.

Acontece, por outro lado, que o processo de semeadura do fascismo na pequena burguesia já dá bons frutos. Bons são os semeadores e boa a terra que cultivaram. Chegou-se a um ponto de não retorno e a imprensa não pode simplesmente passar a desdizer todo o discurso de ódio e estupidez que fez nos últimos quatorze anos.

Nem a imprensa por seus donos pode fazer isso agora – porque o ódio pequeno burguês voltar-se-ia contra eles – nem os seus empregados editorialistas e jornalistas querem desdizer-se, porque são como os vendedores de cocaína viciados nela. Eles acreditam nas tolices e brutalidades que dizem, enfim.

Por isso, mesmo que o grande capital não tenha sob uma perspectiva lógica interesse no golpe, será muito difícil, a estas alturas do processo, travá-lo. Por outro lado, se perceber que a coisa está consumada, o grande capital não verá grandes problemas em pagar os custos da readequação e partirá para compensá-los com mais espoliação financeira.

O fato terrível é que tiraram do baú um grande poder e poder descontrolado: a fúria moralizante dos que tudo ignoram e pensam a partir de notícias de televisão. Esse poder é dificílimo de arrefecer antes de entrar em reação em cadeia. Historicamente, seu controle só é possível com ditaduras…

O tolo prolixo.

Esse tipo social é interessantíssimo se o pudermos observar um pouco à distância. Interessante ainda que maçante e perigoso. Ele, geralmente, afeta mansidão, mas manso e pacífico não pode ser, tanto pelas idéias professadas, quanto pela forma de pensar não pensando. Sua aparente mansidão é efeito de preguiça, ou de covardia, ou de complexo de inferioridade – sua face mais sincera e portanto escondida.

É profundamente violento, pois são violentos os que mesmo prolixos não aceitam qualquer dialética e, ademais, operam a partir de um acervo prévio e limitado de idéias. Não gostam de ver correr sangue, mas pouco se lhes dá se este sangue correr fora do seu alcance visual. A hipocrisia evidentemente não poderia ser ingrediente alheio ao tipo.

O tipo não se pretende intelectual, o que, à partida, pode levar a crer não ser pretensioso; mas é profundamente pretensioso, contudo. Está certo de ser um ser atualizado – esta é sua marca e aspiração – e portador de informações gerais a comporem o acervo da conversação em sociedade.

Pretensioso também por julgar-se merecedor de feed back para todas as reproduções que faz do que recebeu da TV e de revistas supostamente informativas. Ora, não lhe passa pela cabeça que essas coisas não foram feitas para serem objetadas ou contrariadas, tamanha sua vacuidade. Não é capaz de um grama de originalidade – de nada que saia de sua própria cabeça – nem de reproduzir algo de nível.

Mas o tolo prolixo quer entreter uma conversação e aparenta querer ouvir opiniões contrárias ou diferentes. Quer opiniões até quando se trata de fatos ou absolutas desimportâncias que não dão ensejo a opiniões. Na verdade, o que quer é a discussão do detalhe sobre alguma idéia, do que absolutamente não infirma a tolice que reproduziu, de algum aspecto lateral. Assim, segue a conversa sem qualquer dialeticidade, mas repleta de lateralidades inócuas. E mantém-se o monólito da tolice inicialmente colocada para discussão.

O mais terrível, contudo, é não aceitar o silêncio, esta grande homenagem que se faz a si mesmo e ao tolo prolixo…

Reza Aslan é um autor no mínimo sagaz.

O que segue não é resenha do livro Zelote: A vida e a época de Jesus de Nazaré, escrito por Reza Aslan, pela razão suficiente de não o ter lido. A sagacidade de Aslan pode ser percebida sem ler o livro, todavia. Ele teve muita sorte também, deve-se dizer sem mais.

O autor concedeu entrevista a uma fulana da TV norte-americana Fox. Ela fez questão de provar a estupidez do norte-americano médio e de quem o alimenta com informações: principiou a entrevista a perguntar porque um maometano escrevia sobre Jesus…

O escritor fica visivelmente desconcertado com a pergunta – estúpida até por padrões norte-americanos – mas deve ter ficado agradecido ao depois. A indagação dá-lhe ocasião de alinhar os múltiplos graus de PhD que tem, as fluências em línguas, as universidades onde leciona, os livros que escreveu e por aí vai.

Foi ótimo para ele, até porque livros sobre o Jesus histórico há muitos e não é fácil despertar interesse por algum novo. Há basicamente quatro linhas de abordagem neste assunto: uns dizem que Jesus foi só judeu, outros que foi o proposital fundador do cristianismo – e aí há quem proponha ter sido só homem ou só Deus – outros que foi um revolucionário social e uns poucos que dizem o que disse Aslan.

Ele propõe que Jesus foi um revolucionário político nacionalista judeu. Um bandoleiro muito empenhado em contrariar a ocupação romana por meio duma espécie de guerrilha. A mim, particularmente, não me parece a linha mas plausível, mas é defensável, como, aliás, quase tudo que diga respeito a esta extraordinária personagem com tão poucas fontes históricas.

O Jesus mais interessante que já li foi o de J. J. Benítez, que teve a inteligência de fazer crer à maioria que a parte importante dos seus Cavalos de Tróia era a ficção científica. Ele fez uma pesquisa histórica exaustiva e conseguiu escapar à prisão das análises e resenhas acadêmicas, usando essa capa de ficção científica.

Mas, Aslan conseguiu algo raro; muito raro, na verdade. Ele pautou reações judaicas; ele pôs as condicionantes destas reações; chegou perto da anedota. Beira o cômico uma resenha do livro por um fulano também multi PhD, na Jewish Review of Books.

O doutor resenhista ficou com raiva da proposta de Aslan de um Jesus herói da causa nacional judaica, evidentemente. Jesus não é um herói judaico, embora possa ser estudado. Geralmente, é um não assunto, uma desimportância.

Para atacar Aslan e apontar o dedo a supostas imprecisões e ilações, defendeu o Novo Testamento! É, no mínimo, engraçado ler a defesa do Novo Testamento por um acadêmico judeu com raiva de um livro… Isso Aslan conseguiu e não foi pouco.

Terra arrasada.

A imprensa tornou-se o maior poder dos países ocidentais, mais poderosa do que a legislatura, o executivo e o judiciário…precipitação e superficialidade são a doença psíquica do século XX e mais do que em qualquer outro sítio é na imprensa que tal doença se reflete.

Alexander Soljenítsin

 

Incapaz de vencer eleições presidenciais nos últimos doze anos, os entreguistas brasileiros resolveram paralisar o país, disseminar o medo, o ódio, a intolerância, a percepção de crise, tudo isso por meio da imprensa, que serve aos desígnios entreguistas com fidelidade e dedicação.

Os resultados são tão previsíveis quanto terríveis. Há o efeito de autorrealização das profecias e a economia, por exemplo, acaba por retrair-se mais por conta das más expectativas. Mais que cairia normalmente este ano e que é muito pouco, diga-se.

Porém, o pior desta estratégia de disseminar-se que tudo está ruim e em níveis sem precedentes é que a classe média acredita nisso. Já de si é bastante tola e ignorante; com essa ajuda da imprensa, para piorar o ruim, torna-se insuportável. E essa gente é afirmativa, ou seja, reproduz as idiotices que lê ou escuta e sai a pedir confirmações para elas.

Nada no Brasil está pior que há 15 anos. Nem economia, nem distribuição de rendas, nem saúde, nem educação, nem segurança pública, absolutamente nada. A percepção disso seria facílima para qualquer pessoa que olhasse à sua volta e pensasse com sua própria cabeça. Um pouco de memória é necessário também, evidentemente.

O extraordinário foi ter-se instalado o clima de terror, a percepção de caos, a noção de que as coisas estão a piorar. Isso é a grande obra da imprensa e os frutos serão uma ingovernabilidade que não ajudará nem aos grupos de oposição. O sujeito médio – aparentemente possuidor de um cérebro pensante e de memória, além da tão aclamada liberdade – nega a realidade, os números, as séries históricas, nega sua própria percepção e repete o que lhe disse a imprensa e o que lhe desdiz a realidade.

Chegou-se a ponto da histeria macartista contra a corrução – mesmo que ninguém saiba onde ela está e como funciona – lançar âncora no judicial, que a pretexto de a combater promove a quebra de grandes empresas, desempregando milhares de pessoas. As massas enlouquecidas não param a pensar que não é preciso destruir empresas e por na rua trabalhadores para se combater qualquer coisa.

Humano: a diferença específica não é natural.

O fato de termos consciência de nós mesmos e de termos subjugado as demais espécies na terra, levou-nos à busca tão frenética quanto justificável da diferença específica a permitir a definição do humano. Neste processo, todavia, elementos místicos adentraram e a confusão instalou-se.

Não havia porque, racionalmente, confundir diferença específica com natureza. Isso é derivar para o axiomático e isto ocorreu com quase todos quantos tiveram bons êxitos no isolamento da diferença específica. O sujeito que encontrava – ou cria tê-la encontrado – apressava-se a dizer natureza humana. Muito fetichista, evidentemente; o fetiche do dedo de Deus encontrado sorrateiramente…

Houve um debate interessante, na Alemanha, entre Michel Foucault e Noam Chomsky, dois intelectuais valorosos e rigorosos. Não sei a data do encontro, mas a julgar pelos trajes, deve ter ocorrido em 1969 ou 1970, por aí.

Chomsky, mansamente, constrói um discurso que culmina na postulação da potencialidade criadora da linguagem como a definidora da natureza humana. Ele poderia ter-se ficado pela diferença específica e muito provavelmente ainda estaria entre o axioma e a petição de princípios, mas foi além: natureza humana!

A linguagem, qualquer um lembra-se, não é nossa exclusividade. Daí ser necessário acrescentar-lhe a potencialidade criadora. Porém, esta potencialidade é a própria linguagem, meio combinatório, a par com código e instrumento de comunicações. Vários mamíferos permitem observá-lo, na medida em que se deixaram domesticar ou perceberam as vantagens de viver perto dos humanos – alguma vantagem deve haver.

Estranho também é definir por potência, pois aproxima-se de nada. Um carro não se define por seu motor ser capaz de, a certas regimes de rotações, desenvolver cem cavalos vapor. Ele pode, sim, definir-se por mover-se e chegar, em dadas condições, a tantos ou quantos quilómetros por hora de velocidade. Ou seja, ele define-se por ato.

E aí percebe-se que o humano, no que tem de natural, é profundamente inespecífico. Por natural ele precisa alimentar-se, excretar, fornicar, dormir. A história, essa a marca humana, nada tem de natural nem é potência, sim uma sucessão de atos, construídos uns sobre outros e muitas vezes drasticamente dissociados.

 A localização da diferença específica na potencialidade linguística e sua caracterização como elemento natural é de inspiração curiosamente religiosa. Curiosa, porque a criação divina não fica maculada pela não naturalidade do humano. São coisas que não interferem reciprocamente. Mas as prisões da alma são fortíssimas…

O medo e o grau zero da racionalidade.

Ocorreu algo bárbaro, mas não propriamente raro nestas terras: uma revolta na penitenciária local, desencadeada pelas péssimas condições de encarceramento e por brigas de facções internas. A confusão acelerou-se a partir do momento em que decapitaram um preso e passaram a jogar com a cabeça separada do corpo.

As pessoas acham – bárbaras que são – que as penitenciárias devem ser cópias do inferno. Ignoram que o Estado tem poder de privar de liberdade, que é penalidade, mas não tem direito de privar de dignidade. A humilhação e a imposição de condições degradantes ainda não estão previstas legalmente como sanções penais, embora muitos queiram isso. Assim, é legítimo que os presos queiram condições adequadas.

Claro que a forma de reclamar é também bárbara, mas não seriam ouvidos de outra maneira e nem são mesmo com linguagem tão eloquente. O fato é que desencadeou-se onda de boatos e surto generalizado no vulgo de medo.

Um dos boatos, repercutido por gente que não aceitaria ser chamada de ignorante, dizia que os presos amotinados tinham fugido do presídio e rumavam para o centro da cidade, precisamente para o terminal de integração de transportes urbanos.

É algo muito estúpido até pelos largos padrões de tolerância que se tem de adotar recentemente. O vulgo não pensa antes de repetir algo. Ele age a projetar-se sobre o mundo, age diante do espelho. Ora, é difícil imaginar uma caravana de presos fugidos marchando para o centro da cidade para fazer um protesto! É o grau zero da racionalidade, porque presos fogem para se esconderem.

Mas o vulgo, principalmente o médio-classista que tem feito protesto gourmet contra governo que redistribui riquezas, acha que ele e um preso amotinado tem as mesmas preocupações e anseios. O sujeito estreitou-se a ponto de conceber o mundo à sua total semelhança e fica incapaz de pensar.

Esse estado de ânimo revela campo fértil para a semeadoura do medo, para o alastramento da cultura da repressão, de que a violência decorre da falta de violência. As pessoas repetem acriticamente que tem havido aumento significativo da violência, o que não é verdade. Se não houve recuo, não houve aumento. Basta um pouco de memória para aqueles que passam dos quarenta anos de idade para constata-lo.

Ganham com isso apenas os agentes do aparato de segurança, o que sempre ganham com o medo e a violência. A sociedade nada ganha, porque se pancada resolvesse violência, o Brasil era o país mais pacífico do mundo, tanto já se deu pancada, tiros, torturou-se, tudo à margem da lei e à discrição de selvagens investidos em poderes policiais.

Na esteira dessa cultura do medo histérico, pre-condição para um estado policialesco e de exceção, vem o habitual discurso por redução de maioridade penal e por pena de morte. Duas coisas que já existem, todavia! No Brasil, a maioridade penal do pobres pretos ou mulatos inicia-se no nascimento. Pena de morte é praticada todos os dias pela polícia, sem julgamentos…

A ferida de narciso ainda supura.

Em 1654, acabou-se o Brasil holandês. As batalhas vencidas por tropas de índios, pretos, mestiços, portugueses inserem-se num panorama maior, o da Restauração portuguesa. As grandes batalhas – Monte das Tabocas, Guararapes – na realidade, deram-se anos antes da saída total dos holandeses.

Era muito claro para os líderes envolvidos que se retomava o Brasil holandês para reintegrá-lo ao reino. Não havia aspiração a fazer daqueles pedaços de Pernambuco e Paraíba qualquer coisa autônoma. Por outro lado, era claríssimo que essa recém constituída nobreza de espada da terra queria reconhecimento.

No Obelisco da Praça dos Restauradores, há menção às batalhas em Pernambuco, o que evidencia que a expulsão dos holandeses claramente era percebida num movimento mais amplo, como foi a restauração de Portugal com a subida do duque de Bragança, que seria João IV.

Acontece de ser difícil agradar aos que obtiveram glória militar e se alçam à fidalguia pela espada. Por um lado, o reino tinha de reorganizar as finanças e, por outro, relutava em elevar à nobreza mais alta aquela gente bronca que já se enraizava na terra, principalmente no negócio do assúcar.

Essa fidalguia da terra daria trabalho aos governos, pois conservaria por dois séculos a memória do combate e sua altivez seria rastreada historicamente. A segunda metade do século XIX viu a perda total do seu impulso original. Ficariam a arrogância, o espírito de predação e a hipocrisia, traços fortes dos decadentes.

Isso, essa origem da fidalguia local e seu processo de decadência, marcou um espaço geográfico: o Recife. Era uma cidade aberta – reluto em usar cosmopolita – muito por conta de seu porto privilegiado. Havia muitos estrangeiros e, como havia comércio internacional, circulava dinheiro.

A gente local achava-se importante, mas sabia que o mundo ia um pouco além de suas próximas fronteiras. Até antes do golpe militar de 1964, o Recife era, de certa forma, um local florescente e aberto, mesmo que a decadência econômica já cobrasse alto preço.

As décadas de 1980 e 1990, todavia, são de uma caipirice profunda. Misturavam o orgulho dos ignorantes e pobres com a crença no novo mundo liberal: uma tragédia. As pessoas continuavam a julgar-se importantes, mas não sabiam mais que havia o resto do mundo – o resto do mundo é mais que Miami, devo advertir – e não tinham mais conhecimentos históricos.

Essa gente, nessa época, era caricatura de antepassados remotos cuja história não conheciam. Não sabiam de onde viera aquela sua arrogância, aquele seu apreço por símbolos da terra, algo sempre notado pelos de fora. Tornou-se lugar comum celebrar-se a peculiaridade e o orgulho bairrista dos pernambucanos, como se fosse de se imitar essa permanente e vazia referência a si mesmo, sem saber porque.

Não é algo feio ou reprovável em si, mas celebrações autoreferentes como as que se faziam do hino de Pernambuco, nomeadamente nos anos 90, são algo a beirar o patético, dadas as circunstâncias. Súbito, num acesso de modismo, tocava-se e cantava-se o hino a propósito de qualquer coisa ou nada. Ostentava-se a bandeira do estado em roupas, nos carros.

O surto simbolista bairrista, creio que poucos perceberam, era tudo menos alguma manifestação cosmopolita. E o recifense prototípico acredita-se cosmopolita enquanto celebra-se sem celebrar um passado que conheça.

Recordo-me que havia, no Recife dos anos 80, consulados de EUA, França, Alemanha, Japão, Portugal e outros mais. E nunca percebia o sentido que aquilo fazia numa cidade tão provinciana, decadente, pobre e fechada. Porque não fazia sentido algum. Claro que tinha feito, anteriormente.

O contraste é a técnica mor da caricatura e o destaque por excelência do grotesco. Depois de perdido o pólo petroquímico para a Bahia e de ter a Sudene passado a ser emprestadora de dinheiro para criação de bois de papel, a decadência econômica foi brutal.

Mas as classes dominantes permaneciam com a mesma mentalidade e cada vez mais sem história. As demais não poderiam tentar imitar outro modelo senão o que havia. Essa fauna povoava aquele ambiente…

De certa forma, parece voltar a haver vida, de maneira menos arrogante e com mais presença estrangeira. Lastimavelmente, num momento em que a cidade ruma para a inviabilidade absoluta, por impossibilidade de locomoção. Triste retomada…

As pequenas transgressões e a ilusão da originalidade.

O vulgo é muito inumano racionalmente e, portanto, humano. Banalidade e falta de energia não provieram de outra coisa senão da racionalização do quase nada, feita com instrumentos precários. A racionalização da banalidade leva-o a buscar ilusões de originalidade.

A pequena transgressão dá ilusão de originalidade, assim como a moda, que sempre vai e volta, mas é percebida como original em cada tempo de retorno.

O caso é que há um parque na cidade. Pequeno, é verdade, mas relativamente agradável, arborizado, com algum relvado, equipamentos para exercícios físicos e uma pista de aproximadamente um quilômetro, para caminhadas e corridas.

A pista tem uma largura média de dois e meio metros e tem setas pintadas a indicarem o sentido, que é anti-horário. Não é sem razão, nem é alguma violência ou supressão de direitos determinar-se um sentido para os caminhantes e corredores. É uma questão de facilitar a vida de todos.

O sentido único maximiza a eficiência de uma pista relativamente estreita, porque todos podem antecipar-se nos movimentos, já que vêm quem vai à frente. Além do sentido único, há uma faixa de mais ou menos 50 centímetros, dedicada exclusivamente à corrida.

Pois são frequentes as pessoas que caminham e correm no sentido inverso e fora das faixas adequadas, o que gera encontrões, paradas, saídas da pista para desviar dos que vêm em sentido contrário e outros aborrecimentos que simplesmente podiam não haver.

É notável que os caminhantes e corredores do sentido inverso fazem-no voluntariamente e trazem um discreto sorriso de canto de lábios. As setas pintadas no pavimento são grandes demais para se ignorarem e a maioria dos frequentadores é alfabetizada e, assim, capaz de ler a palavra corrida, escrita no chão.

É o prazer da pequena transgressão, aquela impune – até porque seria mais vulgar punir isso que o fazer – que dá ao sujeito a sensação de originalidade.

O vulgo adora a pequena transgressão na mesma proporção em que é incapaz de grandes atos, sejam estes crimes ou criações de outros tipos. Não tem energia vital para o grande ato, não tem inteligência para perceber que a originalidade do banal é ilusória.

Ele precisa desta ilusão, como precisa da moda, o retorno contínuo que não parece uma roda a girar. A moda se auto disfarça, faz crer na novidade, banaliza a idéia de originalidade. E foram todos levados a crer na necessidade de originalidade e, portanto, a ignorar o que isto seja.

A pequena transgressão não faz mais que gerar embaraços e manter apagada a força humana.

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