Para liquidar um grupo político que se definia basicamente como nacionalista e afastá-lo do governo, deu-se um golpe de Estado judicial, no Brasil. A origem mais remota do movimento golpista é externa, assim como a tecnologia usada, que foi inovadora na nossa história.
A fermentação de grupos burocráticos estatais compostos de fariseus a bradarem méritos, superioridade intelectual e insuscetibilidade de controle social é a técnica da gulenização, que encontra terreno propício nas classes médias altas que infestam as corporações estatais de topo.
Eles fizeram o papel que o parlamento não poderia fazer: demonizaram a política a partir de um moralismo rasteiro e assassino da legalidade. A imprensa ofereceu a ajuda necessária e atuou num conúbio explícito com os gulenistas locais. Esse trabalho serviu e serve aos desígnios de entregar as riquezas nacionais aos grandes interesses externos, cessar as políticas de equalização de distribuição de rendimentos e interditar tentativas de retomada do poder pelos grupos nacionalistas.
O golpe foi resultado de um longo e insistente trabalho de intoxicação das massas pela imprensa mainstream, balizada por um maniqueísmo profundo e indisfarçado. Próximo ao desfecho, o consórcio golpista apostou na estratégia de terra arrasada, que, obviamente, cobrará seu preço.
Um país que ia relativamente bem economicamente – em tempos de crise mundial – foi levado ao caos econômico, tanto por cavalos de Tróia – como o ministro Levy – quanto por um pessimismo mediático diário, parcial e infundado e pela destruição judicial de grandes empresas brasileiras. O parlamento fez sua parte ao instalar a ingovernabilidade, ao trancar as ações governamentais, ao lançar uma chantagem por dia.
As classes médias – já por demais ignorantes e lastimosas da evolução dos mais pobres – foram estimuladas ao exacerbamento das suas piores inclinações originais. O que poderia parecer remoto e absurdo houve afinal: a imprensa levou parte de um grupo geralmente apenas tolo e autorreferente a adentrar o fascismo explícito. Hoje, o ódio cego caracteriza-lhe tanto quanto a tolice e o medo dos pobres.
Sob domínio da narrativa moralizante mediática, as camadas médias vivem o grau zero do pensamento autônomo. Não se sentem privilegiados, porque se acham merecedores. Mas, contraditoriamente, sentem-se quase ricos, porque identificam-se por cima, postura necessária para que temam e repilam fortemente os de baixo. O médio classista assimilou a luta de classes ao contrário, essa é sua tolice fundamental.
O consórcio golpista usou estratégia de terra arrasada: parou o país, fez tudo para uma crise econômica mediana ser uma grande crise, estimulou violações judiciais a garantias fundamentais, cantou a exceção jurídica como algo admirável, estimulou a demonização e criminalização da política, nomeadamente de um partido.
Isso teve consequências: a institucionalidade implodiu. Tratado como uma republiqueta bananeira, o Brasil respondeu à altura, ou seja, como uma republiqueta bananeira. Todo o esforço de propaganda da imprensa para destruir exclusivamente o PT foi parcialmente exitoso, pois não foi apenas este partido o atingido. A histeria moralizante, como estratégia, é algo tão estúpido quanto o quimioterápico, pois a seletividade não passa de aparência, já que tudo e todos morrem.
A democracia representativa está deslegitimizada. Nas eleições municipais no Rio de Janeiro, por exemplo, as abstenções, os votos nulos e brancos somaram 38% do total de aptos a votar, algo sem precedentes e mais que o atingido por algum candidato, em termos absolutos. Ora, em um sistema de voto obrigatório, isso não reflete a raiva contra o partido a, b ou c, isso espelha a raiva contra todos.
Todavia, exceto se rumarmos para um regime abertamente corporativo – um neo fascismo – esse resultado é dramático para quase todos os agentes intermediários que habitam o território da política. Eles não conseguirão movimentar-se em meio à incerteza total gerada pelos plenos poderes de chantagem da imprensa e da inquisição.
Por outro lado, o grupo inquisitorial não quer exercer o poder senão da forma mais cômoda possível, ou seja, sem assumir riscos próprios da atividade política e aqui não falo apenas na indisposição a submeter-se a eleições. É algo mais profundo, algo que se assemelha ao capricho das crianças mimadas, imunes a críticas, imunes ao contraditório pouco mais que formal. Para exercer o mando desde posição tão distante, esse grupo precisaria de uma blindagem mediática ainda maior que a conferida a certo grupo puro sangue de São Paulo.
A imprensa não empenhará tamanha solidariedade a este pessoal, pois é mais arriscado que tratar com os tradicionais políticos, mais habilidosos e mais confiáveis. Além disso, entre os interlocutores privilegiados dos grandes interesses capitalistas externos há muitos que cultivam sincero desprezo por burocratas estatais profissionais, quaisquer que sejam eles, em qualquer nível que estejam. E essas figuras serão ouvidas.
O que se anuncia, em resultado das estratégias usadas para depor um governo legítimo e impedir que ele retorne, é o estado de terra arrasada, o caos, a implosão da institucionalidade, a guerra de todos contra todos pelo butim, a lógica do saque a Constantinopla. Isso em um país com mais de duzentos milhões de habitantes não é repetição de nada, não é farsa, não é tragédia.
São quarenta anos de regresso, numa perspectiva mais ou menos conservadora a partir de quantos anos mais serão necessários para recompormos alguma estabilidade. Isso não é algo que se perceba por balizas ortodoxas, sejam históricas ou ideológicas. É do âmbito do matar para roubar, atitude sempre problemática na economia do roubo, porque um dia faltam aqueles a serem roubados.