Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 17 of 17)

Fernando Pessoa e a liberdade.

Gosto muito dos livros em edições de bolso. Encontrei o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa, neste formato, da editora Companhia de Bolso, na livraria Saraiva em Recife. Desde então, ando lendo-o. Hoje, deparei-me com este belíssimo texto, cuja lucidez não se encontra muito comumente:

“A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua. Vê-se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar. As que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que adoram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.

Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser. É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.

Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.

Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído.”

Olívia Gomes

Depois daquele beijo.

Do G1: Meninas se beijam em bloco no Rio e acabam na delegacia.

Engraçado notar como atitudes de um Sr. como este (de 50 anos, moralista padrão, que fez a denuncia), tem sentido contrário ao que desejaria ele, ou seja, acontecimentos como esse, vão, cada vez mais afirmar o direito defendido pelos outros foliões. Porque certamente chegará o dia em que, o Sr. em questão um pouco mais velho, vai acudir a polícia com o mesmo propósito, e a polícia dará de ombros, oras, por pura insignificância.

Pior de tudo é a situação cômica em que se mete a polícia a troco de nada, várias guarnições para prender 2 meninas??? Um policial atropelado com pé quebrado por causa de um beijo??? Rio… Pra não chorar.

E veja a imfâmia da declaração do Sr. 50, “Ele disse que viu duas moças se beijando e pensou que uma era menor de idade. Ele achou que nesse caso seria errado uma menor de idade beijando outra maior de idade…”, quer dizer que esse Sr. passa os carnavais a procurar e a fazer cumprir a lei de corrupção de menores?! Se fosse um beijo entre outro cinquentão e uma garotinha ele também denunciaria, ou identificando-se com seu semelhante, seria complacente? Seria ele só mais uma pessoa com olhar eivado de teias de aranha de qualquer natureza (religiosa?)…

O delegado Gustavo Valentini, usou de seus tantos anos de estudo, na universidade e posteriormente pro concurso, para concluir: “verificou que não houve nenhuma corrupção de menores”.

De todas a melhor declaração, e amis sensata, é mesmo a da garota mais velha (18 anos,  a mais nova tinha 17): “O meu beijo não tinha nada de agressivo, é um beijo como qualquer outro beijo de carnaval, uma coisa que acontece. Não precisava ter causado a confusão que causou”.

Impressionante a polícia se meter num caso assim, e os policiais ainda recebem diploma de curso supeiror ao acabar o curso de formação… A julgar pela qualidade de nosso sistema educacional, não vou falar nada, ainda bem que estão começando a exigir diploma de nível superior nos concursos pra soldado, assim nossa super preparada polícia passará a ter dois diplomas. Como diz a música, “polícia para quem precisa de, polícia…”.

PS: Ainda bem que o delegado, justamente, liberou a turma do beijo, caso os tivesse detido, ainda teria pago mico, pois a artigo de corrupção de menores no Código Penal teve a idade alterada no ano passado,  foi de 18, para 14 anos.

Severiano Miranda.

Vocações ainda existem.

Meu amigo Rafael foi nomeado Defensor Público do Estado do Ceará. É por isso que escrevo, porque estou satisfeito com a satisfação dele e porque vejo um caso raro de vocação.

O bacharelado em direito,  no Brasil, tornou-se opção maioritária de quantos têm vocação para nada, dos que têm medo de matemática, dos intelectualmente preguiçosos, dos formalistas aplicados e dos oportunistas em geral. Essa massa busca ganhar a vida com uma atividade meio que no fundo desconhece.

O bacharelado em medicina segue o mesmo rumo, com duas diferenças. Ainda é um pouco mais difícil entrar nesse curso. E os efeitos de sua realização apenas visando ao dinheiro são muito piores.

Não me acuse alguém de estar a defender o desinteresse material, que não é disso que se trata. Nem se trata de defender o ataque quixotesco aos leões ou aos moinhos de vento. É o caso, apenas, de celebrar essa raridade que é alguém interessar-se pelos resultados que podem advir do trabalho nessa área profissional, aviltada pela ignorância, cupidez e falta de nobreza.

A vocação é um pouco como a rebeldia inútil e necessária que permeia a obra de Camus. Ela enobrece e o constante esforço que fazem para desmerecê-la, como algo infantil e ridículo, está a provar sua nobreza. Só as condutas de distinção merecem tanto esforço contrário das massas.

Arrogância e heresia. Por que o Nazareno precisa ser contra Iemanjá?

Houve um grande encontro de adeptos do cristianismo reformado, em Campina Grande. Não sei se todas as denominações estavam representadas, mas acho difícil, pois são muitas e continuamente surgem novas variantes. É um modelo permanentemente cismático e pulverizado.

Nessas grandes ocasiões sempre se reproduzem variações de alguma idéia central. E, os monoteísmos de raiz mosaica derivam suas doutrinas da exclusividade de seu deus. Se o deus do deserto palestino contentava-se em opor-se aos outros deuses, o de agora está bem certo de não haver outros e requer dos seus prosélitos que afirmem essa exclusividade à exaustão.

Leio, em um qualquer jornal, que um qualquer pastor volta suas armas e sua pobre retórica contra a religiosidade de matriz africana, que se cultiva no Brasil. E ele diz que essas crenças africanas devem ser repudiadas porque se baseiam em personagens inexistentes. Ou seja, o pastor reivindica a verdade na historicidade do profeta nazareno que transformaram em um deus e rejeita o resto por historicamente falso.

Já não basta ao pastor a revelação, ele quer a história. E quer esmagar o que reputa serem mitos. Ele não disse, mas imagino que suas grandes provas da historicidade do nazareno sejam as de sempre. O livro de Flávio Josefo, evidentemente falsificado pelos cristãos primitivos, que interpolaram trechos sem pertinência com a história da guerra dos judeus. As cartas de Plínio, o Jovem, de Tácito e de Suetônio, que referem a existência da seita cristã, mas nada realmente sobre a figura do nazareno.

Forte nessas habituais referências – que talvez nem conheça realmente – o pastor diz que o culto de uma Iemanjá é desprezível, porque ela nunca existiu. Ele levou o problema simples de uma religião querer destruir outra para o campo da verdade fática de seus profetas, o louco! Esse é um risco da atomização das denominações reformadas, que não comportam uniformizações doutrinárias.

Ora, no campo da historicidade dos profetas e dos santos, todos são cegos sem guias. Nessa escuridão, ninguém se acha e todos se perdem. É melhor batalharem em outros sítios, invocar conversas diretas e particulares com os deuses, promessas, novas promessas, visitas do anjo, sinais, textos poéticos, textos desesperados, textos mal escritos. Tudo, enfim, que não meta a historicidade de alguém entre os argumentos.

Os favoritos do deus único não precisam da história. Quando acendem as fogueiras, não é para fazer história. Quando queimam as bibliotecas, não é para fazer história. De heresia, já basta acreditarem que sabem o que pode agradar a um deus, portanto não precisam aumentar o catálogo das impiedades invocando verdades humanas.

Cria corvos e eles te comerão os olhos.

Esse é um provérbio ibérico – português e espanhol – e até deu nome a um filme de Carlos Saura. Se o Departamento de Estado Norte-Americano atentasse às coisas das diversas culturas, esse provérbio, por exemplo, talvez errasse menos.

A diplomacia estadounidense especializou-se em fomentar os problemas que ela própria teria de enfrentar, mais adiante. Se é burrice ou cálculo, não sei, mas é verdade.

Depuseram Mossadegh, no Irão, para lá pôr o Xá Pahlavi, usurpador dócil aos interesses petrolíferos estrangeiros. Resultou na revolução islâmica, fortemente contrária aos interesses norte-americanos na Pérsia.

Financiaram o Taleban, uma quadrilha conhecida, para dar trabalho aos russos no Afeganistão. Resultou, sim, na saída dos russos do Afeganistão. E, também, nos atuais problemas, já que a banda Taleban voltou-se contra os norte-americanos.

Criaram Sadan Hussein, para dar trabalho aos iranianos. Antes, os britânicos já tinham criado esse artificialismo que é o Iraque. Resultou no que se tem visto por lá, desde há vinte anos.

Algum dia eles estudarão história, ou assim está mesmo bem, porque atuam calculadamente a favor do caos, do saque e da venda de armamentos?

"Da minha língua vê-se o mar". Vergílio Ferreira.

Vergílio Ferreira sobre a língua portuguesa:

“Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.”.

Belíssimo!


As classes médias e a discriminação de tudo quanto não for médio.

É preciso dizê-lo: a luta de classes existe. Essa assertiva não implica que ela deva existir, ou que ela possa deixar de existir. Tampouco implica que ela seja o único móvel das atuações de grupos sociais, nem que seja o ponto de articulação único de todo pensamento político. Ela existe independentemente de quanta axiologia se queira ver antes e depois dela.

Ela não se manifesta somente no desejo de manutenção ou aumento dos níveis de apropriação material.  Também desempenha o papel de matriz de comportamentos, privados e públicos, e do estabelecimento de um acervo argumentativo e interpretativo, até como elemento de identificação. As classes definem-se umas em relação com as outras, assim como as linhas de fronteiras pressupõem os países fronteiriços.

Seguindo nessa precária analogia – como, de resto, todas são – tomemos o caso de algum país que tenha fronteiras apenas com um outro. Este definir-se-á mais facilmente, na medida em que tem um só ponto de referência. Da mesma forma acontece com os extremos de alguma escala. Identificam-se por referência ao imediatamente próximo e como estão nas extremidades, têm apenas um ponto de referência.

O miolo, o centro, de alguma escala, este identifica-se por relação a dois pontos de referência, o que não é pequeno acréscimo de dificuldade no estabelecimento da identidade. Dizer que A é o não-B, embora não clarifique o conteúdo de A, é fórmula muito precisa de definí-lo com relação a B.

Todavia, dizer que B é o não-A e não-C, continua por padecer da falta de clareza quanto ao conteúdo de B, ao tempo em que aumenta em muito a imprecisão relativa, pois estamos com dois parâmetros de identificação por não pertencimento. Isso acontece com as classes médias de alguma sociedade. Elas precisam não ser as alta e baixa, enquanto estas últimas precisam apenas não ser a média.

Qualquer abordagem que assuma a definição de uma classe apenas a partir do critério de rendimentos econômicos será irremediavelmente defeituosa. Evidentemente, o critério econômico tem um grande peso, mas não é o único. O ser-se socialmente médio está muito além do possuir um acervo médio de bens e dinheiros.

O médio traz em si a vontade de deixar de sê-lo. Não pelo tornar-se baixo ou alto – a primeira indesejável e a segunda improvável – mas pelo tornar tudo médio. Aqui, parece que Aristóteles funciona ao contrário e o ato carrega a potência. O médio, sendo em ato, quer que tudo seja ele, quer dizer, é potencialmente nivelador por si. Age como se fora o divisor comum, quando na verdade o único divisor é o um, por razão óbvia, ou seja, porque não divide.

Não há divisor social comum. Aceitá-lo e procurar o que mais próximo exista é melhor que propagandear a falsificação da inexistência dos conflitos e da possibilidade de sua redução a um falso divisor comum. A busca, essa sim pode ser o que mais se aproxima do próprio resultado, na medida em que é empreendimento que pode congregar todos. A crença na existência prévia do resultado, essa é a empulhação que, implicitamente, supõe a inutilidade de buscar-se.

Desacreditando-se na necessidade de buscar o divisor possível, vive-se para conservar e propagandear. Acontece que para conservar é preciso usar muito veneno – porque a tendência é a corrupção – e para propagandear é preciso ter muito pouco respeito pelos outros, porque qualquer proselitismo é deselegante e impudico. Sendo a essência das classes médias o impulso pela conservação e sendo inviável buscar os fins sem assumir os meios, conclui-se que faz largo uso de veneno e de propaganda.

Verá ameaças onde elas não existem, o que é próprio de quem seria capaz de levar a cabo a mesma ação que teme. Aqui cabe uma consideração quanto às personalidades, mais ou menos extensível aos grupos. O patife tem de tão repugnante quanto a própria patifaria o fato de sua atitude mental basear-se na suposição de que todos são patifes. Quer dizer, intimamente o patife age forte na crença de que faz o que todos fazem. Sua existência é uma acusação.

A classe média acredita-se alvo constante dos intuitos destrutivos das outras, incapaz de perceber que os demais talvez estejam preocupados com outras coisas. Mas ela precisa acreditar-se o centro de tudo e disso deriva que seus padrões de atuação são basicamente religiosos. O termo deve ser entendido aqui como postura que se autoproclama inspirada por verdade certa e indiscutível e cuja imposição aos outros não é uma questão de liberdade, mas de obrigação.

Ela discrimina por obrigação. Como é hermética e impermeável, seus parâmetros de discriminação são invariáveis. Dá-se um quase jansenismo social e não há espaços para a graça. Se não há, objetivamente, fins outros que a conservação, verifica-se que tudo são meios e todos eles são lícitos porque a causa inicial é praticamente divina. Ela é que acende as fogueiras! Ora, o espetáculo do fogo é bonito e divertido, mas quase sempre foge ao controle. E deixa-se o trabalho de limpar o rescaldo para os outros, pois as fogueiras terminam por consumir os próprios foguistas.

Nelas, para ficar na história recente, vicejaram os fascismos. Não poderiam ter sido cultivados em outra terra, que não nasceriam. No tempo recente, esses foram os ápices da afirmação média e resultaram obviamente em ampla destruição, mobilização de vastos recursos materiais e humanos para detê-los e no insucesso, claro. Extravagante é sua constante força e vontade de ressurgimento, provando que o exemplo não ensina, ao contrário do lugar-comum dominante.

O exemplo só ensina a quem quer aprender. Em outros seres, ele não é exemplo, apenas repetição acrítica.

Exclusão é método que gera reação em cadeia. São Paulo é uma inviabilidade coletiva.

Exclusão, aqui, está em sentido mais amplo que o meramente econônimo. Quer dizer um modelo que, tão entranhado, vive-se como se nada mais houvesse alternativamente. E conduz ao suicídio coletivo, antecedido por níveis de desagregação social crescentes.

O fulano médio que se encontre em um engarrafamento de 150 Km, em São Paulo, por exemplo, sonha com um helicóptero. Inserido em um mar de absurdidade, de tempo perdido, de energia despendida, de potência que não se realiza, de destruição da paciência, de destruição da saúde mental e física, sonha com um helicóptero.

Sonha e não no terá, nunca. O fulano é incapaz de sair de quanto a propaganda inseriu-lhe na mente, de perceber que as maravilhas da mobilidade social são menos reais do que lhe fazem crer. Eventualmente, lembrará que a frota de helicópteros de São Paulo cresceu vertiginosamente. Não lembrará, é certo, que o crescimento foi vertiginoso, mas muito menos que o das pessoas e dos carros.

Não lembrará que a maravilhosa São Paulo, autoproclamada cosmopolita e oferecedora dos melhores serviços, dispõe de uma rede de metro cuja extensão é de um terço da que tem a cidade do México, outro bom paradigma de caos urbano. Não lembrará que a verdadeira riqueza é locomover-se de carro se isso for um desejo. Ou seja, riqueza é poder ir caminhando, se assim o quiser o fulano, ou de bicicleta, ou de metro, ou de ônibus, ou ficar em casa!

Não lembrará que os habitantes dos bairros pobres e das favelas – talvez o fulano médio nem se lembre que isso existe – estão insatisfeitos com suas vidas. E que, deseducados há gerações, reagirão como sabem, ou seja, selvaticamente. E essa reação pasmará o fulano, que acreditava na passividade daquela gente sem nome, que é pobre e desassistida porque quer, enfim. O fulano acredita nisso, sinceramente. Por isso mesmo, coerente consigo próprio, acredita que pode ter o helicóptero.

Entrou tão fundo na sua alma a propaganda de que ele pode ser o que quiser, desde que siga os manuais de prosperidade, que ele destroi-se em culpa. E, bem instalado na lógica da exclusão hierarquizada, quer a destruição de quem está abaixo dele e ousa reclamar, quando o certo era ler o manual e resignar-se.

Forte na sua colecção de idéias feitas, o fulano rejeitará qualquer coisa que vise a melhorar a vida em comum. Como um viciado, busca a solução em mais veneno e quer que todos tomem os mesmos venenos. O fulano não perceberá que menos exclusão, que a real prestação de educação pública, que a real prestação de assistência médica gratuita, que a real prestação de serviços de transportes públicos não são, aqui, uma questão de partido político ou coloração ideológica. São uma questão de inteligência ou burrice.

A ignorância afirmativa. Ortega y Gasset profetizando.

O que é característico deste momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito à vulgaridade e impõe-no onde quer que seja. Como se diz na América do Norte: ser diferente é indecente. A massa arrasa tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e selecto. Quem não for como toda a a gente, quem não pensar como toda a gente, corre o risco de ser eliminado.

Esse trecho, retirei-o da Rebelião das Massas, de José Ortega y Gasset, a mente mais clara do século XX. O momento de que ele fala é o final dos anos vinte do século passado, mas tem se tornado todos os momentos. Uma advertência sempre necessária para evitarem-se mal entendidos é que massa  não é um conceito econômico – como o próprio esclarece no livro – ou seja, não é sinônimo de pobres.

Essa força uniformizante pelos padrões mais baixos, intelectuais e de comportamento, é a mais intensa de quantas agem na sociedade. A uniformização acrítica está para as massas como a muralha estava para um burgo europeu medieval. Ela está para as massas como a claudicante noção de merecimento está para as classes médias brasileiras. Ou seja, é um elemento de conservação.

E Ortega foi muito agudo na observação do que é a diferença específica. Ela não se encontra na vulgaridade, que sempre houve em altas proporções. Encontra-se na sua afirmação como regra, na sua proclamação como um direito, na sua elevação a padrão cuja infração acarreta eliminação. A superficialidade do técnico detentor de um cabedal de conhecimentos e que se aventura a opinar em tudo não é o novo. O sapateiro que pretendeu imiscuir-se na fazedura da escultura toda é exemplo antigo.

Mais novo é ser isso a regra e estar à vontade a superficialidade para impor-se de rosto descoberto, declarando-se o normal, o que todos acham, o padrão fora de que nada pode haver. Todos têm idéias de tudo e não desconfiam minimamente que essas idéias podem ser uma tremenda coleção de bobagens, irrelevências. Ao contrário, a vulgaridade comporta-se com uma segurança enorme, está muito à vontade, certa de sua predominância social, mas incapaz de compreender que predomínio e exclusividade são coisas diferentes.

Encontramo-nos, pois, com a mesma diferença que existe eternamente entre o estúpido e o perspicaz. Este surpreende-se a si mesmo sempre a dois dedos de ser estúpido; por isso faz um esforço para escapar à estupidez iminente, e a inteligência consiste nesse esforço. O estúpido, pelo contrário, não suspeita de si mesmo: julga-se discretíssimo, e dai a invejável tranquilidade com que o néscio se alicerça e instala na sua própria necedade.

Não desconfiar de si próprio, instalar-se dentro de si, com o acervo de lugares-comuns possuídos, enfim, ser-se hermético. Eis uma inclinação pessoal que dá inércia ao comportamento social da afirmação da vulgaridade do todos  pensam assim. Elas se retroalimentam.

Ainda lembro de um episódio acontecido comigo numa conversa com um colega de trabalho, há vários anos. Pelas tantas, meu interlocutor saiu-se com essa: Olha, Andrei, só tu pensas assim. E abriu um sorriso irônico, triunfante e malicioso, como de quem põe o outro em xeque.

Impressionante era o fulano usar a variante do todo mundo pensa assim – pela excludente, eu era o infrator, porque era o único a não pensar como todo o mundo – como argumento. Isso é uma assertiva, mas não é um argumento, falando-se propriamente. Quer dizer, a própria situação em que o fulano está imerso tornou-se argumento de autoridade! E argumento triunfante, devastador, o último e mais forte, que já não admite réplica. Mas, insisto, isso não é um argumento, é no máximo uma proposição a ser verificada. Na ocasião, eu calei-me, e hoje faria o mesmo.

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