Resultado de uma ação humanitária da OTAN na Bósnia.
Adianto que, para mim, o termo guerra humanitária é uma contradição em termos. Todavia, a julgar pela frequência com que essa motivação tem sido invocada para agressões, destruição e morticínio, estou em posição minoritária.
A promoção dos direitos humanos – ou fundamentais, em palavras mais precisas – impositivamente, sem considerações mais amplas sobre sua compreensão, tem levado países a justificarem guerras. E tem levado intelectuais a justificarem algumas formas de imperialismo cultural como a promoção de valores que seriam universais e desejáveis por todos.
Para que se chegue nesta noção de direitos fundamentais universais, dois requisitos são necessários. Primeiro, a aceitação de um padrão moral básico que se assemelha a uma verdadeira religiosidade panteísta. Segundo, que o conteúdo dos direitos fundamentais seja reduzido ao mínimo possível, porque ao mínimo de conteúdo pode corresponder o máximo de universalidade.
Trata-se de uma concepção liberal individualista muito própria de um liberalismo nascido nos finais do século XVIII. Essa forma de pensar os direitos fundamentais os reduz às liberdades negativas, o que implica uma esfera individual livre de pressões externas, quer venham do Estado, quer de outros indivíduos.
A crítica a essa visão teórica é relativamente fácil de fazer-se a partir da historicidade dos direitos. Ora, os catálogos de direitos fundamentais seguem uma marcha de ampliações, que já deixaram o paradigma do individualismo e das liberdades negativas para trás há muito. Com efeito, os direitos fundamentais coletivos e de liberdades positivas encontram-se consagrados em várias declarações e cartas de direitos fundamentais, mais e menos recentes.
De fato, como diz Bobbio, o postulado do jusnaturalismo e do racionalismo ético não tem fundamentação teórica. Tem existência positiva e postula efetividade, mas, no fundo, os direitos fundamentais são construções históricas, o que significa que dependem de conquistas e de consensos que não são mais que contingências.
Com relação à guerra por motivos humanitários, ou seja, àquela que se pretende justificada para a defesa de direitos fundamentais – na sua formatação mais restritiva de liberdades negativas – consiste em imensa contradição, mesmo que seja analisada a partir dos seus próprios postulados justificadores.
O exemplo recente da guerra na Bósnia-Herzegovina, na segunda metade da década de 1990, é muito eloquente. A guerra fez-se para estancar violações a direitos humanos. Para esse desiderato, violaram-se outros tantos direitos humanos, do mesmo nível daqueles que se queriam declaradamente proteger.
Violou-se o direito a vida e à integridade física em geral, de forma massiva. Violou-se o direito à propriedade – tão caro aos liberais individualistas – por meio pura e simplesmente da destruição dessa propriedade. E violaram-se vários outros direitos fundamentais de segunda e posteriores gerações, que os violadores, todavia, não se inclinam a reconhecer.
Violou-se o direito a um meio ambiente equilibrado e o direito à saúde, porque as forças da OTAN bombardearam os terrenos com artefactos de urânio empobrecido e de fósforo e com bombas de fragmentação – todos vedados em convenções da ONU. Os efeitos desses crimes de guerra serão sentidos no longo prazo, com a contaminação de terrenos e de cursos d´água.
Violaram-se os direitos ao patrimônio cultural, pois a destruição física atingiu indistintamente objetivos aparentemente militares e prédios de valor histórico. Também porque populações foram arbitrariamente deslocadas e isoladas, pondo em risco a continuidade de costumes e do uso das línguas.
Esses crimes foram cometidos a bem de levar uma liberdade cuja extensão é claramente reduzida. Trata-se de uma liberdade – caso exista em algum sentido – de viver na destruição, de perder raízes culturais, de perder parentes e outros próximos, de viver sob o terror e a tutela da OTAN e dos empréstimos de bancos alemães.
Há uma encruzilhada teórica que, para quem não sofreu os efeitos concretos da destruição, chega a ser engraçada. A guerra fez-se a bem de garantir as liberdades negativas, noção que implica a existência de deveres de não intrusão na esfera individual. Ora, as pessoas que tomaram bombas na cabeça poderiam invocar sua liberdade negativa contra os lançadores de bombas?
É terrível perceber a fragilidade, ou mesmo a falsidade, das motivações invocadas para alguma ação, utilizando o próprio suporte teórico dessas mesmas motivações. Resulta que se está diante, ou de uma tremenda dose de má-fé com impostura, ou de uma imensa dose de ignorância, ou de tudo reunido em alguma proporção.
A impostura pode ser revelada em vários casos a partir de um estudo cuidadoso dos fatores materiais subjacentes. Assim, no caso da invasão do Iraque, por exemplo, trata-se de pilhar a terceira maior reserva comprovada de petróleo do mundo e de sugar os recursos de vários Estados para grandes corporações sob contratos de reconstrução ou de fornecimento de mercenários.
A deficiência teórica, todavia, pode ser mais nociva e projetar seus efeitos mais demoradamente. Claro que se pode objetar que a tese serve à impostura, ou seja, ao disfarce de um saque. Pode, é verdade, e ususalmente desempenha esse papel. Acontece, porém, que as teses, as criações mentais sistêmicas, tendem a assumir uma realidade própria e vão a tornar-se em crenças, ou algumas formas de idolatria e fundamentalismo.
Assim, há quem pratique o imperialismo cultural sem ter de forma muito clara outro intuito além desse mesmo imperialismo. Quer dizer, passa-se a acreditar na missão redentora, independentemente de junto a ela haver ou não o roubo e a impostura. É o espírito de cruzada, enfim, onde misturam-se fanatismo disfarçado em teoria e instinto de rapina.