Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Desimportâncias (Page 6 of 13)

Polêmica linguística e má-fé. Economista ecológico vai além de Ruy Castro.

O Ministério da Educação recomendou um livro chamado Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, para os ensinos fundamental e médio. A partir de então, uma chuva de ataques ao Ministério iniciou-se. Estrategicamente, trata-se de atacar o governo da Presidente Dilma. Os autores do ataque, além de inspiração política oposicionista, movem-se por uma extrema arrogância.

Movem-se, também, por ignorância e má-fé, assim misturadas, a pior conjunção de móveis que pode estar por trás de posturas humanas. Ignorância porque significativa parte dos atacantes reserva-se uma avaliação acima da realidade e, má-fé porque sabem ou têm condições de saber, que as acusações não têm fundamentos.

Dizem que o livro estimula falar incorretamente, em resumo. Não é isso que o livro faz, ele distingue uma obviedade acaciana: fala-se de uma maneira e escreve-se de outra.  Aponta uma realidade indiscutível – presente do dia-a-dia de todos os arrogantes insatisfeitos – que se encontra em todas as línguas no mundo. Não se fala como escreve-se, o que nunca representou ameaça alguma à norma culta.

O tal livro faz algo que é detestável para alguns pretensos intelectuais brasileiros, ele desvela a realidade e não a nega. Ele não propõe, em qualquer escassa linha, a supressão da norma culta na escrita, apenas aceita que as comunicações informais, faladas, podem dar-se sem seguirem estritamente as regras gramaticais. Inclusive, o livro alinha exemplos de falas informais e propõe suas transcrições para a forma gramaticalmente correta.

Esta óbvio que o livro não propõe que se fale errado. Não é demais apontar novamente que ele aceita a realidade, sem propor o juízo de valor dicotômico bom e mau, tomando a norma culta como parâmetro, o que não passa de uma profunda dominação. Todavia, o livro tornou-se táubua de tiro ao álvaro, de tanto levar frechada

Passei a semana lendo tolices maiores e menores sobre o assunto. Todas tinham em comum um mal disfarçado oportunismo político, porque a defesa da língua era, no fundo, o que menos importava para essas vestais defensoras da última flôr do Lácio. O ápice da arrogância parece ter sido atingido por Ruy Castro, em artigo publicado na Folha de São Paulo. Ele põe-se no lugar de grande escritor, ao fazer um apanhado deles que reproduziram falas coloquiais em suas obras ficcionais. A psicologia deve explicar essa mania de citações, que revela muito do desejo do citador de ser um dos citáveis.

Ler a continuação da bobagem na folha de província Diário de Pernambuco – das melhores que há – no domingo pela manhã, desafiou minha paciência. Um texto de um sujeito que se auto qualifica economista ecológico serve-lhe para o despudor de alinhar onde morou e por onde já viajou, essa forma já clássica de sublinhar a origem de classe, como muleta para apresentar exemplos de cultivo pela fala correta. Claro que o autor não perde a oportunidade de afirmar a excelência da educação que teve e sua poliglótica formação!

Não acredito que nem mesmo a economia ecológica seja feita, nos colóquios de economistas ecológicos – ou desses com os ignorantes – em falas fielmente corretas, todas elas perfeitas em flexões verbais, todas as concordâncias em rigor com a gramática, sem corrupções ou plebeísmos, sem um mísero você, essa corrução tão antiga como arraigada de vossa mercê.

O texto de hoje, que não é uma fala falada, evidentemente, está cheio de erros gramaticais, embora sejam irrelevantes: regências e virgulas, umas erradas e outras ausentes. O caso das regências é interessantíssimo, porque os equívocos quanto a elas devem-se basicamente aos hábitos da língua falada, ou seja, explicam-se pela linguística!

Interessante mesmo é uma premissa que o autor adota. Ele diz que em todas as línguas que conhece – e são muitas – nunca ouviu alguém que falasse diferente da norma culta. Isso é mais que uma tolice; deve ser, ou uma inverdade, ou uma confissão de ter falado muito pouco com estrangeiros. Bem, talvez o autor tenha passeado pelo mundo a conversar com pessoas que traziam suas falas previamente escritas!

É óbvio que se devem educar as massas, leva-las a conhecerem as normas cultas, porque desconhece-las é fator de exclusão. Mas, também é óbvio o quanto há de patético no afirmar que o tal livro estimula o erro e no afirmar que é desejável que se fale como se escreve, porque há vastos grupos que assim fazem…

Rojões quase à minhota e salada de feijões brancos.

Vendem-se, por aqui, uns filetes de porco interessantes. Sim, interessantes porque são relativamente grandes e permitem imaginar que se criam porcos imensos, a julgar pelos meus conhecimentos de anatomia porcina. Os filetes têm vantagens e desvantagens, como quase tudo. Eles são muito macios e não há como fazê-los ficarem duros. São facílimos de se fazerem, sejam fritos, sejam guisados – estufados – sejam grelhados.

Por outro lado, não é uma peça muito saborosa, como são a perna e o lombo. Acho, mas não tenho certeza, que os rojões minhotos são feitos da perna do porco, de onde vem a carne mais saborosa que existe, como bem apontavam os astecas. Faço aqui um pequeno parêntesis para lembrar essa maravilhosa constatação dos mexicanos astecas, a propósito da carne do porco, que não conheciam e passaram a apreciar depois que os espanhóis introduziram-na no México.

Eles diziam que a única coisa boa que os espanhóis haviam trazido era o porco que, depois da carne humana, era a melhor que havia! Hoje, uma tentativa de comprová-lo cientificamente seria crime, tempos terríveis esses presentes…

Bem, tomei um filete de porco de aproximadamente um quilo. Cortei-o em escalopes, ou seja, transversalmente, e depois dividi os escalopes ao meio: eis os rojões. Em uma assadeira, pus os rojões com bastante alho espremido, folhas de louro, sal, pimenta do reino e, claro, vinho. O porquinho passa um dia inteiro a banhar-se nessa vinha d´alhos.

Além da inovação do corte do porco, atrevi-me a outra: pus umas rodelas de linguiça fumada, também a descansar no banho de vinho e alhos e sal e pimentas e louro.

Hoje, pelas onze e meia, espremi mais alho – essa liliácea nunca é demais na cozinha – em uma caçarola com azeite e coloquei no fogo alto. Três minutinhos depois, os rojões e as rodelas de linguiça. O caldo da vinha reserva-se, para entrar depois.

Passados uns dez minutos, virando-se os rojões, acrescentei o caldo de vinho, sangue e alho, baixei o fogo, tampei a caçarola e esperei uns vinte minutos. Pronto, estava no ponto a carne dos deuses.

Entretenho-me a cortar verduras. É uma coisa repetitiva e que requer atenção, é como rezar um mantra indiano. Então, tomei dois maços pequenos de cebolinhas e fatiei-os em rodelinhas. Cebolas, cortei-as em pedaços médios, quase simétricos. Tomates foram cortados com uma diligência monástica, quase todos do mesmo tamanho. Coentro – essa dádiva cheirosa – lava-se e corta-se apressadamente.

Tudo isso foi colocado em uma peneira, lavado em água corrente e posto em uma panela, com vinagre branco. Os feijões, simples feijões brancos, grandes, cozinhados em água e sal.

Simplesmente, misturam-se os feijões escorridos com a cebola, a cebolinha, o tomate e o coentro, em uma panela média. Põe-se um pouco de vinagre e de azeite e está pronta a salada!

Há uma semana o tempo está chuvoso e estamos meio próximos ao inverno, o que significa temperaturas razoáveis, agradáveis 22º, coisa rara nesta terra que é a fornalha do mundo. Então, podemos dedicarmos-nos à extravagância das carnes – ainda que matizadas pela suavidade da salada – e a um honesto vinhozinho do Dão.

Honesto, sim, e até barato, mesmo em reais. Um Dão de Touriga Nacional e Tinta-Roriz, razoavelmente encorpado, razoavelmente persistente e pouco alcoólico. Depois, bem, depois foi escrever essas bobagens e dar um cochilo!

O óbvio, garantido por um especialista.

O crime contra o patrimônio em evidência, no Brasil, é a explosão de caixas de bancos. Por todos os lados, explodem-se caixas de levantar dinheiro na rua, com dinamite. Quando isso não machuca alguém que nada tenha a ver com a coisa, acho até engraçado e engenhoso meio de roubar os bancos, afinal eles merecem.

Evidentemente, isso virou notícia de jornal televisivo. Não vejo muito televisão, e jornais apenas da Bandeirantes e da Record. Não que sejam bons, mas são  menos ruins que os da Bobo, esses insuportáveis em pedantismo, mentira e dramaticidade de problema inexistente.

Eis que o jornal da Bandeirantes falava nas tais explosões, havidas em São Paulo. Houve delas no país inteiro, mas precisou acontecer no centro de São Paulo para ser relevante. E, lá pelas tantas, a apresentadora diz: segundo especialistas, essa é a forma escolhida pelos ladrões porque conseguem dinheiro com menos riscos.

Segundo especialistas? Quais especialistas são tão especiais para dizer-se uma obviedade dessas? Todos os crimes que visam a dinheiro e são praticados por ladrões um pouco acima da barbárie total visam a dinheiro e aos menores riscos. É claro que o meio foi escolhido por ser o mais eficaz, ou seja, o de maior retorno com menos riscos.

Precisava de um especialista para diagnosticar essa evidência? Sim, porque há especialistas para tudo, incluindo-se o óbvio mais óbvio. Aquilo que qualquer pessoa sabe, ela deixa de saber, porque está acertado que é assunto para especialistas, como tudo. Não se ousa dizer que uma coisa é como sempre se supôs que fosse, porque será âmbito de alguma especialidade e, portanto, ninguém deve aventurar-se nela como se fosse coisa comum.

Claro que o óbvio continua a ser a maior parte das vidas. Em conversas particulares, de cafés e bares e locais de trabalho, o óbvio está impregnado como o óleo nas engrenagens de uma caixa de mudanças. Mas, as mesmas pessoas que obviam suas vidas nas conversas comuns, aceitam que as obviedades sejam subitamente elevadas a coisas de especialistas, nos jornais televisivos e solenes.

Os pontos de vista mudam. Alteram-se na passagem do à vontade para o à sério, embora ambos girem em volta da mesma coisa, uma obviedade! Ela consegue ser duas, sendo uma e só uma, conforme seja trivial ou seja adornada de circunstância por um agente dador de seriedade, o especialista.

 

É de pesar?

Seu Apolinário tinha um armazém de secos e molhados. Na verdade, um armazenzinho tão pequeno quanto era a cidade dele. Pequenos, armazém e cidade, como podiam ser essas duas coisas na década de 1960, no interior do Nordeste do Brasil.

A única peculiaridade do estabelecimento de Seu Apolinário é que não fechava as portas no horário de almoço, aquele de extremo calor e extrema preguiça. Certamente que isso não se devia à intrepidez comercial dele, mas àlguma mania ou hábito, ou conveniência.

O fato é que Apolinário comia o almoço, que Dona Conceição trazia de casa, ou seja, dos fundos da loja, atrás do balcão. Depois, punha de lado o prato, esticava as pernas e cochilava um sono bem leve, com o botão de cima da camisa aberto. Estava atento, todavia.

Os calores diurnos do agreste nordestino renderiam quilos de papel , tanto em descrição, quanto em poesia. Poupemos essas decrições e esqueçamos da poesia, que ambos seriam longos e eu incapaz da segunda. Fato é que, entre onze horas e três da tarde, quem tem juízo descansa o juízo.

O gato do armazém de Seu Apolinário tinha juízo bom. Quer dizer que o felino dormia nessas horas infernais. E, quer dizer que ele, o gato, ser inteligente, dormia nos locais mais frescos.

Como qualquer armazém, o de Seu Apolinário tinha uma balança, daquelas de dois pratos de metal. De um lado, põe-se o produto comprado a peso, de outro, os pesos de ferro. Ficava em cima do balcão, de madeira velha e alisada pelo tempo. O que havia de menos quente nesse ambiente eram os pratos da balança.

Se alguém vinha até ao armazém nessas horas de almoço, cheio de urgências que levavam àquela única loja aberta, Seu Apolinário abria mais os olhos e perguntava, antes de qualquer boa-tarde: é de pesar?

Sim, porque se o cliente quisesse um produto cuja venda dependesse de pesar-se a quantidade, ele dizia para passar mais tarde. Se o cliente insistisse, ele apontava para o gato deitado no prato da balança.

Justo homem! Acordar um gato para vender algo?

 

Jimmy Carter em Cuba. Apenas para falar de uma lembrança.

 

Lembro-me bem – que eu devia ter uns vinte e poucos anos – de um almoço na casa de meu tio Fernando, em que estava um amigo prezado dele, Camilo Steiner. Camilo, não me lembro se era austríaco há muito no Brasil, ou brasileiro filho de austríacos – era casado com Janet, norte-americana.

Janet era amiga de escola de Rosalynn Carter. Eles eram amigos, os casais Steiner e Carter. Camilo Steiner gostava de Carter, como se gosta de um amigo. Tinham-se hospedado na Casa Branca, quando Carter era Presidente e eles foram visitá-los nos EUA.

Pelas tantas, no almoço em Recife, falava-se das atuações dos EUA no mundo, na época o presidente era o Bush pai, acho. Inaugurava ou aprofundava a indignidade e a falta de honradez que vem caracterizando esses presidentes. Eles falavam, eu escutava, que na época ainda escutava bem.

Conversavam e Fernado disse: Camilo, diz a Andrei, que é novo e anda impressionado com patifarias, o que é Carter e um presidente americano.

Carter – ele disse olhando para mim – é uma pessoa que teu tio receberia em casa e tu sabes que isso depende da pessoa, mais que do presidente ou outra coisa.

Fiquei com isso na cabeça. A situação faz-me parcial, não escapo a julgar de uma forma parcial, os personagens levam-me a isso.

Carter, independentemente daquele amigo de Camilo Steiner, é uma figura muito além de outras que ocuparam a presidência norte-americana, mais real e menos imbecil e menos rude e mais inteligente e mais georgiano e mais civilizado.

 

Resoluções da ONU, morticínio e o amor juvenil pelas formas.

Leio um artigo assinado, no Diário de Pernambuco de hoje. O escritor ocupa o papel e despende a tinta, a falar do mundo, da ONU, da Líbia, da democracia, do concerto universal, do direito disso e daquilo. Não faz mal à digestão de uma laranja e duas xícaras de café, meu desjejum domingueiro.

Na verdade, faz quase nada, nem agride a lingua, o que já é vantajoso. Em certo ponto, porém, o apego cego – sim, porque não me permito usar ingênuo, que então essa seria minha postura – pelas formas.

O artigo propõe que os bombardeamentos à Líbia deram-se de acordo com uma resolução da ONU, assim mesmo, como se falasse de algo autorizado pelo Deus que subitamente se encarnasse e desse uma ordem. E, a destruição que vem dos céus autorizada por uma resolução da ONU é, portanto, um assunto neutro, asséptico. Deixa de ser uma destruição, passa a ser uma não-coisa, a ser vista pela ótica de uma juridicidade sem nada por trás.

Uma resolução da ONU não passa da decisão de cinco membros, os que têm poderes de veto. Uma decisão de cinco membros representa os interesses deles, só e exclusivamente. Não consiste em qualquer fonte de direito, mas em expressão de poder minoritário. Ou seja, não pode ser fonte jurídica nem mesmo sob o prisma democrático!

O bombardeamento da Líbia não é, nem um assunto jurídico, nem uma bobagem qualquer, nem uma missão humanitária. É o início de uma ação saqueadora maior, para que pouco importam mortes desses ou daqueles civis. Não encontra qualquer chave de compreensão jurídica, porque não há esse direito de violar soberanias, não há mesmo direito quando se inicia a guerra, um e outro são coisas diversas.

É ocioso buscar entender um saque de recursos naturais a partir de autorizações da ONU, porque elas sempre existirão para autorizar, primeiro o que não demanda autorização, segundo o que sempre será autorizado segundo os interesses dos detentores do veto.

Loucura, linguagem e liberdade, um trechinho de Lacan.

“Longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é virtualidade permanente de uma falha aberta na sua essênsia. Longe de ser um insulto para a liberdade, ela é a sua mais fiel companheira, seguindo seu movimento como uma sombra. E o ser do homem não somente não poderia ser compreendido sem a loucura como não seria o ser do homem se, em si, não trouxesse a loucura como o limite da liberdade.”

Paulo Henrique Amorim: a sutileza genial.

Transcrevo, adiante, a postagem do blogue do Paulo Henrique Amorim chamada A fonética do Ministro Marco Aurélio e o “I”. Paulo Henrique é o jornalista e blogueiro brasileiro mais inteligente e de escrita mais elegante e simples  que há. Às vezes, supera mesmo o padrão elevado que tem.

 

Este ansioso blogueiro assistiu a trechos da votação da Ficha Limpa – clique aqui para ler “Fux ilumina o STF – ele aqui e o Gilmar lá”.

Este ansioso blogueiro se impressionou com alguns traços do Ministro Marco Aurélio de Mello, ao anunciar seu voto.

Tão impressionado que decidiu recorrer ao notável professor de fonética Henry Higgins, que o amigo navegante conheceu no My Fair Lady.

– Professor Higgins, de onde vem aquele “l” final das frases interminaveis do Ministro Mello ?

– Quisera eu saber, my dear, respondeu com humildade.

– É um “l” que se prolonga, que não tem fim, que parece que vai esbarrar no próprio eco.

– Meu filho, na língua portuguesa,  normalmente …

– Normalmente, interrompi.

– Sim, normalmente, o “l” se pronuncia como um “u”. Fauta, pauta, brasiu, funiu, tiziu …

– Sim, mas o “l” do insigne ministro não se rebaixa a um “u” …

– Repare que os gaúchos ás vezes empregam o “l” como em Portugal. Assim, mais longo, puxado para cima

– Sim, mas isso é em Portugal.

– O “l” , meu filho, sai quando o ar passa pelos cantos da boca, ao lado da língua – é assim que é pronunciado.

– Isso, normalmente, no Brasil. E como sai o  “l” do Ministro ?

– Ele nasaliza o som e provoca uma vibraçãozinha, como se o “l” fosse uma consoante uvular e não é.

– Calma, professor Higgins. Não precisa esbanjar … mas, por que há essa promoção do “l” à nobre categoria da consoante uvular ?

– Pedantismo, meu filho. Só pedantismo.

– Outra pergunta, notável professor Higgins: o senhor reparou que o dedo indicador do insigne Ministro não indica, não aponta para a frente ?

– Como assim ?

– Na hora agá, professor, o dedo indicador fica no meio do caminho. Ele imbica para baixo. Interrompe a trajetória prevista. Ele dribla o espectador.

– Você já ouviu falar em “body language”, não é  isso ?

– Sim, linguagem do corpo.

– Claro, respondeu o professor Higgins. É a mesma coisa. Chamar a atenção, afetação.

– O senhor sabe quem inventou essa tragédia ?

– Qual delas ?, ele pergunta.

– A transmissão ao vivo da sessão pública do Supremo, pela TV.

– É pior que uma tragédia. É ridículo !, sentencia Higgins.

– Pois, o pai do ridículo é o Ministro Marco Aurélio de Mello,  quando Presidente do Supremo.

– Eu desconfiava. Elisa me disse qualquer coisa sobre isso.

– E o dedo indicador que não indica mas imbica ?, pergunto.

– Pedantismo !

– O senhor recomendaria algum gesto que chamasse ainda mais a atenção do Ministro Mello no horário nobre ?

– Sim, sim, claro. Ele poderia imitar aquele truque genial do Marlon Brando no Poderoso Chefão

– Qual, professor ?

– Colocar algodão no vestíbulo, entre a gengiva e o lábio superior. Ninguém sabe bem por que, mas teve um efeito espetacular ! Sucesso total ! A frase mais banal parecia primorosa !

– Mas, aí, professor, o Ministro vai perder o “l” uvular.

– Meu filho, ele tem que escolher. A vida no horário nobre é feita dessas escolhas.

Pano rápido!

Paulo Henrique Amorim

O furriel Tomás, do Lobo Antunes, diz o que é um crepúsculo.

Aqui não vai comentário sobre o Lobo Antunes, ou sobre O manual dos inquisidores. Vai uma transcrição de um trecho esplêndido. Um trechinho de algo que me chamou a atenção por identificação.  Ninguém percebe que os finais do dia, os escurecimentos, têm uma existência própria, uma cor própria, temperatura própria, que cores e sons e tatos misturam-se?

Pelas tantas, o furriel Tomás entra a dizer o seguinte:

… no momento em que o escuro impedir de nos vermos um ao outro esqueça-me que eu faço a mesma coisa: do meu lado e pronto, assunto resolvido, continuo a tratar das hortaliças em sossego, continuo a envelhecer em sossego, já reparou no brilho dos legumes se anoitece, na cintilação do limoeiro, como tudo se torna nítido e claro antes das trevas, o contorno dos telhados, o contorno das janelas, a vibração de susto de água nas cortinas, uma fissura microscópica da parede ou uma minúscula nódoa de grelado agora enormes e nas quais nunca tínhamos atentado, já reparou como os sons e as vozes mudam de cor, íntimos, vizinhos, inquietantes,  como parece que habitamos uma redoma de silhuetas e de ecos…

Pára mim não é assim quanto à nitidez das coisas, mas é assim com o restante e com o que não foi dito no trecho acima. É assim que são os escurecimentos…

É proibido urinar na rua! O Brasil tem compromisso firme com a tolice?

Uma mistura de esquizofrenia com burrice leva-nos a considerar prioridades imediatas as coisas mais tolas do mundo. E a roda da tolice gira, incessantemente, e faz surgir uma nova emergência com que todos se preocupam.

É condição necessária que a coisa seja da maior desimportância possível, ou seja algo que só pode ter alguma se for cuidadosa e seriamente tratada.

É condição necessária que a desimportância da moda seja abordada escandalosa e solenemente, mas nunca detidamente. É condição necessária que se admitam uma e outra piada, mas que nunca se pergunte o porquê de alguém ter alçado aquilo a assunto.

Neste momento, a tolice em evidência é a proibição de urinar-se na rua, durante o carnaval do Rio de Janeiro. 500 pessoas foram detidas porque cometiam esse delito gravíssimo. As tevês tratam das prisões, especialistas dão opiniões, um fulano acha isso, um sicrano aquilo.

Sinceramente, gostaria que o governo do Rio de Janeiro tivesse tomado essa iniciativa com o propósito consciente de fazer piada e desviar a atenção das suas fragilidades e problemas reais. Mas, a experiência prova que a tolice casa-se bem com a sinceridade e, portanto, para minha frustração, provavelmente cuidaram dos mijões por acherem isso importante.

Uma pessoa intelectualmente honesta, que visse a coisa desde fora – um estrangeiro – pensaria que todos os outros problemas estavam resolvidos e, então, os zelosos governantes tinham partido para cuidar dos detalhes. Que a implementação da sociedade perfeita estava quase levada a cabo e faltavam apenas detalhes.

Não! Está tudo por fazer e a polícia do Rio de Janeiro prendendo mijões!

Há poucos anos, a entrada no nirvana civilizatório, aqui no Brasil, se daria pela redução da tolerância alcoólica dos condutores, de quase nada a nada. Isso virou assunto a ser discutido, virou ponto de honra, virou medida de enorme seriedade, coisa que nos poria no mundo civilizado.

A mudança de quase nada para nada não podia resultar em outra coisa senão nada. O nirvana não chegou, os acidentes continuaram e aumentaram. De quase nada para nada não podia ser uma coisa importante, qualquer um que pensasse sabia.

Depois, outra forma de se atingir o paraíso veio a tona. Nesse país em que se pode roubar, matar, morrer por omissão de socorro em hospital público, ficar adulto analfabeto, estava terminantemente proibido fumar. Pronto, o mundo estava melhor, a vida em sintonia com os ditames da civilização.

 

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