Dizer que há um grupo reduzido e interligado de aristocratas que mandam no mundo ocidental – Europa, América do Norte e seus satélites coloniais africanos e sul-americanos – é inconveniente e quase proibido, a depender de quanto explicitamente se fale.
Dos três cineastas do título, é interessante notar que Kubrick foi o mais explícito e, não se sabe se por causa disto, veio a morrer antes do filme ser lançado. Deve ter sido coincidência. Normalmente, os identificados limitam-se a dizer que o identificador é um difusor de teorias da conspiração.
A identificação faz-se a partir da mostra dos códigos que regem as relações dos aristocratas muito ricos entre eles mesmo e entre eles e o restante das pessoas. Tende a escandalizar o público porque estes códigos não se baseiam absolutamente em critérios morais, embora consagrem critérios de honra. E as finalidades destes códigos são ocultar-se e manter o poder nas suas expressões econômica e social.
No seu filme, Renoir insere subtramas e intrigas que afastam um pouco a percepção do que era possível e impossível para a personagem André. em seu romance com a esposa do aristocrata austríaco.
Fellini é discretíssimo. A personagem de Mastroianni, Marcello, percebe na festa no castelo aristocrático romano que ele estava lá apenas fisicamente. Mas, o que parece é ser um filme todo focado na pequeneza existencial de Marcello.
Esses filmes e as identificações dos modos de ser individuais e de grupo dos aristocratas e de seus códigos de condutas para relações internas e externas vieram-me à mente pois lia sobre o marquês Camillo Casati Stampa di Soncino, aristocrata de uma das famílias nobres mais antigas de Itália.
Já havia lido sobre Casati Stampa há muito. Mas, voltei a me interessar porque li que Berlusconi comprou à filha herdeira de Casati Stampa, em 1974, a Villa San Martino. E Berlusconi, farsante e impudico, abriu a Villa a uma equipe de TV para provar que nela não se faziam as festas bunga bunga e para mostrar que havia erigido um mausoléu inspirado no túmulo de Tutancámon, para acolher os amigos que morressem…
O marquês era riquíssimo e tinha muitas casas por toda a Itália. E tinha uma Villa na Ilha de Zannone, que ficou conhecida como a ilha das orgias. Em 1958, Casati Stampa conheceu Anna Fallarino, que fora aspirante a starlet da Cinecittà e findara por casar-se com um engenheiro meio endinheirado, que a inseriu nos círculos de bom gosto romanos.
O marquês conseguiu a anulação do casamento de Anna, mediante pagamento farto, e veio a casar-se com ela em 1959. Na noite do casamento, Anna banhava-se, no hotel em que estavam, e Casati Stampa fez chamar um garçom, um rapaz jovem e bonito, com quem Anna desfrutaria à vontade, enquanto o marido apenas olhava.
Este acordo deu certo. O marquês pagava para jovens, dos dois sexos biológicos, bonitos, de condição social inferior, terem sexo com Anna, enquanto ele tirava fotos. Depois, descobriu-se que havia um arquivo de aproximadamente 1500 fotos encartadas em um diário verde, que trazia também anotações feitas por Casati Stampa.
Havia, porém, um limite estabelecido no pacto: não poderia haver envolvimento emocional nem amoroso entre Anna e os inúmeros amantes pagos pelo marido. Um dia, Anna foi introduzida a um jovem chamado Minorente e envolveu-se afetivamente com ele.
Em agosto de 1970, Casati Stampa matou-os e matou-se com uma espingarda de caça, na sua Villa em Roma. Deixou escrito que havia sido traído com o coração, por Anna. No testamento, estabeleceu que a marquesa Anna seria enterrada junto a ele, no mausoléu da família Casati Stampa di Soncino.
Muitos, notadamente psicólogos, como é intuitivo, debruçaram-se sobre a psiqué do marquês e puseram-se a especular se era impotente, se era voyeur, se era homossexual e por aí vai. Nada disso parece-me importante, eis que tais especulações parecem-me muito mais guiadas por balizas moralizantes que por balizas ou interesses epistemológicos. Claro que a investigação psicológica não é inútil, mas não atinge o mais interessante.
Os móveis psicológicos que impeliam o marquês a tais condutas sexuais não têm a ver com sua origem social e com a possibilidade de fazer o que gostava de fazer. Esta possibilidade concreta de agir abertamente como agia é que é reveladora do que é a classe social a que pertencia.
Há códigos para as relações dos aristocratas muito ricos entre eles e com as restantes pessoas, de fora do grupo. Eles, de uma forma geral, visam à preservação do poder nas suas expressões econômica, social e psicológica. Casati Stampa foi ferido no seu poder pessoal sobre Anna. Foi traído com o coração quando Anna enamorou-se do amante e estabeleceu uma relação que fugia ao poder do marquês.
Este caso é mais sútil, de fato, eis que é mais comum perceber-se a função conservadora dos códigos relativos à liberdade sexual dos aristocratas muito ricos na sua face de manutenção do poder econômico. Na corte dos Aquemênidas, por exemplo, a rainha e as mulheres da alta nobreza serviam-se sexualmente dos eunucos à vontade.
Não havia a interdição sexual na corte persa; havia a interdição de procriar fora do grupo e deslegitimar a nobreza com a geração de bastardos. Os eunucos, contrariamente ao que muitos pensam, não são impotentes quando castrados depois da puberdade, são inférteis apenas.
Semelhantemente acontece com as regras que vedam o acesso dos pequenos fidalgos e do burgueses ao seio da aristocracia muito rica, senão como pequenos bufões que eventualmente divertirão num e noutro jantar, como acontece no episódio da Doce Vida, de Fellini. Mas esse convívio esporádico raramente significa uma aceitação real e um ingresso no outro mundo.
A aristocracia dos muito ricos protege-se, individual e coletivamente, por meio destes códigos desconhecidos da maioria. Assim, mantém riqueza, prestígio social e honra, por bizarro que possa parecer. Nunca se tratará de moral, contudo.