Os estamentos mais elevados da burocracia estatal brasileira, seja eletiva, seja meramente seletiva, prestam enorme desserviço à implantação de uma república a merecer este nome. E não se trata aqui de falar desse moralismo difuso anti-corrupção, que não sabe mesmo de que fala.
Trata-se de vício essencial a demonstrar, primeiro, que as preocupações com corrupção são contraditórias e, segundo, que a percepção do que é corrupção é corrompida ela mesma.
Corrompida essencialmente é a noção de espaço público e privado, conveniente e inercialmente imbricadas num todo em que as distinções são pontuais e de mera conveniência.
É básico que funcionários públicos, que em teoria não atuam para nada mais que o interesse geral, não podem colocar-se em situações que insinuem conflitos de interesses. Todavia, no Brasil, esta noção básica é atropelada sem quaisquer cerimônias, ao tempo em que o discurso permanece absolutamente contraditório.
É deformante que funcionários públicos tenham e aceitem presentes e privilégios, mas aqui eles os têm e aceitam. Com relação aos presentes, habitualmente os esquecem, como a tentar fazer deles um nada ou uma normalidade silenciosa. Com relação aos privilégios, defendem-nos com o discurso puído de defesa da atuação e não das pessoas.
É antiquíssima a enunciação de que juízes não podem receber presentes. Tão antiga quanto evidente e coerente, posto que resolver conflito entre partes implica não se relacionar com elas. É intuitivo que o relacionamento do juiz com uma parte desloca sua percepção e anula qualquer possibilidade de imparcialidade. Sem imparcialidade, convidam-se os litigantes ao uso da justiça privada, da força.
Pois, no Brasil, acha-se normal que juízes, em grupos associativos, recebam presentes, que atendem pelo eufemismo patrocínio a eventos. Um sindicato ou associação de juízes recebe, assim, de empresas privadas, passagens aéreas, diárias em hotéis de luxo, refeições caras, automóveis para serem sorteados entre os integrantes.
Da mesma maneira, sindicatos e associações de funcionários públicos com algum poder decisório obtém junto a montadoras de automóveis descontos na compra desses produtos, obtidos única e exclusivamente pela circunstância de reunirem certa corporação estatal.
Curiosamente, os beneficiários desses presentes não acham que estejam a ser comprados nem detem-se a pensar na especificidade das benesses, ou porque o sindicato dos coveiros não obtém as mesmas coisas para seus associados.
Isso de não se acharem devedores dos dadores das prendas é realmente preocupante, porque pode ocorrer que realmente os agraciados acreditem-se merecedores daquilo tudo a troco de nada, a revelar imensa ingratidão e defeito de caráter maior que aceitar as prendas. Aceitá-las e dar nada em troca é realmente vil!
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