Um interlocutor sábio é uma preciosidade. Nem tanto por concordâncias ou discordâncias, mas pela forma de abordar o assunto além, é claro, da escolha deste assunto. Há poucos dias, conversava com o Miguel sobre a existência ou, melhor dizendo, sobre a persistência de Berlusconi no poder.
Não me recordo de toda a conversa, evidentemente, nem fui ao facebook reaviva-la integralmente. Prefiro tentar recupera-la, em linhas gerais, de memória. Iniciei por falar de manipulação mediática, como explicação da persistência berlusconiana. Miguel retrucou – não propriamente como objeção direta – que talvez fosse o caso dos italianos perceberem-se em Berlusconi, ou seja, serem alvos da sedução por identificação.
Acrescentou que são milhões de italianos detentores de cultura formal a votarem no homem, mais de uma vez. E indagou se essa gente toda iria dizer-se, ao depois, enganada. Realmente, não é coisa muito trivial e não se compreende se ficarmos na pura dicotomia manipulação ou identificação.
Achei que os dois fatores estavam imbricados, pois há mesmo bastante de identificação, ou seja, dos eleitores perceberem-se no eleito e assim fazerem escolhas trágicas, mesmo que sejam pessoas formalmente educadas.
A grande pergunta não é mesmo sobre a manipulação. Talvez a grande pergunta seja sobre a liberdade individual, ou seja, se ela ainda se pode considerar existente. E aquilo que Miguel sugeriu, de os italianos perceberem-se em Berlusconi, chamou-me bastante atenção. Meti-me a pensar no assunto e acho que encontrei algumas chaves interessantes para sua compreensão.
Parece-me que acontece algo um pouco mais complicado que a identificação do eleitor com o eleito, mesmo que essa identificação seja pontual, em um e outro aspecto mais visível da pessoa mirada. Creio que vivemos mais uma situação de incapacidade de identificações precisas, algo como uma despersonalização, algo que somente enseja identificações rapidíssimas, ligeiríssimas, pelas aparências.
Não gosto de fazer citações, porque frequentemente resultam em trechos que pouco sentido fazem fora da completude da obra de onde provém, mas farei uma, adiante, para que peço atenção de quem se detiver a ler isto aqui. Trata-se de uma parte do Comentário de Guy Debord à sua obra A sociedade do espetáculo. Esse comentário encontra-se nas edições mais recentes, como espécie de epílogo, e deve ser dos finais dos anos 1980.
O discurso espetacular faz calar, além do que é propriamente secreto, tudo o que não lhe convém. O que ele mostra vem sempre isolado do ambiente, do passado, das intenções, das consequências. É, portanto, totalmente ilógico. Como já ninguém pode contradizê-lo, o espetáculo tem o direito de contradizer a si mesmo, de retificar seu passado. A atitude arrogante de seus serviçais quando devem apresentar uma nova versão, talvez ainda mais enganosa, de certos fatos consiste em retificar rispidamente a ignorância e as más interpretações atribuídas ao público; ora, os mesmos serviçais, pouco antes, faziam de tudo para difundir o erro, com o ar seguro de sempre. Dessa forma, o que o espetáculo ensina e a ignorância dos espectadores são impropriamente considerados fatores antagônicos: na verdade, um nasce do outro.
O espetáculo de fato tornou a vida e os fatos dela coisas atemporais, anti-históricas. Dissociou as coisas que compõem uma vida, principalmente a memória, seja pessoal, tradicional ou colectiva. Ele cometeu o crime genial de estabelecer o presente contínuo, sem futuro ou passado, como uma simples sucessão de imediatos que não se liguem entre si. Essa situação embaralha os sistemas de identificação, pois os marcos referenciais deixam de existir.
Debord afirma que o discurso espetacular é, nisso, totalmente ilógico. Eu acrescento que por ser ilógico tornou-se ainda mais triunfante, na medida em que a lógica pode ser muito fácil, se houver algum treino com ela, mas pode ser o maior estorvo para uma mente humana, também. Um discurso ilógico ou analógico pode ser vastamente sedutor, pelo que tem de solto no tempo e no espaço e por não cobrar do espectador que pense, que extraia conclusões, que afaste outras.
Outra coisa fantástica apontada por Debord é que o discurso espetacular não tem compromissos de coerência consigo mesmo. Ele pode bem ir de um pólo a outro e trilhar o caminho inverso sem problemas, já que o espetáculo consiste em uma verdade própria e divorciada de outras, mesmo que das fáticas.
O discurso espetacular e seus expectadores necessitam-se reciprocamente. Como o autor diz na última frase do trecho citado, não se antagonizam os ensinamentos do espetáculo e a ignorância dos espectadores, eles se relacionam. O espetáculo é cretino porque o público é e este último é cretino porque o espetáculo o é.
Obviamente que essa conclusão pode ser veementemente atacada como uma reapresentação do princípio de identidade, pois que dizer-se A=A é dizer nada. Mas, não se trata propriamente de identidade e sim de relação mediada pelo discurso. O meio aproxima as partes, senão não seria o elemento de conexão da relação.
O que percebo, para tentar por a situação sob a ótica dessa teoria, é que Berlusconi não é quem está no topo da cadeia espetacular, embora seja formalmente o ocupante do posto máximo do poder estatal formal e esteja também no topo da escala social. Ou seja, é primeiro-ministro e é riquíssimo, mas de certa forma não vê o espetáculo de fora. É uma engrenagem privilegiada, mas ainda engrenagem.
O sistema espetacular é impessoal e move-se por uma dinâmica com inércia própria, que lhe é conferida por inúmeros e difusos comportamentos, que isoldamente pouco significam. A percepção dele a partir de elementos estáticos, como seja uma personagem isolada, é cair na armadilha de pensar na sua mesma lógica da dissociação. É pensar-lhe estaticamente, quando somente pode ser compreendido dinamicamente.
Não à toa, o espetáculo reage virulentamente contra quantos o percebam dinamicamente, historicamente, porque assim capta-se sua natureza. E, por outro lado, aceita toda e qualquer abordagem que se lhe faça segundo a lógica que ele mesmo propõe, porque assim podem-se dizer coisas muito agressivas, mas nenhuma precisa. O espetáculo aceita vaias e xingamentos, mas não que se queira deixar o teatro!
Então, falar em manipulação mediática é realmente pouco, até mesmo porque ela não precisa existir, assim voluntariamente, no dia-a-dia. E os espectadores são realmente ignorantes, não porque lhes faltem pacotes de conhecimentos escolares, mas por faltar-se a capacidade de relacionarem esses pacotes e de perceberem-se a si mesmos.
A mercantilização avassaladora – ainda como diz Debord – conduziu a isso, notadamente depois da primeira grande guerra européia do século XX. Conduziu ao presente contínuo, percebido na sucessão de eventos espetaculares dissociados entre si e dissociados da realidade mais próxima e, principalmente, da história.
Assim, já não sei se os italianos escolheram Berlusconi, se há, na verdade, escolhas, se querem escolher, se sabem quem são, se sabem para que serve o que aprenderam nas escolas, se sabem o que é Berlusconi, se sabem o que seria preferível a ele…
A Itália é um país de população essencial e excessivamente idosa. Numa palavra, é um país de velhos – estando atrás apenas da Espanha em decrepitude populacional.
Não que isso seja um problema estritamente geracional, mas também o é – em certa medida. As gerações que atravessaram a 2º Guerra e aquelas imediatas do pós-45 catalisaram moral e politicamente esse presente contínuo apontado.
Num país que suportou – e até mesmo escolheu/abraçou-se (naquilo que de “livre escolha” possa vir a existir…)- um regime democrático estritamente de fachada como o italiano das décadas de 60/70/80 (em todas as instâncias de poder daquela república), uma dissociação quase-psicótica entre a realidade e o espetáculo como resultante, não é de se estranhar. Com isso não se quer apontar uma estupidez generalizada em toda a população (ainda que instruída), mas uma estupidez generalizada na maioria da população (que não é toda).
Nunca estive na Itália (embora descenda daquele povo), mas bem sei o quão inflexível é a posição político-moral do italiano: ou se está do lado de cá, ou se está no meio, ou se está do lado de lá. Há pouco espaço de manobra ideológica, e nesse brincar de puxar-corda a extrema direita sai sempre com maior sucesso e maior proveito, uma vez que o espaço da esquerda italaiana (especificamente o PCI) foi conquistado a custa de alguns soldos.
Aquela gente está ficando velha – e muitos dormem embriagados nesse presente contínuo, doravante ainda são como seus pais.
André, apontaste algo que não é desprezível: a senilidade do povo. Se considerarmos isso e a senilidade histórica – que também existe – percebemos que pode haver um verdadeiro esgotamento desse povo.
E o espetáculo vive bem no ambiente de gentes esgotadas, porque ele é uma caricatura.
Às vezes fico com a impressão de que eles encontram-se reféns e sem vontade ou paciência de sair do espetáculo. Uma situação de deixa-estar, de perda do elan.
Caro Andrei,
Obrigado pelo convite, até porque produziste uma bela reflexão sobre o assunto.
De facto, em politica, em particular no sistema representativo democrático, faz-se muito uso da arte da representação, mas, quase, poderiamos dizer o mesmo do argumento lógico; a lógica no discurso político é, quase! (porque quero crer que o argumento guarda sempre em si algo de inviolável), mais uma veste dos poderes que se defrontam. Parece-me também que, como a arte, a representação política apela aos sentimentos ou paixões básicas do ser humano e aí o manipulam, consciente ou inconscientemente.
Não chega a ser necessária, sequer, uma proposta. A adesão está antes, é anterior e determina-se pelo medo, pela ambição,pelo amor, pelo ódio, pela luxúria, pela solidariedade; porém a maioria das nossas escolhas, a este nível, são egoístas.
Por isso, meu caro Andrei, te falava em identificação de uma grande massa da população italiana letrada e com experiência de muitos espetáculos eleitorais.
Poderemos dizer que a população italiana é já politicamente consciente, isto é, sabe que faz escolhas! Poderemos dizer que alguma será inconsciente, não tem noção da representação mediática de que é alvo. Mas a que aderem uns e outros, em Berlusconi?
Penso que a parte final da tua reflexão chega ao fulcro da questão, o espetáculo produzido visa inebriar, embriagar este sentir primário, Berlusconi exibe o seu sucesso pessoal,e os eleitores pelo seu voto auspiciam de uma qualquer forma participar do modelo, servindo-se no seu interesse individual. Na verdade escolhem, meu caro.
Não te parece?
Um forte abraço.
miguel
Prezado Miguel,
Realmente, há escolhas e isso deve ser enfatizado, creio, porque destaca um elemento que se encontra muito esquecido: a responsabilidade. Ou seja, em larga medida as pessoas devem ser chamadas às suas responsabilidades pelas escolhas, até para que as façam de maneira menos aleatória.
Já essa aleatoriedade aponta para algo qualificador das escolhas. Sim, porque o público varia dentro do espectro político segundo uma lógica da falta de lógica.
É bastante sintomático que o âmbito de escolhas seja estritamente polarizado entre esquerda, direita e centro e que essas opções redundem, no mais das vezes, no mesmo.
Há escolhas, sim, mas elas não têm qualquer profundidade nem implicam uma operação responsável. As massas agem como meninos mimados, que sempre argumentam com seu desconhecimento das consequências.
Nesse sentido, é auspicioso que a população italiana sofra os efeitos das suas escolhas, para talvez perceber o que elas significam e para utilizarem racionalmente os conhecimentos formais que detém.
O risco é esta percepção ser demasiado tardia e o estrago estar já feito, como parece estar.
A mim parece-me que as pessoas escolhem – como tu enfatizas bem – mas que o fazem como se atuassem mentalmente em um campo de incredulidade nas opções. As massas oferecem sua servidão voluntariamente, nesse âmbito espetacular.
Quando se é casado com uma mulher desagradável, há excesso de produção hormonal, está-se com inveja da galinha do vizinho e se quer dar uma pulada de muro, o melhor são mesmo as putas: pode-se escolher novas, bonitas, eventualmente cultas, marroquinas exóticas, russas sensacionais a 1000 dólares por 3 horas, brasileiras supostamente “universitárias” etc.
Depois do pulo dado , paga-se a fatura e pode-se ou não voltar a comprar no mesmo estabelecimento, mas geralmente pode-se esquecer a questão.
Penso que essa besteira de alguns italianos de quererem processar Berlusconi porque a tal menina do Marrocos era cara e menor de 18 anos é coisa de comunista italiano.
Dizia um cronista brasileiro que “comunista não gosta de mulher e é porisso que são tão poucos”.
Berlusconi não saiu com travesti e, ao partirem para cima dele, de quem não gosto por ser mesmo fascista, deviam partir antes em cima dos principes da Arabia Saudita, dos pedófilos da corte local e internacional do Vaticano, da maioria dos dirigentes da África poligâmica e dos mórmons.
Uma investigação sobre pedofilia e sobre sexo multifuncional com homens e mulheres de tenras e grandes idades, na corte de St. James em Londres, também poderia dar bom material e ganhos para a imprensa e boa diversão para a malta.
Sugiro que comecem a exercer a criatividade tentando promover uma denúncia e uma iniciativa contra os mórmons poligâmicos de Utah e onde a idade das mulheres no casamento não é limitada por lei nenhuma realmente cumprida.
Depois disso voltaríamos a falar contra Berlusconi com mais embasamento moral.
A questão, caro Contemplador, não se limita à vida sexual de Berlusconi. Na verdade, esse é o detalhe que vai acarretar o fim jurídico dele, por uma bobagem.
O problema é o conflito de interesses públicos e privados que ele representa, a destruição de alguma respeitabilidade do governo, porque votou leis de auto anistia, a corrupção, a coação de magistrados e de jornalistas, além do fascismo de que falaste.
Andrei, concordo basicamente com a sua colocação, os pulos de muro de Berlusconi são, como diz um trovador de AnusMundi, “o bode respiratório” da questão.
Por outro lado, os magistrados italianos, com algumas excessões, não são tão isentos de parcerias com a máfia e, no geral, acho que a coisa é parecida com o Brasil: ninguém até agora conseguiu pegar Zé Sarney, que não acho que seja melhor do que Berlusconi, nem acabar mesmo com o conluio da polícia com os traficantes no Rio de Janeiro e no resto do Brasil.
Para mim Berlusconi vai sobreviver a mais essa, pode ficar fora do poder por algum pequeno tempo, como ACM por aqui, mas depois gasta mais alguma coisa, consegue corromper algum governo dito mais de esquerda para que percam popularidade e será de novo aclamado como Il Duce. Sic transit Italia!
Comtemplador e Andrei, meus caros.
Evidentemente que as questões indicadas por Andrei ultrapassam em muito as questões de foro sexual.
Porém, também estas não são de negar. Julgo mesmo que têm todas elas um traço comum, a fulanização do exercício do poder público.
Com o regime republicano procurou-se alavancar a coisa pública para um espaço próprio, o dominio do bem comum, que asim deixa de ser uma questão familiar ou de um qualquer enviado da vontade dos Deuses. Por tal o exercício das funções governativas tem que obedecer a fins e a uma ética em que o comportamento privado dos governantes inexoravelmente sofre privações. Não está em causa Berlusconi, a pessoa, mas as escolhas que os italianos fazem para quem fala e age por eles na defesa do bem comum.
Para além de todas as violações a regras fundamentais do estado de direito, verifica-se no comportamento de Berlusconi a necessidade e a única intenção de se servir do aparelho de estado e não o inverso; talvez devesse propor aos italianos a colocação do país em Bolsa e lançar uma qualquer OPA. Um abraço.