Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 6 of 126)

O golpe será no congresso; seu líder é José Serra.

Dos líderes de oposição aos governos nacionalistas recentes o mais capaz é José Serra. Não porque ele seja viável eleitoralmente em nível nacional, mas porque é muito laborioso, tem interlocução direta com os interesses externos e com os chefes da imprensa mainstream brasileira. Ele é o político mais maquiavélico que se viu nos últimos quarenta anos, o que é um elogio.

É óbvia a articulação mediática-judicial para dar as condições do golpe de Estado que deporá a Presidenta Dilma. Por cálculo, percebeu-se o risco da deposição puramente judicial num colegiado. Tanto pode haver minorias contrárias, quanto pode haver conflitos e constrangimentos decorrentes do expurgo baseado em nada.

Soma-se outro inconveniente à deposição por meio de tribunal: quem assume depois do golpe. Nessa modalidade, as hipóteses são muitas, a dependerem do momento e, o pior, a dependerem muitas vezes de nada suficientemente previsível. Hoje, a imprensa conseguiu conduzir as camadas médias a tal loucura, que eleições podem ser indesejáveis, na medida em que, por exemplo, ex-militar nazista do Rio de Janeiro é viável, ambientalista criacionista do Acre é viável.

No início do planejamento golpista, adotou-se uma estratégia muito sagaz, segundo a qual todas as linhas se tentariam e seriam auxiliares umas das outras. Aproximado o desfecho, a coisa seguiria a que se tivesse mostrado mais viável e menos custosa.

O conúbio judicial-mediático foi essencial, mas não como o algoz que empunhará o machado a decapitar a Presidenta. A famosa operação lava-jato, conduzida com tantas violações a garantias constitucionais quanto garantias há na constituição, serviu a muito mais inteligente propósito que envolver pessoas do PT ou mesmo sequestrar por um dia o ex-Presidente Lula.

A lava-jato envolveu quase todo o PMDB e adjacentes partidos de aluguel, bem como boa parte do grande capital nacional. Nisso ela foi uma manobra genial.

Essa gente domina o congresso nacional e vê-se na iminência da humilhação judicial instrumental. Só uma pessoal os pode oferecer socorro eficaz: José Serra. Porque ele pode mandar a imprensa parar de repercutir e alimentar o espetáculo de linchamento judicial tático.

Então, José Serra já está acordado com Michel Temer, que estará bem pago com a faixa presidencial e o título; nunca almejou mais, nem seria capaz de ir mais além, realmente. Para dar provas de seu real poder junto à imprensa, Serra providenciou sinais: uma revista da Globo já detalhou esquemas de Aécio neves; um portal de notícias da Folha de São Paulo fez o mesmo.

Ficou claro que, hoje, a opção é pelo golpe via impeachment e que, portanto, o espetáculo judicial de perseguição a Lula, incessantemente mostrado e reapresentado na imprensa, é jogo de cena e meio de desviar atenções e ganhar tempo para a consumação do golpe parlamentar.

Em um governo Temer, Serra seria o poder de fato e poderia consumar seu sempre acalentado projeto de entregar a maior riqueza do país aos interesses externos: o petróleo. Paralelamente a isto, que é o principal, Serra trabalharia com afinco para a aprovação do modelo sonhado pela classe dominante brasileira: o parlamentarismo.

Aprovado o parlamentarismo, ou seja, a democracia sem povo, os riscos da loucura generalizada estariam minimizados, pois o presidente seria figura meramente decorativa.

Dramático é esse iminente desfecho em que um governo foi sitiado e teve retirada qualquer capacidade de reação pelo assalto em várias frentes com a imprensa a fazer bombardeio diário. E patética é a situação de supostos líderes das hostes oposicionistas que se viram enredados no plano de Serra e sumariamente expurgados pela imprensa na reta final.

O monstro corporativo e a rejeição à democracia.

Acentua-se nas camadas médias da sociedade e principalmente naqueles instalados no serviço público a rejeição à democracia, seja explícita ou disfarçadamente. No estágio atual, as rejeições explícitas são minoritárias e isoladas em grupos extremistas de pouca elaboração narrativa.

Prepondera a rejeição à democracia da maneira mais vil e desonrosa, que é mediante o disfarce e o discurso profundamente hipócrita da defesa da própria prática democrática. Essa postura é de regra para algumas corporações que se apropriam do Estado em benefício próprio. Hoje, notadamente, todos os serviços jurídicos e adjacências, serviços de contenção social – polícias – e as universidades.

 Os grupos formalmente instruídos que compõem estas corporações insertas no Estado agem contra a prática da democracia representativa, mesmo que o façam dissimuladamente. A ação centra-se na democracia interna e transplanta para o público um discurso que somente tem coerência para o privado. Quem é pago por todos de forma impositiva não pode gerir-se como se fosse pago por serviços privados, optativos, específicos.

O protótipo do modelo por todos desejado encontra-se num arcaísmo destituído de sentido, mas nunca seriamente discutido, adotado pelas universidade. Trata-se da eleição dos reitores das universidades públicas pelos votos dos docentes, discentes e funcionários, eleição que, embora não tenha formalmente caráter vinculante do executivo, tornou-se vinculativa na prática reiterada de ser aceita.

Ora, a escolha do reitor da universidade pública no âmbito restrito da universidade – que via de regra tem um imenso orçamento alimentado por dinheiro coletado junto a toda a sociedade – é algo nitidamente anti democrático, embora seja divulgada como o ápice da prática democrática. Aqui, tem-se o triunfo quase completo dos interesses corporativos, pagos com dinheiro da sociedade, em detrimento dos interesses realmente públicos.

Isso é a democracia dos sem votos; a democracia que escolhe como gastar o dinheiro de todos sem perguntar nada a estes todos. Democracia haveria se o reitor, para ficar neste exemplo, fosse escolhido em eleições gerais ou simplesmente nomeado pelo chefe do executivo, que se submeteu a eleições gerais e majoritárias e, portanto, tem mandato popular e legitimidade para a escolha.

Os poderes judiciais – o de decidir e o de acusar – já contam com uma curiosa variante da restrição democrática corporativa. Ela não se conhece em parte alguma e atende pelo nome de autonomia administrativa. A corporação judicial brasileira conseguiu transbordar uma garantia essencial que é a autonomia funcional, isto é, para decidir, para um privilégio sem sentido que é a autonomia para gastar quanto quiser, como quiser, onde quiser, sem dar contas a ninguém.

Eis que corporações adjacentes à judicial anseiam pelos mesmos privilégios e chegam às raias da absurdidade de pretenderem escolher seus chefes por eleições corporativas internas e impor ao chefe de Estado – que teve a inglória tarefa de ir buscar 50 milhões de votos populares – suas escolhas internas, que só atendem aos seus interesses. É uma investida frontal contra o modelo democrático, embalada no costumeiro besteirol jurídico-moralizante, com uso de lugares-comuns da moda, claro.

 É contrassenso absoluto pretender a autonomia de órgão do Estado relativamente ao povo em geral e aos governantes eleitos em particular. Pelo menos é contrassenso postular isso e manter-se aparentemente alinhado ao modelo da democracia representativa. Isto que se propõe e que se deseja é um modelo híbrido do Estado fascista corporativo, com um pouco mais de desconcentração interna que os modelos históricos recentes.

É ilegítimo pretender atuar à margem de qualquer controle hierárquico e gastar dinheiro público à margem de qualquer crítica social. É patifaria embalar este desejo de apropriação do Estado em causa própria com os papéis e fitas do discurso democrático.

O sequestro do ex-Presidente Lula.

O golpe judicial-mediático segue um guia muito bem definido e hoje promoveu o sequestro do ex-Presidente Lula para humilha-lo. Falou-se em condução coercitiva para prestar depoimento à polícia federal. Ocorre que o sistema jurídico desconhece condução coercitiva de quem não se recusou a ir depor.

Montou-se uma encenação digna de filme ruim de hollywood; uma verdadeira palhaçada, cara e desnecessária. O sequestro de Lula implicou a participação de duzentos policiais vestidos como soldados de elite, todos a portarem metralhadoras. Envolveu dezenas de veículos e cinco helicópteros. Como se um velho de setenta e tantos anos oferecesse algum perigo…

A encenação faz parte da narrativa. É talvez a parte mais eloquente, posto que de apelo visual de uma linguagem a que a classe média está acostumada precisamente por ser a dos filmes que ela aprecia. É a linguagem visual da violência, cujo protótipo é o militar em indumentária de combate e fortemente armado.

De pouco adiantaria o golpe final a ser dado contra Dilma e o Estado de direito no TSE com um Lula politicamente viável para as eleições presidenciais de 2018.

Em dois anos ou pouco menos que isso as atuais oposições aplicam políticas brutalmente regressivas e condenam milhões de pessoas ao reempobrecimento, que isto se encontra no seu programa. Um governo das atuais oposições terá de satisfazer o anseio das classes médias de devolução dos servos às senzalas. Terá de cortar programas de rendimentos mínimos porque é isso que espera deles pelos que os apoiam.

Todavia, pouco menos de dois anos não serão suficientes para cumprir a íntegra do programa entreguista que prometeram aos patrões reais.

Daí que um candidato de esquerda como Lula, em 2018, depois da deterioração da qualidade de vida e do poder de compra dos que ascenderam nos anos de governo dele, seria muitíssimo competitivo. Exatamente por isso, talvez mais importante que derrubar Dilma é interditar Lula.

É possível que os golpistas adiram à mais vil das estratégias que é tornar o país caótico e ingovernável até o término do mandato de Dilma, sem contudo consumar o golpe de Estado. Assim, chegaríamos a 2018 sem candidatos nacionalistas viáveis e os entreguistas teriam reais chances de ganhar nas urnas e cumprir todo o programa de empobrecimento dos que ascenderam e entrega das riquezas nacionais.

Variante da síndrome de Estocolmo.

Há um processo nítido de golpe de Estado, levado a cabo pelo conúbio entre a imprensa e o judicial. O segundo faz tudo para derrubar a Presidenta da República a partir de qualquer argumento, por mais pueril que seja, além de tentar a humilhação do ex-Presidente Lula e sua interdição política, também a partir de vários nadas reunidos. O processo é jurídico apenas na aparência, pois viola quase todas as garantias constitucionais fundamentais.

A imprensa faz o papel de instigar nas classes médias um ódio moralizante e hipócrita cego. Levou este estrato social ao grau zero do pensamento autônomo. Além disso, leva os setores normais da burocracia judicial à inação diante das aberrações perpetradas, por conta do medo do linchamento público induzido pela imprensa. A parte sensata do judicial foi paralisada pela chantagem mediática.

Além de atender aos interesses dos operadores locais das oposições ao governo, este processo atende aos interesses de desnacionalização das reservas de petróleo e da indústria pesada nacional, que se articulou muito fortemente em torno à cadeia do petróleo e viu renascer um setor voltado às altas tecnologias, notadamente no âmbito militar. O golpe serve, preponderantemente, aos interesses entreguistas.

Por meio de barbaridades travestidas de medidas judiciais enfraqueceu-se a ligação entre o governo e a grande burguesia nacional. Grandes capitães de indústria foram e são chantageados por meio de privações de liberdade ilegais, de que escapam se disserem precisamente o que o sistema golpista quer ouvir, pouco importando a veracidade do que é dito.  A bem de investigar contratos entre empresa meio pública e empresas privadas, o golpe judicial trabalha assiduamente para quebra-las ambas, de maneira a serem adquiridas pelo capital externo a preço de quase nada, ou simplesmente destruídas.

Esse processo cansa e confunde. Não que este cansaço signifique, para as classes médias enfurecidas contra roubos que não compreende absolutamente, alguma regressão no estado de ânimo pre-fascista a que foi levada. Mas, no âmbito das pessoas que conservaram alguma lucidez e pensam com o cérebro e não com fígado o processo tem cansado e confundido, realmente.

Essa espécie de reação tem padrão histórico, ou melhor se diria que este tipo de reação advinda do cansaço e da confusão implica uma postura muito estável relativamente a processos semelhantes. O que muitos dizem hoje relativamente à situação da Presidenta Dilma, já disseram sobre os casos de Getúlio Vargas e de João Goulart. Este último catalisou o tipo de análise que chamo quase síndrome de Estocolmo.

Cansados e confusos, alguns começam a crer que o processo destrutivo que sofrem alguns governantes deve-se, em muito, à inação ou incapacidade políticas deles próprios, o que não deixa de ser identificação, mesmo que parcial, com os algozes da imprensa, dos partidos e do judicial. O processo é tão brutal e absurdo que muitos são levados a crer que aquilo não poderia nascer e crescer senão com a ajuda da vítima.

É um erro de análise abissal e o caso com João Goulart é exemplar. Passados muitos anos do golpe militar que o derrubou da presidência, começou a formar-se uma narrativa da tibieza e da covardia de Goulart, o que é apenas falso. O mito é que haveria reação eficaz ao dispor do Presidente, que teria preferido a inação.

Primeiramente, convém destacar que não havia reação eficaz alguma contra os navios militares norte-americanos fundeados ao largo do Rio de Janeiro, inclusive entre eles um pequenino porta-aviões da classe Nimitz… Em segundo lugar, mais da metade das forças armadas estava a favor do golpe, uns por estupidez, outros por dinheiro mesmo. Entre os movimentos ditos de apoio ao projeto nacionalistas, muitos não passavam de infiltrados que nunca foram realmente de esquerda ou nacionalistas. A imprensa era majoritariamente favorável ao golpe.

Ai, neste passo, quem insiste na possibilidade de reação lança a carta da defesa pelo povo. Ora, o povo não tem consciência de classe hoje, imagine-se há cinquenta anos. O povo cuida do dia-a-dia, de pagar suas prestações, de comer, de procurar trabalho, de algum lazer barato. É muito ingênuo, até para acadêmicos neo-cooptados, supor possível uma reação popular organizada contra o golpe de Estado desferido em 1964.

João Goulart foi extremamente responsável e sincero quando disse que não levaria as coisas a um estado que implicaria um banho de sangue. Se insistisse nessa quimera, geraria um banho de sangue por nada, porque as chances de êxito não havia. Seria um capricho movido por vaidade. Ele foi grandioso.

Pois bem, começam a surgir análises que põem, ainda que parcialmente, na conta de Dilma o massacre mediático de que ela é alvo diariamente. Isso é tolo e vil. Não era a habilidade ou inabilidade política de Dilma que evitava as coisas chegarem ao grau de efervescência golpista atual. Era o tempo demandado para a imprensa conseguir catalisar todas as piores inclinações do médio classista fariseu prototípico. Isso leva tempo; é preciso trabalho constante. Da mesma forma, a construção do processo judicial leva tempo.

Dilma não contribuiu para que o processo golpista chegasse onde chegou, com tamanha intensidade e probabilidade de levar o país ao caos subsequente. Um pouco de pensamento autônomo, amparado nas balizas clássicas da história e da lógica formal, permite ver que nada ela poderia fazer para estancar isso. Não havia, nem há, acordo possível com as forças do golpe, exceto se se tornar também golpista e decidir entregar as riquezas nacionais aos comandos e interesses externos.

O povo está ansioso por suprir suas necessidades – reais e quiméricas – materiais: quer comprar, enfim. Não sairá às ruas para defender um projeto nacionalista em oposição a um entreguista e de submissão, simplesmente porque não concebe nada nestes termos.

Hoje, muito mais decisivo que qualquer ação da Presidenta é o desenrolar da situação geopolítica, notadamente as eleições presidenciais nos EUA, sua situação financeira, sua capacidade de promover desestabilizações por todo o mundo. Se a margem de ação dos EUA reduzir-se, tanto por esgotamento financeiro, quanto por formação de nova vontade política, podemos ter alguma paz…

 

Meu coração tem um sereno jeito.

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto,
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa…
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa

Pseudodivergência: poder real.

A maior expressão de poder é estabelecer as condições em que serão postos os discursos da pseudodivergência, que é um dos pilares do mito da imparcialidade. A imprensa majoritária – braço amigo do grande capital – conseguiu atingir este objetivo e domina integralmente o espetáculo do contrário aparente.

Se eu ponho as balizas da discussão sobre mim mesmo, eu sou ponto e contraponto previsíveis. Curiosamente, há um exemplo de sucesso desta estratégia na indústria do entretenimento, em que as piadas com judeus são todas previamente autorizadas por eles mesmos, não estranhamente os donos desta indústria.

Inicialmente, a abundância material atingida no século XX – e abstraio da justeza da sua distribuição – deu as condições da espetacularização da sociedade: condições econômicas para um fato social. Em segundo momento, o processo passou a retroalimentar-se também pela categoria subespetacular da pseudodivergência.

 O debate havido no âmbito dos vários meios de imprensa é o modelo ideal da pseudodivergência, que funciona mesmo se protagonizado por debatedores bem intencionados e não necessariamente assalariados para dizerem isso ou aquilo especificamente. É possível lançar a pseudodivergência que nada diz, nada informa e tudo confunde com pessoas mais ou menos livres das amarras da compra e venda puras.

 Há lugares a serem explorados para a condução da pseudodivergência com bons ares de imparcialidade teórica e política. Um deles é o consenso, tratado implicita e explicitamente como objetivo sempre desejável, embora não se pare para pensar porque o consenso seria algo invariavelmente vantajoso.

Esse arranjo disfarça uma convergência enorme de interesses na reprodução espetacular e conduz a uma aparente polifonia, quando, na verdade, tudo obedece a uma lógica que já não usa nem se refere a valores de uso. A lógica é integralmente de troca e de discursos que se articulam às trocas sucessivas, sem, contudo, nada de substancial dizerem.

Essa aceleração na dinâmica do poder real não se deve tanto ao aperfeiçoamento tecnológico recente. Do rádio em diante, suas condições técnicas suficientes estavam dadas. Bastava, para o triunfo absoluto, que se chegasse ao ponto de inexistência de memória da situação precedente, ou seja, de pertencerem todos desde nascidos ao tempo das tecnologias de comunicações usadas pelo espetacular.

 Assim, o poder determinou em que termos se pode falar dele, forneceu as objeções que ele gosta de receber, forneceu os meios das pessoas serem aparentemente contrários, apropriou-se da contracultura como mercadoria. O poder, não é demasiado destacar, não se confunde com os governos, embora com eles geralmente esteja em franco conúbio.

A essência do poder é não ser percebido; quando consegue atingir este estágio, é pleno. O dinheiro reunido aos meios de comunicação levou a um poder quase pleno, por todo o mundo. Determinar o que é assunto e contra assunto permite-lhe atuar livre de críticas efetivas e mais, reduzir as hipóteses de deserções efetivas do modelo.

A deserção efetiva implica a percepção do caráter fetichista da mercadoria e isto é cada vez mais difícil e consequentemente mais raro, o que leva a crer na longevidade deste modelo espetacular, permeado aqui e acolá de crises que ele mesmo gera, como reservas de energia para sua constante reprodução.

A divergência seria rejeição ao consumo – à falta de termo mais adequado – de mercadorias e de informações; a rejeição à terminologia fornecida pela imprensa; aos seus loci discursivos pseudohumorísticos. Seria necessário perceber que a divergência não acontece pelas regras de quem as forneceu, exceto se ele assim o quiser e neste caso, interessa ao espetáculo e não passa de pseudodivergência.

Discurso jurídico e farsa.

Recentemente, falou-se da descoberta de uma carta manuscrita de Adolf Eichmann para o presidente de Israel na época de seu processo de eliminação física. Por meio desta missiva, Eichmann teria pedido para ser poupado do assassinato. Não sei se isto é verídico e não fui averiguar a tal notícia.

Não sou dos que nutrem especiais admiração ou repulsa por Eichmann. Se fosse dos primeiros, certamente o nível de admiração cairia, na medida em que o pedido de clemência é a tolice suprema de um desesperado. Compreende-se que não se queira morrer na forma vil que é a forca, mas pedir aos executores da vingança que a não executem é patético, além de inútil.

Se fosse dos segundos, certamente a repulsa aumentaria, porque sempre se compreende um pedido de clemência como algo necessariamente antecedido de uma confissão de culpa implícita. É como se o fulano dissesse que fez o que fez, mas por razões que lhe fugiam, por cumprir ordens e coisas deste gênero.

O pedido de clemência, caso tenha havido, é bastante revelador. Tanto da ingenuidade do pedidor, quanto da total ausência de juridicidade no processo em que se decretou sua execução após o sequestro. Ou, talvez ainda mais, revelador do correto significado da judicialidade.

 Nossa cultura judaico-cristã sente necessidade imensa de disfarçar as vinganças e o exercício do poder. Eles têm de ser confundidos num processo que os legitime formalmente. Para isso serve o direito, essa forma cambiante de conferir aparências civilizadas às coisas mais brutais. E serve para tanto mesmo expondo suas contradições enormes. Por exemplo, em termos criminais, não se admitem crimes nem penas sem leis anteriores que os definam.

Todavia, os famosos tribunais de exceção desprezam absolutamente este princípio e o da territorialidade. Realmente, a extraterritorialidade é algo aberrante em termos de justiça criminal, porque o suposto criminoso nunca agiu a pensar que estivesse submetido a uma nebulosa jurisdição universal baseada numa lei que ainda não existia.

O que há – e é profundamente humano – é a vingança. Mas, como em relação a quase tudo muito humano, a cultura judaico-cristã tem vergonha da vingança e precisa chamar-lhe julgamento.

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