Escuta com atenção e, se preferires, de olhos fechados. Repara a complexidade das harmonias e a doçura delas. Repara a poesia, simples, saudosa – claro – direta, simples, imagética.
Autor: Andrei Barros Correia (Page 54 of 126)
Bom samba paulista de botequim, com o timbre fantástico de Elis e, claro, muitos erros de português…
No final, Saudosa Maloca, em interpretação com alma, de Elis.
Alguém ache feio porque tá repleto de erros de português…
O Ministério da Educação recomendou um livro chamado Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, para os ensinos fundamental e médio. A partir de então, uma chuva de ataques ao Ministério iniciou-se. Estrategicamente, trata-se de atacar o governo da Presidente Dilma. Os autores do ataque, além de inspiração política oposicionista, movem-se por uma extrema arrogância.
Movem-se, também, por ignorância e má-fé, assim misturadas, a pior conjunção de móveis que pode estar por trás de posturas humanas. Ignorância porque significativa parte dos atacantes reserva-se uma avaliação acima da realidade e, má-fé porque sabem ou têm condições de saber, que as acusações não têm fundamentos.
Dizem que o livro estimula falar incorretamente, em resumo. Não é isso que o livro faz, ele distingue uma obviedade acaciana: fala-se de uma maneira e escreve-se de outra. Aponta uma realidade indiscutível – presente do dia-a-dia de todos os arrogantes insatisfeitos – que se encontra em todas as línguas no mundo. Não se fala como escreve-se, o que nunca representou ameaça alguma à norma culta.
O tal livro faz algo que é detestável para alguns pretensos intelectuais brasileiros, ele desvela a realidade e não a nega. Ele não propõe, em qualquer escassa linha, a supressão da norma culta na escrita, apenas aceita que as comunicações informais, faladas, podem dar-se sem seguirem estritamente as regras gramaticais. Inclusive, o livro alinha exemplos de falas informais e propõe suas transcrições para a forma gramaticalmente correta.
Esta óbvio que o livro não propõe que se fale errado. Não é demais apontar novamente que ele aceita a realidade, sem propor o juízo de valor dicotômico bom e mau, tomando a norma culta como parâmetro, o que não passa de uma profunda dominação. Todavia, o livro tornou-se táubua de tiro ao álvaro, de tanto levar frechada…
Passei a semana lendo tolices maiores e menores sobre o assunto. Todas tinham em comum um mal disfarçado oportunismo político, porque a defesa da língua era, no fundo, o que menos importava para essas vestais defensoras da última flôr do Lácio. O ápice da arrogância parece ter sido atingido por Ruy Castro, em artigo publicado na Folha de São Paulo. Ele põe-se no lugar de grande escritor, ao fazer um apanhado deles que reproduziram falas coloquiais em suas obras ficcionais. A psicologia deve explicar essa mania de citações, que revela muito do desejo do citador de ser um dos citáveis.
Ler a continuação da bobagem na folha de província Diário de Pernambuco – das melhores que há – no domingo pela manhã, desafiou minha paciência. Um texto de um sujeito que se auto qualifica economista ecológico serve-lhe para o despudor de alinhar onde morou e por onde já viajou, essa forma já clássica de sublinhar a origem de classe, como muleta para apresentar exemplos de cultivo pela fala correta. Claro que o autor não perde a oportunidade de afirmar a excelência da educação que teve e sua poliglótica formação!
Não acredito que nem mesmo a economia ecológica seja feita, nos colóquios de economistas ecológicos – ou desses com os ignorantes – em falas fielmente corretas, todas elas perfeitas em flexões verbais, todas as concordâncias em rigor com a gramática, sem corrupções ou plebeísmos, sem um mísero você, essa corrução tão antiga como arraigada de vossa mercê.
O texto de hoje, que não é uma fala falada, evidentemente, está cheio de erros gramaticais, embora sejam irrelevantes: regências e virgulas, umas erradas e outras ausentes. O caso das regências é interessantíssimo, porque os equívocos quanto a elas devem-se basicamente aos hábitos da língua falada, ou seja, explicam-se pela linguística!
Interessante mesmo é uma premissa que o autor adota. Ele diz que em todas as línguas que conhece – e são muitas – nunca ouviu alguém que falasse diferente da norma culta. Isso é mais que uma tolice; deve ser, ou uma inverdade, ou uma confissão de ter falado muito pouco com estrangeiros. Bem, talvez o autor tenha passeado pelo mundo a conversar com pessoas que traziam suas falas previamente escritas!
É óbvio que se devem educar as massas, leva-las a conhecerem as normas cultas, porque desconhece-las é fator de exclusão. Mas, também é óbvio o quanto há de patético no afirmar que o tal livro estimula o erro e no afirmar que é desejável que se fale como se escreve, porque há vastos grupos que assim fazem…
É fantástico, estão todos perdidos e os socialistas mais.
A direita falangista não está preocupada em compreender coisa alguma e, ademais, as gentes que estão na rua e na Porta do Sol não são seu público.
Eles do PP devem somente lamentar não poderem mandar a polícia descer o pau no lombo de todo mundo e manda-los para as casa, restaurar a ordem – como gostam dessa palavra! Calçadas livres para senhorinhas passearem até ao Retiro…
O PSOE percebeu que é o grande perdedor nessa estória. Sim, porque as gentes que agora protestam poderiam, teoricamente, sentir-se representadas pelos socialistas, se estes não se tivessem convertido simplesmente em empregados de bancos, apenas mais simpáticos e menos violentos que os falangistas.
Um sujeito, um advogado, pediu o impedimento do ministro do supremo tribunal federal Gilmar Mendes. Fê-lo por meio de um requerimento ao Senado da República, órgão do poder legislativo competente para processar e eventualmente determinar o afastamento requerido. Um ministro do tribunal constitucional – o supremo tribunal federal – é agente político de um órgão de soberania e, por isso, é processado politicamente no Senado.
Esse processo que o advogado quer abrir não é jurisdicional, é político, deve-se apontar claramente. Dirige-se contra um agente político – porque atua em função que pode gerar obrigações para todos, equivalente à feitura de leis – e deve ser apreciado pelo órgão legislativo federal de competências mais elevadas. Ao Senado Federal compete também, por exemplo, julgar o pedido de afastamento do Presidente da República, por responsabilidade política.
Abstraindo-se da procedência do pedido – e acho que o ministro não tem mesmo condições de sê-lo – o pedido é um exemplo de falta de clareza e confusão. Defeitos que se devem, entre várias razões possíveis, à confusão entre político e jurídico e à submissão aos modismos corporativos. Defeitos, e isso é engraçado, que se encontram nos livros do ministro alvo do pedido.
Poucas pessoas escrevem tão mal, no Brasil, quanto os advogados. Por um lado, isso deve-se à quantidade deles e, por outro, às prisões da atividade. A maioria das causas judiciais gira à volta de questões já acertadas, ou seja, de coisas que não demandam boas explicações. Qualquer arrazoado, formatado no padrão dominante, citando e transcrevendo meia dúzia de decisões de tribunais e algumas linhas de leis, serve.
Além da previsibilidade do conteúdo, há os vícios de linguagem profissional. Vícios que enfeiam o texto do advogado, do juiz e do promotor e aumentam a chatice que ordinariamente espera-se de algo do gênero. As palavras e locuções que se repetem sem se saber o que são não podem ser desculpadas como se se tratasse de linguagem falada coloquial.
Elas pretendem-se coisas cultas, alinhadas segundo a norma culta. Portanto, devem ser julgadas com um rigor proporcional à pretensão que carregam. O advogado do caso deve ter toda razão contra o ministro, mas não conseguiu deixar de ser advogado. Claro que isso não importa, porque o pedido será entregado a outros advogados, assessores de Senadores, que nada verão de estranho ou feio.
Bem, aqui não se trata de jurídico, mas de clareza e modismos. O fulano inicia seu longo pedido dizendo que o faz em face de Gilmar Mendes. Não é isso que ele faz ou, melhor dizendo, ele não pede coisa alguma em face de quem se pede a condenação. Ele pede algo contra Gilmar Mendes. Não é feio dizer-se contra, mas tornou-se raro!
Em face de alguma coisa estamos como em frente a um espelho, ou a outra pessoa. Contra alguém, estamos quando pedimos sua condenação, o que é o caso dos processos, sejam judiciais, sejam políticos. As coisas que se pedem em processos, judiciais ou políticos, com autores e réus, pedem-se contra alguém e isso é óbvio. Bem, isso é apenas um exemplo, apanhado entre tantos iguais.
O jargão domina toda a comunicação de alguma corporação. Ela especializa-se em auferir poder com o uso da terminologia própria, ainda que essa terminologia seja não-significante ou ambígua, ou imprecisa. A corporação acredita nisso como quem não vê qualquer coisa fora dela e cai na armadilha da imprecisão, quando a precisão e o uso de linguagem simples e coloquial seriam desejáveis.
Como o jogo é jogado formalmente, pelo menos até antes do vida-ou-morte, a imprecisão e o modismo serão usados para evitar-se a purga de quem merecia tê-la. Ou seja, o sujeito pede algo plausível, a quem faria igualmente, e tem o pedido negado porque na hora de resolver-se a questão entra em cena um fulano que maneja a lógica formal segundo os padrões estabelecidos e conhecidos.
Não se trata, aqui, de imputar a vício, erro de conjunção ou erro ortográfico um papel decisivo nas relações pessoais e sociais. Trata-se de apontar que são sintomas pontuais de falta de clareza e sucumbência a modismos absorvidos acriticamente. Ora, se entramos a escrever obscuramente, provavelmente será por uma de duas razões: ou pensamos também obscuramente, e assim a escrita é o reflexo da mente do escritor; ou há um divórcio entre o que pensamos e expomos, por descuido ou ignorância.
É interessante notar a possibilidade do erro voluntário, a que chamei descuido, no parágrafo acima. Essa modalidade, quando o falador ou escritor tem conhecimentos formais, é uma renúncia às potencialidades da língua. É como trazer para o campo da coloquialidade informal o que está no da formalidade. Ora, a lingua escrita submete-se a normatividade que não aprisiona tanto a falada porque a primeira tem que ter mais uniformidade, ou seja, tem que ser um código mais padronizado senão não se o entende.
A língua falada tem recursos para minimizar e até afastar as ambiguidades, imprecisões, repetições, flexões verbais erradas. O principal recurso é a presença física do interlocutor, com visão e audição. Assim, ele perceberá as variações de entonações da fala, a a expressão corporal e terá maior ou menor complacência com a informalidade e fará mais esforços para compreender, na medida de sua proximidade, de sua amizade com o falante.
A língua falada conta com importante elemento de coesão significante que a escrita não tem: a cena em que a conversa ocorre. A cena, a circunstância física em que se fala, já traz consigo grande quantidade de significação e indica aos falantes o nível de informalidade que será possível para um dado nível de compreensão. A circunstância – em seus aspectos físico e temporal – delimita bastante o que se pode dizer, pois há coisas que somente se dizem em tais ou quais circunstâncias.
Assim, uma série de lateralidades apoia a linguagem informal e dá suporte a que seja possível, mesmo em um nível de precisão relativamente baixo, se tomarmos as potencialidades. Isso não acontece com a escrita, em geral. Todavia, acontece com a escrita destinada ao círculo corporativo, hipótese em que há um pouco da circunstanciação encontrada na língua falada. Sim, porque há uma pré-definição aproximada do grupo destinatário do texto, o que já põe em marcha o recurso à muleta das pressuposições e das cumplicidades corporativas.
E aqui, como uma coisa puxa outra, percebe-se no avanço do obscurantismo, do uso do jargão, na perda de clareza, uma corporativização crescente da sociedade. Sim, porque os discursos estruturam-se como se destinados ao grupo de pertencimento do falante, apenas. Claro que muitas vezes o discurso é pura e simplesmente corporativo e fechado em torno a certo número de pressuposições e locuções do gosto da corporação.
Porém, observa-se que muitas vezes a prisão e as limitações do discurso fechado não são desejadas pelo falante que, apenas, não consegue dizer as coisas de outra forma, porque circunscrito à parcialidade da corporação, pensa e diz tudo de forma circunscrita. Tomemos o caso do advogado que pediu ao Senado o afastamento do ministro Mendes. Ele não precisava fazer um discurso de contornos jurídicos, ele não estava necessariamente aprisionado por formas pré-estabelecidas porque o pedido é político.
Claro que era necessário uma exposição de fatos e das relações entre eles, ou seja, uma narração. Era preciso demonstrar a indignidade para a função pública, o que não passava por falar como se fala a um juiz, com todos os fetichismos latinistas e locuções da moda jurídica. A ocasião do discurso aberto foi perdida, pois o falante não saiu de sua caverna discursiva, embora muito provavelmente quisesse sair, se soubesse que está dentro. Convinha ao pedidor que seu discurso fosse aberto, porque um pedido político deve ser compreendido pelo maior número possível.
La Junta Electoral de Madrid cree que la petición del voto responsable a la que se refieren los convocantes “puede afectar a la campaña electoral y a la libertad del derecho de los ciudadanos al ejercicio del voto”. Assim lê-se no El Pais.
É fantástico quando alguma resistência é desconcertante a ponto de não ser absolutamente compreendida e ser alvo de objeção totalmente incabível.
Os políticos profissionais castelhanos simplesmente não entendem o que está havendo. Não podem perceber que isso é contra todos eles, mas é, ao mesmo tempo pacífico.
Eles, os políticos, não têm a ocasião de convocar a repressão jurídica ou policial, simplesmente porque não há violência.
Claro, tentam a repressão jurídica e invocam razões que chegam a soar ridículas e pueris. Seria ótimo que isso se espalhasse pela Europa.
Os Estados Unidos da América inverteram uma premissa fundamental: ao invés de financiarem-se a partir da tributação, fazem-no tomando empréstimos às grandes corporações e aos cidadãos mais ricos e a credores soberanos, ou seja, a outros países. Para as classes dominantes, é uma maravilha!
Em setembro de 2010, segundo dados da Secretaria do Tesouro Norte-Americano, 42% da estupidamente grande dívida pública de 14 trilhões de dólares era frente a grandes corporações, fundos de pensão dos militares e dos civis e cidadãos riquíssimos. Para esses, emprestar dinheiro ao governo é muito melhor que pagar impostos!
Os restantes 58% da imensa dívida pública são tomados à China, Japão, aos exportadores de petróleo, Reino Unido e ao Brasil.
Sustenta-se uma situação tal? Dificilmente! Apenas mantém-se porque o Governo dos EUA tem a maior garantia que a economia e a realidade permitem: muitas bombas nucleares.
Um episódio vulgar: a equipe do Santa Cruz, de Recife, ganha o campeonato estadual de futebol, superando, nas finais, a equipe do Sport. Na verdade, um episódio vulgaríssimo, comuníssimo, principalmente considerando-se que não estão em jogo questões de nacionalidade ou de antagonismo regional, porque as duas equipes são da mesma cidade.
Mas, o futebol é das áreas mais férteis para a percepção das dinâmicas sociais. A formação de grupos de adeptos dessa ou daquela equipe atende a certas condições identificáveis, nas suas origens. Depois, a coisa marcha com inércia própria e distancia-se um pouco das condições iniciais. No caso dessas duas agremiações, sabe-se que a primeira teve origens modestas, nas camadas mais baixas da sociedade do Recife. E que a segunda forjou-se nas classes médias baixas.
Hoje, esse corte sócio-econômico não tem quase sentido, porque os números de adeptos são muito grandes e a permeabilidade social também. Convém a qualquer equipe ter o maior número possível de seguidores – preferencialmente cegos – e todas as classes sociais tornam-se alvos, consequentemente. Além disso, as direções das equipes nada têm a ver com as composições de suas torcidas.
A identificação ou a devoção de uma pessoa a uma equipe de futebol é algo estranhíssimo, se virmos a coisa em termos abstratos. Assim, parece-se com a diferença entre o gostar-se do azul ou do amarelo. Convém ressaltar o que está no primeiro parágrafo, para colocar o caso da representação de nacionalidade ou regionalismo em campo diverso.
O Barcelona, por exemplo, é o caso evidente de uma identificação que transcende o futebol, pois é o símbolo maior de uma nacionalidade. Aqui, a coisa deve ser percebida por outro ponto de vista e faz mais sentido ou, pelo menos, é mais perceptível.
Nos casos de devoções a equipes que significam apenas uma reunião em torno a um símbolo teoricamente igual a outros, a inclinação deve ser decomposta em vários fatores. Há os condicionantes iniciais, ou seja, uma ligação de solidariedade inicial que, todavia, passado o tempo e aumentado o grupo, passa a ter relevância discreta.
Há o êxito, fator importantíssimo. Uma equipe de muitos êxitos tende a reunir número maior de adeptos. Aqui, entra em cena algo demasiado humano, o querer ter êxito por seguir um êxito alheio. É previsível querer participar de uma idéia de vitória, que é uma idéia de superioridade, evidentemente. Isso é próprio dos esportes coletivos, pois a equipe permite a extensão da noção de equipe aos seguidores.
As identidades futebolísticas tendem ao fanatismo em forma pura, quer dizer, ao antagonismo baseado em indiferenças reais. Sim, porque não se antagonizam idéias sobre a beleza do desempenho do esporte, mas somente diferenças entre preferir o verde ao vermelho.
Alguns séquitos de adeptos distinguem-se de outros pela intensidade da cegueira de suas devoções. Parece-me algo aparentado ao farisaísmo, que reúne a reivindicação da pureza, a mania de perseguição, a certeza da superioridade e a incapacidade de ver as coisas claramente e segundo as proporções existentes. Tais inclinações conduzem o seguidor a conflitos com o desenrolar dos fatos e levam-no a uma necessidade de simulação constante.
O caso específico dos torcedores do Sport de Recife é de estudar-se. Não se limita a fanatismo; essa é uma palavra insuficiente para apreender o comportamento, embora seja uma das chaves. Trata-se de uma crença quase religiosa que leva o crente a não aceitar uma realidade e a precisar justificar-se justificando algo que não depende dele.
Se esta equipe perde um jogo, será necessário encontrar motivos para tanto, excludentes da mais provável hipótese, que é a falta de competência técnica em um dado momento. Engraçado é que o adepto precisa justificar aquilo que ele não fez, porque ele acha-se presente naquilo em que não participa, embora creia que sim.
A psicologia do adepto de tal equipe revela que ele acredita no símbolo de uma superioridade, que só pode ser afastada por conspirações tão improváveis como intrincadas. Assim, o juiz terá roubado, outras equipes terão trocado subornos cuja lógica é enigmática, o tempo terá conspirado contra, as radiações gama terão atingido os futebolistas e outras coisas desse gênero. Nunca terá sido apenas um caso de futebol!
O mais dramático que deriva dessa postura é a incapacidade de ver a equipe perder. Entra em cena uma coisa fantástica, então: a simulação da indiferença e do bom humor que se dá ares de superioridade complacente, embora roa-se internamente de incompreensão e fúria assassina. O adepto em questão quer reservar-se o campo da piada autoconcedida, aquela que ele julga cabível para si, aquela auto-complacente.
Vendem-se, por aqui, uns filetes de porco interessantes. Sim, interessantes porque são relativamente grandes e permitem imaginar que se criam porcos imensos, a julgar pelos meus conhecimentos de anatomia porcina. Os filetes têm vantagens e desvantagens, como quase tudo. Eles são muito macios e não há como fazê-los ficarem duros. São facílimos de se fazerem, sejam fritos, sejam guisados – estufados – sejam grelhados.
Por outro lado, não é uma peça muito saborosa, como são a perna e o lombo. Acho, mas não tenho certeza, que os rojões minhotos são feitos da perna do porco, de onde vem a carne mais saborosa que existe, como bem apontavam os astecas. Faço aqui um pequeno parêntesis para lembrar essa maravilhosa constatação dos mexicanos astecas, a propósito da carne do porco, que não conheciam e passaram a apreciar depois que os espanhóis introduziram-na no México.
Eles diziam que a única coisa boa que os espanhóis haviam trazido era o porco que, depois da carne humana, era a melhor que havia! Hoje, uma tentativa de comprová-lo cientificamente seria crime, tempos terríveis esses presentes…
Bem, tomei um filete de porco de aproximadamente um quilo. Cortei-o em escalopes, ou seja, transversalmente, e depois dividi os escalopes ao meio: eis os rojões. Em uma assadeira, pus os rojões com bastante alho espremido, folhas de louro, sal, pimenta do reino e, claro, vinho. O porquinho passa um dia inteiro a banhar-se nessa vinha d´alhos.
Além da inovação do corte do porco, atrevi-me a outra: pus umas rodelas de linguiça fumada, também a descansar no banho de vinho e alhos e sal e pimentas e louro.
Hoje, pelas onze e meia, espremi mais alho – essa liliácea nunca é demais na cozinha – em uma caçarola com azeite e coloquei no fogo alto. Três minutinhos depois, os rojões e as rodelas de linguiça. O caldo da vinha reserva-se, para entrar depois.
Passados uns dez minutos, virando-se os rojões, acrescentei o caldo de vinho, sangue e alho, baixei o fogo, tampei a caçarola e esperei uns vinte minutos. Pronto, estava no ponto a carne dos deuses.
Entretenho-me a cortar verduras. É uma coisa repetitiva e que requer atenção, é como rezar um mantra indiano. Então, tomei dois maços pequenos de cebolinhas e fatiei-os em rodelinhas. Cebolas, cortei-as em pedaços médios, quase simétricos. Tomates foram cortados com uma diligência monástica, quase todos do mesmo tamanho. Coentro – essa dádiva cheirosa – lava-se e corta-se apressadamente.
Tudo isso foi colocado em uma peneira, lavado em água corrente e posto em uma panela, com vinagre branco. Os feijões, simples feijões brancos, grandes, cozinhados em água e sal.
Simplesmente, misturam-se os feijões escorridos com a cebola, a cebolinha, o tomate e o coentro, em uma panela média. Põe-se um pouco de vinagre e de azeite e está pronta a salada!
Há uma semana o tempo está chuvoso e estamos meio próximos ao inverno, o que significa temperaturas razoáveis, agradáveis 22º, coisa rara nesta terra que é a fornalha do mundo. Então, podemos dedicarmos-nos à extravagância das carnes – ainda que matizadas pela suavidade da salada – e a um honesto vinhozinho do Dão.
Honesto, sim, e até barato, mesmo em reais. Um Dão de Touriga Nacional e Tinta-Roriz, razoavelmente encorpado, razoavelmente persistente e pouco alcoólico. Depois, bem, depois foi escrever essas bobagens e dar um cochilo!