Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 31 of 126)

Crença e causalidade. Religiosidade e ciência.

Não há, no fundo, incompatibilidades entre os sistemas baseados nas crenças e aqueles baseados nas causalidades, exceto por que os primeiros evitam as armadilhas das regressões infinitas. Não há, porque ambos servem-se de crenças e de afirmaçõs de causalidades, em cadeias maiores ou menores.

O dito acima não se confunde com postular a compatibilidade absoluta entre religiosidades e ciência ou filosofia. São afirmações diferentes, pois pode haver sistemas filosóficos focados mais nas relações que nas causalidades e crenças.

É claro que penso na assertiva de Hume, agora: as relações são exteriores aos seus termos. Os termos, aqui, são quanto se capta sensorialmente, quanto de percebe de fora como informação. Mas, são também as causas. O todo, que seria uma relação, muito provavelmente está para fora, ou para além do simples conjunto dos termos em comparação, ou seja em dinâmica relação.

Crença e desejo estão por todos os lados, enervados, nas postulações religiosas e nas científicas, a condicionarem as causalidades enunciadas em cada segmento componente de uma estrutura teórica.

Os triviais – e repetidos – exemplos são os melhores. A indução clássica de que amanhã haverá uma aurora decorre de hoje a termos visto e ontem também e antes de ontem e, aparentemente, desde sempre. Ora, o que há é a crença na aurora de amanha, porque a de hoje não é, de maneira alguma, um antecedente causal lógico válido para assumirmos que ele haverá amanhã.

O nascer do sol de amanhã, quando e se ele ocorrer, será o do hoje de amanhã, nunca uma decorrência causal de ter ocorrido antes. Ou seja, a relação entre as auroras e suas sucessões estão muito além do aprisionamento dela a partir de seus termos isolados e de alguma aparente causalidade.

Visto por outro ponto, a crença está antes e depois da relação ou do postulado. Antes como axioma e depois como resultado efetivamente produzido e projetado, ou seja, não espontânea resultante de um método científico. Talvez fosse mais adequado nomear a crença ao depois como desejo, mas isso afastaria a percepção de circularidade que permeia grande parte dos raciocínios e enunciações.

Os modelos causais tendem a serem circulares na medida em que os pressupostos confundem-se com as conclusões ou finalidade, se assim se preferir chamar. O sistema aristotélico das causalidades inicial, formal, material e final é, assim, nitidamente autoreferente, circular e tendente ao sofisma de indução. Essa mesma estrutura básica ampara as religiosidades de matriz grega, persa e judaica.

Se as relações estão fora de seus termos, mais que a conclusão empirista clássica da redução ao dado, temos relações autônomas, sucessivas horizontalmente ou mesmo paralelas. Dissociadas, portanto, da clássica lógica da imputação, que é, afinal, uma lógica da formação do juízo. Ora, uma lógica da construção do juízo não se faz sem altas doses de crença.

Assim, talvez seja válido afirmar que a ciência e a religiosidade operam segundo o mesmo modelo, com vantagens para a religiosidade, que não precisa fazer esforços para disfarçar a crença.

A má educação.

É cansativo e redundante falar em má educaçã0, pois leva, também, a confusões, equívocos e a mal entendidos. As pessoas pensam que se fala de etiqueta ou de formalismos, apenas, quando se trata de muito mais que isso. Mais que isso, mas também sobre isso.

As convenções sobre as formas de se estar e de se portar em convívio têm razão de ser. Não teriam, evidentemente, se todos estivéssemos sempre sós e se fôssemos todos destituídos de qualquer rigor connosco, mesmo estando sozinhos.

São regras – como quase todas as outras – que só visam a que não nos matemos ou agridamos tão constantemente que a convivência torne-se em algo animal entre animais que se dizem e se prontificam a reputar-se racionais.

A convivência entre os animais não humanos não precisa de regras extra-biológicas. Pode-se dizer que há modelos sociais em certas espécies e, tudo bem, elas existem. Todavia, são regras não criadas por algum consenso social racional. São regras biológicas no sentido de não derivarem de posições consensuais aparentemente racionais e, mais, conscientes.

As pessoas humanas são as páginas em branco que podem ou não receber algum escrito bom. Geralmente, ou permanecem em branco, ou veiculam um escrito ruim. Mas, fazem questão de afirmar sua realização, mesmo que ela seja uma mísera fração da potencialidade da página em branco.

A má educação – quem aposta nela sempre quererá negar o que se dirá adiante – é mais resultado da ignorância que da vontade. Por mais raiva e insatisfação que ela gere em quem a vê e sofre seus efeitos, convém lembrar que ela é algo menos voluntário que estúpido.

Uma estupidez bovina – para usar a expressão consagrada que ofende os bois – e repetida convictamente, afirmativamente, sem possibilidades de ser diferentemente. O sujeito que agride o outro com algum comportamento mal educado, contrário à minimização de atritos no convívio, geralmente fa-lo só por acreditar que não há outra formar de comportar-se.

O fulano mal educado e os fulanos todos mal educados não significam que haja uma conspiração do mundo contra quem aja preocupado em não atingir e em não impingir dificuldades aos outros.  Significa apenas que o fulano não conhece regra alguma. Não no sentido de conhecê-las e desprezá-las, mas no de não as conhecer e não ver sentido nelas, ainda que as entreveja.

Vou a um mercado, de carro, entro no parque de estacionamento, e tem um imbecil com o carro parado extamente na faixa para pedestres e no local em que se faz a curva… A coisa é absurda, pois o carro está precisamente onde não podia estar. Ali, ele impedia qualquer outro de fazer a curva, de seguir adiante para qualquer direção.

Mas, esse imbecil estava com as lâmpadas de alerta, aquelas amarelas que piscam aos mesmo tempo, dos dois lados, acessas. Ou seja, ele reputava-se em situação peculiar, fora do comum; em situação que merecia ser anunciada como extraordinária pelo uso das lâmpadas de picar amarelas.

O fora do comum, aqui, é só o detalhe e a armadilha psíquica. O parque de estacionamento estava vazio! Quer dizer que o fulano podia ter estacionado o carro sem quaisquer dificuldades, em uma vaga próxima à entrada do mercado. Quer dizer mais que isso.

Seria tolo e superficial dizer que o fulano é um criminoso com idéias pré-concebidas  e que sabia perfeitamente o que fazia. Ele sabia perfeitamente o que fazia dentro do pouco ou nada do que sabe ou acha razoável como normas de convivência.

Ele faz o maior absurdo, gera uma imensa fila atrás de si, e permanece na mesma atitude, porque ele não tem a percepção de que a conduta seja proibida ou lesiva aos outros. É algo normal, algo normal e somente passível de uma parcial desculpa ou aviso pelas lãmpadas piscantes.  Uma coisa que ele mesmo aceitaria se fosse ele a esperar por conta do mesmo absurdo; aceitaria o absurdo por conta da lógica da conivência e da ignorância.

O vale-tudo brasileiro é, no final das contas, muito mais de ignorância que de má-fé deliberada. Não significa que as punições sejam inúteis, mas que a educação é mais útil. Significa que, entre nós, o axioma jurídico de que ninguém se desculpa de descumprir a lei por desconhecê-la é uma falácia.

A lei é das muitas coisas desconhecidas. Há delas mais importantes; o desconhecimento é geral e tendente ao vale-tudo gebneralizado.

Israel: ainda há gente sensata.

Israel sob constante e perigosa ameaça!

A distribuição da sensatez pelos grandes grupos socio-profissionais é relativamente equânime. Não é certo que haja muitos mais imbecis neste ou naquele grupo – clérigos, burocratas, militares, por exemplo – mas é certo que os papéis de certos grupos em determinado momento fazem-nos marcharem sob o ímpeto corporativo, o que leva a imensas dificuldades de percepção das diferenças individuais.

Com relação a Israel, sempre é interessante observar os militares, porque é um Estado profundamente dependente deste poder; sem ele simplesmente não existiria. Os militares israelenses costumam ser profundamente objetivos e dispostos para o combate. A política, em Israel, é basicamente um subproduto do belicismo cotidiano e a legitimidade política confunde-se com o legado concreto de cada um no envolvimento bélico.

Pois bem, Israel, por seu governo, cultiva uma imensa vontade de atacar o Irã. Dizem que os persas constroem armas nucleares e isso será uma ameaça à existência do país. Não é uma afirmação destituída de sentido, se abstrairmos de muitas circunstâncias, principalmente a história e o tempo passado. Assim, pode haver sedução nessa propaganda da ameaça, até porque o estar sempre ameaçado é o centro de todo discurso sionista, ainda quando ameaça alguma existe.

O Irã nunca atacou país algum, nos últimos séculos; a guerra que manteve com o Iraque foi calculadamente iniciada pelo país babilônico, que tinha um presidente amicíssimo dos EUA, da Inglaterra e da França: Sadan Hussein.

O Irã não está em condições de desenvolver armas nucleraes em período inferior a dez anos, o que todo mundo sabe. E não está disposto a abrir mão de sua pesquisa com finalidade de geração de energia, o que é profundamente inteligente. Claro que tentarão desenvolver armas atômicas, o que é mais que inteligente, é necessário porque Israel tem 250 delas e está ansioso por utiliza-las.

Acontece que um ataque israelense contra o Irã não tem chaces de êxito sem ajuda dos EUA, principalmente em termos de apoio aéreo e de infantaria, se a coisa realmente degenerar. E acontece que os EUA entrariam no pior negócio de sua história, se se envolvessem a fundo em tal guerra, pois eles não conseguiriam invadir o Irã com um assalto de infantaria.

Na verdade, essa guerra tão ansiada pelo governo israelense e por alguns setores do inner circle em Washignton só traria benefícios para banqueiros e produtores de petróleo e, subsidiariamente, para fabricantes de armamentos. Essa gente é percentualmente insignificante, como parte do todo das populações, então fica evidente que a guerra interessa a qualquer coisa em torno de 01% das gentes.

Quando a desproporção é assim tão grande, é natural que figuras graduadas, militares de altas patentes que vivem de serem profissionais apenas, abram a boca para apontar a estupidez que se anuncia. E isso está acontecendo.

Yuval Diskin, ex-chefe do Shin Bet, o serviço de segurança do governo israelense, disse que Netanyahu e Barak mentem sobre a suposta ameaça iraniana e os ridicularizou a dizer que eles não são os messias, não são os salvadores de Israel, que se dirigem a um público tolo ou ignorante.

Meir Dagan, insuspeito ex-chefe do Mossad, herói nacional, tinha ido mais além quando apontou o plano de ataque ao Irã de estúpido, nada mais, nada menos!

Benny Gantz, atual chefe do estado maior do exército, parece ter perdido também a paciência com a estupidez e a irresponsabilidade do governo e disse não acreditar que o Irã vá produzir armas nucleares e acrescentou que o governo iraniano é racional.

Somam-se a essas declarações algumas de generais norte-americanos, que não devem trabalhar também para bancos e indústrias bélicas, ou seja, devem ser apenas militares, de que a guerra não faz qualquer sentido e esgotaria o potencial bélico norte-americo sem qualquer real necessidade.

Ou seja, quem não está a trabalhar para interesses outros e disfarçados, quem é apenas militar, pensa um pouco, já esteve em ação, sabe muito bem que a estória da ameaça iraniana é falsa e que a guerra seria péssima para todos, exceto, é claro, para aqueles que habitualmente ganham com o pior para todos.

Espanha: O rei João Carlos I fez tudo que não podia.

A estupidez é diretamente proporcional ao tamanho do alvo dos tiros…

 

O rei João Carlos costumava ter atitudes inteligentes e, pelo menos aparentemente, sensatas. Não se trata de fazer a hagiologia de Dom João Carlos e de o elevar pessoalmente à condição de salvador. Todavia, o homem desempenhava bem suas funções, tinha senso de oportunidade, mantinha as aparências, não chamava a atenção para si mais que o necessário.

Ele, sabe-se, atuou no episódio de 1981 por cálculo político, pois é provável que fosse favorável ao golpe conservador cuja ponta evidente foi a palhaçada de Tejero. Terá abortado o golpe porque foi avisado que não haveria complacência ou apoio francês, nem alemão, mas revelou-se inteligente, porque percebeu que não dava para ir adiante. Ou seja, o rei não agiu por amor a sólidas convicções democráticas – o que afinal seria um paradoxo num monarca – mas, pelo menos agiu da melhor forma. Um imbecil teria apoiado o golpe, mesmo depois de alertado que a coisa seria dramática para o país.

O rei fez lobi internacional a favor das emergentes empresas multinacionais espanholas, nas décadas de 1980 e 1990, todo o mundo sabe. Não é algo propriamente nobre, mas é comum a figura do monarca comerciante, travestido em monarca diplomata, figura mais simpática. De qualquer forma, por menos nobre, não se pode dizer que tenha sido ruim ou contrário aos interesses espanhóis.

Que o rei se tenha aproveitado dos malabarismos financeiros do seu genro ou mesmo acobertado-os, é algo que não se prova, por enquanto. Que tenha os famosos casos extraconjugais, é algo desimportante, realmente, mas a ele convém ser discreto.

Todavia, que vá caçar elefantes em Botsuana, às custas do Estado espanhol, ao tempo em que se mantém presidente de honra de uma associação de defesa dos animais e quando a Espanha está à beira do precipício econômico é profundamente estúpido.

O rei parece ter abandonado todo o rigor consigo próprio, este rigor que o fez manobrar sempre cautelosamente, sempre aparentar austeridade e simplicidade, que o fez calcular os riscos de apoiar o golpe de 1981. O abandono desse rigor calculista evidencia-se na fotografia acima. Ela é nada menos que absurda. O monarca, velho, posa à frente de um elefante abatido e arranjado cuidadosamente, escorado em uma árvore.

Um imenso cadáver amolecido dá bem a idéia de um vasto e manso alvo para tiros precisos ou imprecisos – pouco importa – desferidos por um prazer fácil de caçar um bicho em extinção… Um prazer estranho, esse de acertar um alvo grande, lento e manso, que não oferece qualquer resistência; um prazer, diria, anti-viril; um prazer assassino sem sangue.

O rei é – ou era – presidente de honra na Espanha da organização internacional WWF, que cuida de defender a natureza. Não é preciso deter-se na absurdidade de um defensor da natureza a matar animais em extinção, por puro deleite de abatê-los. E não se trata de um absurdo com efeitos conceituais, porque a nudez completa da hipocrisia do monarca tem, sim, efeitos práticos no campo político.

A monarquia borbônica beneficia-se de um axioma político cuidadosamente construído a partir de algumas eviências: que a Espanha é impossível sob a forma republicana. Realmente, as experiências republicanas levadas a cabo desde o último quarto do século XIX mostraram-se inviáveis e uma delas acabou-se numa violentíssima guerra civil.

O axioma, porém, socorre-se de pouco corte histórico e da crença na imutabilidade histórica e política, além de um sofisma cuidadosamente escondido. Assume-se que a união da Espanha só é possível sob a forma monárquica ou sob uma ditadura, o que talvez seja verdade, mas omite-se uma questão antecedente: porque a união da Espanha deve-se considerar algo desejável, a priori? Será necessariamente desejável para todos os que se consideram formalmente espanhóis?

Bem, assumido que é desejado por todos que a Espanha seja uma só e que isso somente é possível com a monarquia, chega-se à evidência de que a monarquia tem de estar à altura dessa consolidação de um desejo nacional amplo. E, se esse desejo existe, certamente ele significa um substrato de solidariedade nacional, o que tem contornos muito dramáticos em ambientes de crise e empobrecimento rápido. Aqui, pede-se do rei muito mais que a grandeza política do abortador de golpes políticos a cálculo frio; pede-se que participe da solidariedade.

Gastar dezenas de milhares de euros do Estado – que os obtém de toda a população – para ir matar elefantes na África, quando o povo empobrece, resultou efeitos previsíveis. Um partido já pede a abolição da monarquia e instalação da república. Nem é propriamente pouca gente, nem o pedido vem acompanhado da proposta de fragmentação da Espanha. Ou seja, é uma aspiração que tem sentido político e tende a obter aprovação popular.

A estúpida atitude do rei obriga o poder consolidado, que vai do PP ao PSOE, a grandes esforços retóricos para defendê-lo e a sacar do bolso, meio envergonhadamente, o argumento chantagista do perigo de desagregação. Assim, a discussão não tende a acalmar-se, senão a se reanimar, porque não é verdadeiro que todos os espanhóis queiram sê-lo.

Quando o governo impõe o saque generalizado da austeridade – que, além do mais, é a pior saída econômica – o rei vai caçar elefantes… Quando a tal austeridade implica tensões com os orçamentos das autonomias e ressuscita debates sobre as independências, o rei vai caçar elefantes… Precisamente quando é impossível esquecer-se que crise profunda e Espanha lembram guerra civil, o rei vai caçar elefantes…

A absurdidade da coisa revela-se claramente na impossibilidade de a perceber, nesse episódio, sob a perspectiva da clássica pergunta: para quem o rei trabalha? Ora, nesse episódio, fica a parecer que ele trabalha para si, apenas, e não considerou qualquer outra coisa, qualquer hipótese. Esse é o maior perigo.

Massas e retrocesso.

Não citarei Ortega y Gasset, Tarde, Debord e outros mais que me vêm à cabeça agora e a propósito dessa puerilidade que é a crença na impossibilidade de retrocessos. O que os autores disseram, evidentemente, é citado implicitamente; sempre é assim quando se escreve: citações se fazem a todo tempo.

As massas perdem-se no aprofundamento de suas massificações, o que não tem a ver, imediatamente, com suas situações financeiras, mas que terá sim, mais tarde ou cedo, implicações deste tipo. Quero fazer a advertência nunca demasiada de que massa não é sinônimo de pobre; é algo que tem com espírito de manada e com negação da história e da vida pública, basicamente.

Há também banqueiros, para recorrer ao exemplo máximo do pertencente ao máximo grupo dominante, que são massa, porque acreditam no que fazem, ou seja, no seu contributo à massificação, e não acreditam, por outro lado, que possam ser tragados nos processos enlouquecidos que sempre culminam com catarses de violência e desgregação.

O senso comum acha que o mundo é dado, que ele, como está aí, foi dado, surgido de um nada ou, no máximo, que é resultado da gestão de meia dúzia de fatores arranjados e rearranjados por alguns vistuosos que têm total controle da gestão. Acha e vive conforme acha, e grita aqui e acolá contra alguma bobagem o grito que lhe foi ensinado ou permitido.

Acreditar que tudo aí está porque assim deve ser é negar a história e, de certa forma, pensar a partir de um minúsculo sistema causal de curto alcance. Sisteminha que considera algumas combinações possíveis e serve-se de dados embaralhados e nebulosos de pouco tempo. É, diria, um quase não-pensar, pelo tanto de negativa de potencialidades que implica. Nem resulta em criatividade, por um lado, nem é uma postura mental ao menos conservadora.

O retrocesso sempre foi discutido. E, para que se o discuta, é preciso ter em mente alguma noção de avanço ou, pelo menos, aceitá-la. Porque, se avanços não existem, se é uma idéia inválida, a discussão perde todo o sentido. Paradoxalmente, a idéia de avanço é vastamente aceita e difundida ao tempo em que o retrocesso, ou é negado, ou simplesmente não cogitado.

Ora, se se aceita que a história avança nos seus aspectos sensíveis – melhora da qualidade de vida, aumento da disponibilidade de bens, aumento de paz social, redução de atritos sociais, redução de violências – é necessário admitir que o retrocesso é possível, e mais que está sempre à espreita. O avanço pressupõe qualquer base comparativa e as comparações podem evidenciar reduções qualitativas e quantitativas de algum dos termos comparados.

Admitir o avanço e o retrocesso significa reconhecer que a vida faz-se de atos sucessivos, encadeados não necessariamente segundo alguma norma de causalidade, mas encadeados e sucessivos. A vida coletiva, pelo menos, pode ser percebida assim, embora a vida pessoal, de si para si, puramente subjetiva, se essa dissociação absoluta for possível, atenda a outra lógica.

Ora, se os fatos da vida coletiva encadeiam-se e sucedem-se está claro que o processo pode andar em qualquer direção, mesmo que não ande para trás, evidentemente, no sentido de se desfazer e voltar no tempo. Não há retorno no tempo, por sedutora que a idéia possa ser, mas há retrocesso no estágio de união social dos grupos humanos, por perda de vitalidade e de referências históricas.

Hoje, especificamente, vive-se uma crise financeira na Europa que é um retrocesso evidente no processo de construção de sociedades ricas e relativamente pacíficas. Ele é percebido materialmente nos endividamentos, no aumento da criminalidade, na diminuição das liberdades, no terror de Estado, mas os sentidos captam os sintomas ao mesmo tempo em que a desrazão não percebe o fluxo do rio. A desrazão está boiando na superfície do rio, sem saber mesmo se é rio ou mar e se sopra vento…

Um dos aspectos mais evidentes da massificação é a negação do espaço público, ou seja, a negação da política. Tenho para mim que esse ponto específico foi objeto de ações deliberadas de certos grupos dominantes, que perceberam a boa acolhida que a idéia teria nas massas. Coaduna-se a negação da política com a crença no mundo dado e com a negação do retrocesso. A política tornou-se algo inútil e reservada aos mesmos profissionais de sempre porque, afinal, tudo é e será conforme tenha que ser.

Aliás, as coisas são e serão conforme uma classe de especialistas – iniciados seria possível, também – dispuser, em atenção a métodos de gestão previamente dados e condicionados. Ou seja, o pensamento massificado é dócil à noção de falta de opções, porque já aceitou a de inutilidade do âmbito político propriamente dito, aquele que age no espaço ideológico e histórico.

Assim, o retrocesso bate nas portas de a, b e c, que o sentem nitidamente mas não no percebem como coisa histórica porque foram apagados de qualquer possibilidade de pensar que há uma história. São pontos que não se relacionam senão para formar um pequeno plano. E sempre se relacionam os poucos pontos para formar vários pequenos planos, entrelaçados como em uma novela cujo enredo vai do nascer do dia ao pôs do sol.

O pensamento massificado não consegue, nem dissociar os pequenos planos superpostos do drama cotidiano, nem associar todos os pontos que sugerem um enorme plano. Fica-se pela metade, no rancor de conversa de café e no alívio de poder gritar um pouco e ver a novela à noite. O espetáculo da realidade leva o homem-massa espectador a saber-se platéia somente e a aspirar ao impossível protagonismo a partir de um grito desde a platéia.

É situação como se houvesse um consenso sobre a existência de um consenso. Uma imagem refletida em dois espelhos perfeitamente alinhados, em que qualquer desvio é impossível e um plano superpõe-se a outro. Está ruim porque está ruim… e pronto.

Penso, nesses termos, em algo do Brasil: a discussão da evidente invalidade da lei de auto-anistia passada pelo regime ditatorial, em 1979. Tecnicamente, a lei é de impossível coexistência com a constituição passada em 1988, mas os disfarces mantém-se. Historicamente e politicamente, porém, a coisa é mais dramática que juridicamente.

Nos âmbitos hitórico e político, a questão é quase totalmente obstada pelo pensamento massificado. Ele não somente levou o senso comum a perguntar-se para quê história – que ainda seria uma pergunta, embora já respondida – como o fez não pensar em história, nem mesmo sob qualquer ótica utilitarista de superfície. Ou seja, o mais comum é nem cogitar de história e o mais sofisticado que há é a cogitação a partir de superficialíssimo utilitarismo: para quê?

Aqui age a lógica do desassunto, a coisa simplesmente não se conhece. Não é que seja algo remoto e brumoso, é que não existe para a maioria. Essa mesma maioria, quando apresentada à questão e a alguns fatos, alterna surpresa e abordagem padronizada pela sua massificação. É quase totalmente impermeável o senso comum, que não se deixa seduzir por qualquer curiosidade.

Nesse caso, operam os elevados níveis de pobreza e de ignorância formal do Brasil. Quem viveu certa época, provavelmente fê-lo em luta diária para sobreviver e desprovido de quaisquer instrumentos de pensamento e de informações. Esse esquema é o do conservantismo baseado na escravidão tão profunda que nem se entrevê nalgum momento de distenção. Aqui, o mundo não passou na janela, a janela era um espelho e o mundo passou-se de dentro para dentro.

Acontece que se anuncia uma suave descompressão, que as maiorias tornam-se um pouco menos pobres e que se vive uma aparente democracia. Mas, isso vive-se com pessoas que há muito pouco eram mais insignificantes do que são hoje. Terão memória de alguma inferioridade material passada e só. Não há articulação dessa breve memória de um menos material recente com outros menos que a ela se relacionam.

O ambiente não é propício ao avanço que consiste precisamente em saber que o retrocesso é possível. E a que se vejam claramente os referenciais históricos a permitirem saber-se quando há avanço ou retrocesso. Não faz muito sentido para as massas que convenha conhecer a história e que convenha punir delitos para que eles não tornem a acontecer porque afinal vale a pena.

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