Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 3 of 126)

Por medo e ignorância.

A classe média é o eixo de transmissão do poder. Não é ela que toma as grandes decisões, evidentemente, mas é ela que permite executar os planos dos reais detentores do poder; é instrumental, enfim. Isso deve-se, em parte, ao fato de ocupar os postos chaves da burocracia estatal.

Nesta classe estão os formuladores de narrativas de justificação do governo no interesse do grande capital, como são os acadêmicos e os jornalistas de ocasião, por exemplo. Essas personagens são necessárias para o estabelecimento do domínio mais ou menos pacífico das grandes massas de pobres e remediados.

Em geral, os indivíduos não têm consciência da articulação da classe nas estruturas que conformam o real e dão fluxo ao exercício do poder. E tampouco costumam ter consciência de seus papéis individuais intra-classe. Essa falta de percepção, ou percepção parcial e confusa, é fundamental para o bom desempenho de seus papeis esperados.

O ponto central é agir estritamente dentro da lógica da luta de classes, mas em mão única e sempre a negar a existência de luta de classes.  Esse grupo é levado a isto por obra da imprensa corporativa que, praticamente, tem apenas esta classe como público alvo, porque os extremos não precisam ser convencidos de nada e seria demasiado caro construir três narrativas distintas.

O medo e a ignorância, características destacadas desta classe, ajudam bastante na tarefa de levar o grupo a trabalhar pelos interesses dos de cima e para travar os avanços dos de baixo. Convém fazer a ressalva de que essa instrumentalização não significa que a classe média não atue por seus próprios interesses, embora os resultados para a classe dominante sejam maiores.

Os médio classistas são levados a identificarem-se com os estratos superiores, o que se percebe até na simbologia visual, ou seja, nos trajes e nos trejeitos que emulam. Acreditam numa comunhão de interesses, que seria baseada na aliança contra os de baixo. Sucede que a parte que lhe cabe na apropriação dos resultados do trabalho é muito menor que a destinada à classe dominante. E a desproporção é tamanha que bastaria para despertar quantos pensassem com as próprias cabeças.

São como feitores de fazendas, prontos a servir aos interesses do fazendeiro e açoitar os trabalhadores, em troca de pouco, materialmente, e da honra de sentar-se na mesma mesa uma ou duas vezes por mês. Fazer tais serviços implica um nível muito baixo de auto percepção, além de necessidades materiais, claro.

Ela vive a luta de classes, uma realidade tão tangível que precisa ser constantemente negada. Essa vivência dá-lhe medo das grandes massas, que anseiam por ganhos materiais na proporção em que quase tudo lhes falta. A classe média é suficientemente sagaz para perceber que alguma redistribuição pode ser realizada em cima da sua parte da apropriação e teme.

A contradição surge na percepção das relações com o grupo que está acima. Embora também tenha medo dos de cima, não é da mesma forma que teme os de baixo, pois há um elemento reverencial, próprio do medo que se tem do que se anseia ou se tem por modelo ideal. Não se percebe a luta de classes nesta relação entre médios e altos, para enorme benefício dos que estão em cima.

O médio classista tende a ser conservador e a acreditar, assim, que as coisas são de tal maneira porque são e não poderiam ser diferentemente. Por trás desse simplismo, claro, há vários argumentos e narrativas de justificação do é assim porque é, para que essa petição de princípios e primarismo abissal não se mostrem tão claramente. Haverá, sempre, o recurso ao que se convencionou chamar meritocracia, que é nada mais que inércia social.

Essa negação da luta de classes conduz, eventualmente, o grupo a buscar perdas para ele mesmo. Às vezes essas perdas são suportadas por causa da recompensa que é ver os mais de baixo perderem mais, porém nem sempre esse deleite demofóbico é capaz de anestesiar totalmente os efeitos do próprio retrocesso.

A desestabilização política no Brasil foi obra planejada desde fora. O consórcio entre imprensa corporativa e sistema judicial comandou as ações que culminaram no golpe de Estado e no caos que sobreveio. E nessa operação a classe média teve papel fundamental, pois foi ela a agente incansável no exercício dos micropoderes pouco percebidos.

Sucede que o caos é funcional ao projeto externo de apropriação de riquezas naturais, mas não é interessante para a classe média, principalmente acompanhado de depressão econômica e destruição programada do Estado.

 

 

 

O caos é uma face visível da superestrutura.

O processo político brasileiro atual não oferece a previsibilidade que os costumeiros analistas tentam apreender e expor. Ele só tem alguma previsibilidade no âmbito macro, se olhadas as coisas mais ao de longe, mirando-se as linhas mais gerais, nos seus aspectos geopolíticos, ou seja, nas articulações com interesses maiores e externos.

No plano micro, aquele das jogadas e movimentos cotidianos, oferece-se o caos e um nível elevado de imprevisibilidade. Isso mostra-se claramente no uso constante da expressão blindagem e na surpresa quando se verifica o levantamento desta blindagem relativamente a certas personagens, que são deixadas a arderem nas fogueiras da inquisição moralista pela imprensa e pelo subsistema judicial.

O interessante, realmente, é a surpresa tida com o efeito guerra total a que se chegou, presentemente. Esse efeito não se pode dizer resultado de um planejamento prévio meticuloso que antevia todas as fases do processo com boa definição e ordenação. Mas, ele é um efeito necessário da forma de domínio estrutural que há. Neste sentido, o caos – e pouco importa qualificá-lo aparente ou não – é produto da superestrutura e previsível sua instalação.

Que haveria caos era esperado, tanto porque os movimentos golpistas desestabilizariam um país grande e complexo, quanto porque o caos em si é um elemento estratégico. Mas, os movimentos intracaóticos, táticos e estratégicos, não tem um nível de previsibilidade que permita análises micro para além da narrativa do já acontecido.

É preciso identificar e isolar os grandes objetivos que subjazem ao movimento golpista no Brasil, para não se cair na mera narrativa do cotidiano, com a identificação de um e outro ponto tático: alienações de soberania e de riquezas naturais. Esses são os movimentos por trás de toda a dinâmica posta em marcha, em que o caos interno da guerra de todos contra todos é a face visível.

Os agentes locais da desestabilização do país – não apenas das formas democráticas – concorrem por poder e dinheiro, duas coisas que veem, ou de fora, ou do Estado brasileiro, ou das outrora grandes corporações privadas nacionais. Era previsível que esta concorrência se acirrasse a ponto de atingir a guerra ampla e, em alguns casos, a autofagia por erros táticos e estratégicos comuns nos processos demasiado vertiginosos.

Notadamente nas corporações públicas, percebe-se avidez crematística sem precedentes, exatamente no momento em que o Estado tende a reduzir-se, de forma geral, e em que reduz-se drasticamente a arrecadação, especificamente, o que é uma consequência obvia do ambiente recessivo. O nível de apropriação financeira a que chegou o subsistema judicial é insustentável e o grupo deve percebe-lo, o que talvez explique a lógica de levar ao máximo o mais rápido possível.

A obtenção de poderes formais ampliados é condição necessária do aumento da apropriação dos recursos do Estado. Para tanto, foram necessárias bodas com a imprensa corporativa, que é o cônjuge mais poderoso, embora se esforce para não o evidenciar. Desse casamento surgiu o slogan moralizante fundador: na política todos são iguais e sujos. Era necessário instalar esse moralismo esquizofrênico.

Todavia, convém lembrar que tudo isso é política e, assim, não se mata a política, nem se a refunda redimida de pecados. Apenas promove-se a troca dos ocupantes de certos postos ou se tenta a instalação do Estado corporativo, que atendia por outros nomes em tempos pretéritos. E a habilidade política dos políticos em sentido estrito tende a ser superior à dos demais agentes que se aventuram na atividade, sem antes terem pedido votos.

Fora de dúvidas neste panorama é que a dinâmica caótica seguirá como força condutora do processo por mais tempo e não parece ser pouco. E que, assim postas as coisas, os objetivos de alienação de soberania e de riquezas serão atingidos.

 

As construções do interdito e do menos ruim: Le Pen e Macron.

O financismo globalista venceu as eleições presidenciais francesas por conta da precisa atuação da imprensa corporativa, que se alinhou explicitamente ao candidato Emmanuel Macron e usou as estratégias corretas à vista do público destinatário de sua narrativa. Chamaram-no centrista e isto foi ponto central.

De certa forma, a disputa concentrada no campo direitista gerou uma necessidade de se renovar o discurso favorável ao pólo financista globalista, pois a situação é diversa da oposição com a esquerda – seja a real, seja a fictícia. Criou-se, então, um banqueiro egresso da casa Rothschild e fermentado por think tanks direitistas centrista, por mais sem sentido que isso possa parecer a quantos informem-se razoavelmente.

Mas a criação do centrista foi exitosa, por um lado, e fez sentido, por outro. Teve êxito porque delimitou a oposição formal à candidata rotulada extremista. E fez sentido porque o termo centrista referiu-se apenas à pauta de costumes, esquecendo-se totalmente qualquer significação sócio-econômica que pudesse ter.

O centrismo e o extremismo foram definidos em termos de costumes e direitos civis. A imprensa evita a todo custo aproximar-se de assuntos concernentes a distribuição de riquezas e a soberania, que são marginalizados como relíquias de tempos passados. Quando trata disso, é superficialmente e a partir do manual de lugares-comuns do liberalismo triunfante e axiomático, aquele dos termos eficácia, modernidade, reforma e tantas outras tolices semelhantes, que nada significam além de compressão social.

O extremista – de esquerda ou direita – é o banido, o interditado e maldito, em relação a que todo o resto é preferível. Muitas vezes, o interdito é construído por justaposição de adjetivos que já são anacrônicos à vista do que atualmente representa. A candidata Marine Le Pen, muito mais que fascista, no sentido adequado do termo – sentido que remete à história – é a representante da insatisfação dos pobres de direita. Ela é o nacionalismo de direita, enfim, embora em formato diferente do gaulismo.

Mas ela foi demonizada, como era previsível, e as eleições rumaram para uma situação muito fácil para o vencedor. Contra o proibido tudo é válido, mesmo que o outro perceba-se como apenas o menos ruim. Ou seja, há percepções relativas que têm um alcance pre definido, que não podem ir a fundo.

Neste caso francês, o dito acima aplica-se às eleições presidenciais, apenas. Não se aplica ao governo que será constituído depois das eleições legislativas, nem às convulsões que haverá com a aplicação das reformas liberais precarizantes das situações dos mais pobres.

A situação que criou a insatisfação por trás do amplo apoio obtido por Le Pen não será revertida pelas políticas prometidas por Macron. Antes, será amplificada, como é previsível na medida em que das causas provém as consequências. E, passadas as eleições, a narrativa usada no embate não serve de remédio para a realidade cotidiana.

 

 

A não traição dos intelectuais.

É comum haver surpresa com a cooptação dos intelectuais provenientes da academia pelos think tanks mantidos pelo capital financeiro deslocalizado. Mas, esta cooptação não deveria surpreender, quando se percebem os locais social e psíquico do intelectual de academia. É terreno propício, desde a origem, na verdade.

Por causa das eleições presidenciais francesas, o assunto volta-me à mente. O que um dia foi partido socialista, hoje é um disfarce de partido, dominado por prepostos do sistema financeiro. Alguns migraram para formação de agremiações mais airosas ainda, daquelas que se dizem não agremiações e veículos de um novo todo feito de velho.

Os políticos precisam de discursos estruturados, articulados a uma narrativa maior, que não podem perder tempo a elaborar. Há quem desempenhe esta tarefa de compor os discurso e a narrativa, evidentemente, e que por isto receba paga, também evidentemente. Esses são os intelectuais da academia, que têm a vantagem de parecerem desinteressados.

Mais que serem os sujeitos capazes de estruturar a narrativa, eles são um meio de a estruturar a partir do mito da imparcialidade, porque são científicos. A narrativa política precisou tornar-se negativa da política, fazendo-se forte na ausência de escolhas, ao invés de na sua substância real, que são as escolhas. O impossível de ser diferente entrou nos discursos políticos, por meio das invariáveis teses econômicas e sociais.

O produto oferecido pelo intelectual de academia é axiomático e parcial, por mais que tenha camadas de falsa dialética e de considerações de opostos ou diferentes. A tese serve a um propósito e este é, na imensa maioria das vezes, de concentrar mais e mais a apropriação do que é produzido.

O intelectual de academia – e não precisa provir da ENA – é, antes de tudo, um ser vaidoso e certo de estar a ser constantemente injustiçado no que concerne ao reconhecimento do seu talento e capacidades. Essas características fazem da maioria penas de aluguel potenciais, munidas, sim, de boas capacidades discursivas.

É frequente o encontro dos banqueiros, dos patrões de imprensa e dos intelectuais de academia ávidos por jantares bons…

 

Demofobia. Ou, o anseio de que fossem ao menos invisíveis.

O grande dilema filosófico da classe dominante brasileira é se os pobres deveriam ser escravizados ou, antes, todos eliminados fisicamente. É uma dúvida que seria menos atroz se tivessem rudimentos de economia. Essa dúvida leva a que vagueiem a expressar sua essencial demofobia incoerentemente.

Não me entrego ao grande luxo da surpresa, real ou fingida, frente ao que conheço. Mas, ainda me impressiono, aqui e acolá, com as duas vertentes narrativas principais da demofobia: a clara e a disfarçada. Não sei realmente qual a mais perversa, até porque as duas variantes costumam ser usadas alternadamente pelas mesmas pessoas.

Semana passada tive de escutar uma estória interessante, da vertente disfarçada, que agride mais pela hipocrisia subjacente. Fato é que um fulano disse estar frequentando um parque público da cidade e que havia, gratuitamente, aulas de educação física para os presentes. Atividades específicas para velhos, atividades para jovens. Enfim, alguns educadores físicos à disposição dos frequentadores.

A surpresa do meu interlocutor residia exatamente em que as tais aulas públicas, em um espaço público, funcionavam! Ou seja, eram algo desejável, a custo nenhum. A partir daí, comecei a esperar as objeções e não as esperei somente dos tipos que dizem ser fácil fazer coisas boas. Não sabia exatamente qual objeção viria relativamente a algo que era percebido como bom.

E a objeção veio pelo viés liberal puro, pelo viés privatista. Disse o civilizado que aquilo devia custar muito à municipalidade. Ora, primeiramente isso não custa muito à municipalidade e, segundamente, mesmo que custasse era algo bom. E, em terceiro lugar, insisti, há coisas muito mais custosas e que não promovem o convívio e o bem estar em espaços públicos.

Mas, a insistência no custo persistiu, o que me fez antever o que viria a seguir, pois a estas alturas ficava claro. Meu interlocutor disse: deviam cobrar algo para entrar no parque, algo que fosse ao menos simbólico. Essa proposição é de uma estupidez tamanha que as minhas feições devem ter denunciado o que pensei. Achei que fosse válido ser honesto e redargui: o acesso a praças públicas não é cobrado em parte nenhuma do mundo.

Dizer que algo funciona de uma maneira uniforme no resto do mundo costuma ser eficaz para calar os brasileiros de classe dominante, cuja única vergonha real é a de falar inglês com sotaque. Como vivem a dizer que na Europa isso é assim, nos EUA isso é assado, costumam calar-se quando se diz que algo está exatamente como nestes lugares.

Mas, eis que o discurso demofóbico passou a basear-se nas duas vertentes: a explícita e a disfarçada. Enfatizou meu interlocutor que a cobrança que ele propunha era de um valor simbólico. Ora, se é simbólico, para que cobrar? Afinal, o que é um valor simbólico, o que ele simboliza? Feitas estas perguntas, meu interlocutor desagradou-se, o que era previsível, pois teria de pensar, ou ser sincero até o fim.

Essa estória do valor simbólico é a desonestidade intelectual que quase sempre se insinua impunemente. Se é simbólico no sentido de módico, não tem qualquer sentido como fonte de recursos para custear os serviços oferecidos ao público. Se não é simbólico no sentido de módico, visa a afastar os pobres, pura e simplesmente.

E assim, percebe-se o que é: não tem nada de simbólico como barato, porque nada é barato para pobres e miseráveis e, por outro lado, é sim simbólico, porque simboliza que o espaço pretensamente público é, na verdade, privado. A classe dominante brasileira abomina espaços públicos, porque os pobres podem estar neles, pelo menos potencialmente.

O pobres devem ser invisíveis e, preferencialmente, serem eles mesmos a optarem pela invisibilidade, para que a classe dominante não seja compelida a os mandar retirar e tanger para longe, violentamente. Ter de usar destas violências, inicialmente, fere os escrúpulos desta gente, embora não recuem se for necessário.

Eis que se criou um espaço público na cidade, que tem uma espécie de lago. E, como era evidente num lugar muito quente, as pessoas passaram a usar o espaço público e a banhar-se no lago. Um amigo contou-me as reações de asco de espécimes da classe dominante com os banhos dos frequentadores do espaço público. Viram nos banhos falta de educação!

Não é de educação que se cuida, que essa gente nem na tem, nem se preocupa muito com isso. O problema é percebido visualmente a partir de dois aspectos: a quantidade de gente no local e a cor das peles das pessoas. Se o lago estava repleto de gente a banhar-se, a pular, a mergulhar, a espalhar água e se todos ou quase todos eram de morenos para pretos, era um caso de falta de educação.

Este meu amigo disse que redarguiu para o grupo dos fiscais de educação: Ora, no verão infernal de Roma as pessoas entram na Fontana di Trevi. E o mesmo acontece na França, na Espanha, em Portugal… Foi perverso, muito perverso…

 

 

 

Expurgos e ganho de produtividade.

Uma conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze, ocorrida em 1972, foi recolhida no volume intitulado Microfísica do Poder. Em determinado momento, Deleuze diz algo interessante: Se se considera a situação atual, o poder possui forçosamente uma visão total ou global. Quero dizer que todas as formas atuais de repressão, que são múltiplas, se totalizam facilmente do ponto de vista do poder: a repressão racista contra os imigrados, a repressão nas fábricas, a repressão no ensino, a repressão contra os jovens em geral.

Essa visão total, essa articulação de vários subsistemas, indicam que o poder é muito sutil – como emanação variada, não como meios de atuação prática – e que, por outro lado, consiste em um movimento. Uma roda de bicicleta que desça sozinha uma ladeira é metáfora bem razoável para descrever-lhe a inercialidade.

A representação política é uma de muitas faces perceptíveis do poder atuante à luz do dia. Costuma ser a mais útil, porque geralmente calcada nas narrativas de legitimidade formal para a alocação de recursos do Estado. Mas, não é preciso, ou não é completo, dizer-se que o poder está somente no governo do Estado, ou seja, nas representações políticas e nas demais classes dirigentes corporativas.

Os exercentes de poderes de governo, em maiores e menores escalas, são tão intermediários quanto detentores de frações de poder que se exercem em determinado sentido, contra um núcleo de interesses opostos. Os agentes são identificáveis, mas o poder em si é difícil de identificar tamanha a integração sistêmica dos seus componentes. Acontece, porém, que rearranjos sempre acontecem.

Hoje, no Brasil, há muitos surpresos com os ensaios de expurgos internos no grupo amplo que assaltou o Estado para retomar a compressão social e alienar a soberania pouca que havia. Esses expurgos não são idênticos ao de Carlos Lacerda, por exemplo, mas obedecem praticamente à mesma lógica. Eles não serão apenas o que os apressados querem ver: desculpas para golpes maiores em líderes do campo oposto; não há grande necessidade destas desculpas, pois o mito da imparcialidade não ruiu.

O grupo dos intermediários na representação política reproduz-se e postos elevados podem ser reciclados com relativa facilidade. Os que existem mais ou menos para além da inercialidade são poucos, são os que conseguem por-se um pouco à frete e ao lado, para ver as coisas, e que conseguem fazer da teoria uma prática e vice-versa. Assim, há competição interna nos grupos, o que, de resto, é evidente, embora não tão evidente seja a intensidade a que chega.

Em essência, o expurgo interno tem uma causa principal e mais remota: desnecessidade. Um político pode ser desnecessário por uma de duas razões: ou não é viável eleitoralmente, ou não é útil porque as eleições a que visa não ocorrerão. Este fenômeno acontece em função do poder que advém do dinheiro e é, talvez, onde a parcela financeira do poder se exprima mais claramente, quando ele muda o equilíbrio entre os intermediários de que se serve.

Hoje, a intermediação mediática e pelos subsistemas repressores policial e judicial assume a frente, em detrimento da representação política. Claro que isso, também, sofrerá rearranjos posteriores, depois que façam o que deles se espera, mesmo que mantenham sempre poderes residuais e latentes prontos a ocuparem outros espaços e reivindicarem utilidades.

Feliz ou infelizmente, os preços das coisas importam e importam crescentemente à medida que avança a escassez de dinheiros, ou seja, nas depressões econômicas. O sistema busca ganhos de produtividade, ou seja, produzir resultados semelhantes a custos menores. Isso afeta a parcela apropriada pelos intermediários responsáveis pela produção de narrativas, por quase todos eles. E isso já é o prenúncio de outros deslocamentos e rearranjos de poder.

Afinal, produtores de narrativas não são assim tão raros e o grande número está quase sempre pronto a seguir projetos em que não tem interesses muito claros, como são os financeiros e econômicos. São, ainda como dizia Deleuze, mais desejos que interesses e desejos são mais difusos e profundos que interesses. O expurgo, na espiral moralista, compraz o grande número e só surpreende o expurgado.

Carlos Lacerda não previu nem aceitou seu expurgo. O que significa que, mais que não compreender os novos ocupantes do governo, não entendia o grande número de então.

O grande jogo não busca a imprevisibilidade, embora sirva-se da confusão espetacular. Ora, ao assistir calmamente o expurgo interno de intermediários esforçados, está dando a conhecer que os abandonados e os novos que pretendem substituir aqueles são, ambos, fatores de imprevisibilidade.

A extrema direita é um problema da direita.

É facílimo acostumar-se à liberdade de costumes e acha-la coisa natural, como a erva que brota sem aparentes semeadura e rega. Contudo, a liberdade de costumas é coisa bem outra, é obtida em processos tão lentos quanto penosos e, o que poucos lembram, é reversível.

As classes médias são, em sua grande maioria, polarizadas por pautas de costumes. E, ainda em sua parcela majoritária, apreciam estas liberdades, pois lhes permitem dizer asneiras à vontade e exercer a irreverência, que tomam como sinal maior de inteligência e independência.

Pois bem, grupos de classe média começam a experimentar o que podem ser sinais de fechamento do regime que agora se instala no Brasil. E a experiência causa horror e indignação nos mesmos que não as sentem quando os pobres e miseráveis experimentam brutalidades muito maiores e cotidianas.

Eis que no carnaval houve episódios de censura por opinião e prisões evidentemente arbitrárias e ilegais de grupos que nada mais faziam que afirmar o Fora Temer. Juridicamente, é uma aberração, mas não é esta aberração que mais impressiona. Politicamente, é mais aberrante ainda, na medida em que atingiu em cheio grupos de classe média cuja propensão a protestar é pouco mais que um hábito exótico de afirmação.

As pautas de justiça social e de redistribuição de rendas nunca seduziram muito as classes médias. As de costumes, todavia, sempre despertam muito interesse, seja pelo lado do fechamento, seja pelo da abertura. Tanto assim é, que próceres da direita alfabetizada perceberam a eficácia de discursos tais como o de legalização de entorpecentes, notadamente da maconha, bem como das uniões civis homoafetivas. Fernando Henrique é um exemplo.

Mas, era necessário, para consumar o golpe de estado, cevar a direita bestial de inclinação fascistas. O problema desse tipo de estratégia é que o fascismo da direita moralista não tem botão de liga e desliga e precisa ser esvaziado lentamente, por diluição.

Às primeiras concessões feitas ao controle de costumes seguem-se mais outras, pois os fascismos são muito vorazes e desconhecem a saciedade. Será um imenso problema para a direita liberal tratar com o avanço da direita selvagem, até porque o discurso civilizado pouco diz aos não civilizados e aos pobres e miseráveis, pois estes últimos não conseguem acreditar na existência do que nunca viram.

A manutenção da unidade das classes médias é fundamental para a implementação do golpe entreguista e concentrador de rendas. Mas, esta unidade – ou, pelo menos, não beligerância interna – implica que a pauta fascista retroceda. Já há sinais de que a imprensa tentará induzir este retrocesso, mas a eficácia deste movimento é duvidosa.

Controle social segmentado.

Lentamente, surgem aqui e acolá pessoas encantadas com a inteligência de Piketty, que se põem a escrever sobre desigualdades. Uns piquetizam a mencionar-lhe o nome, outros, como é comum, principalmente na igreja acadêmica, fazem da omissão nos créditos sua originalidade. De qualquer forma que seja, é bom que se fale do que escreve Piketty e que se o reproduza com outras palavras, porque o homem é inteligente.

Piketty vaticina um momento de provável ruptura social , de eclosão de revoluções: seria quando os 10% mais ricos estivessem a apropriar-se de 90% das riquezas. E vaticina que para se evitarem as revoluções, neste ponto, o controle não poderia limitar-se à repressão física, pois seriam necessários novos meios de controle por narrativa de justificação.

Ou seja, um dos dois meios clássicos de controle social, a narrativa via imprensa corporativa, teria de se aprimorar, para juntamente à tradicional repressão física conterem as revoltas dos milhões de esmagados pelo nível obsceno de concentração de riquezas e rendimentos. Alguém precisa dizer isso claramente, com sólido embasamento teórico.

Todavia, a questão dos meios de contenção que serão usados e de suas eficácias traz alguns problemas. E eles passam pela projeção do que será o caos – e mesmo se será o caos – quando se atingirem os níveis máximos de concentração que antecedem à ruptura social.

A hipótese de eficácia dos controles sociais segmentados, ou seja, repressão física e narrativa de justificação, superpostos e precisamente localizados conforme os grupos destinatários, pressupõe algo que não se mostra tão evidente que haja: linguagem.

No que toca ao controle por meio de narrativas de justificação, ou seja, de discursos que naturalizam as desigualdades, é muito claro que demandam dos receptores que mantenham um grau mínimo de articulação de linguagem, para que percebam o que se lhes diz. E para que alguns grupos possam manter um domínio ainda que precário da linguagem, precisarão reter algum conforto material, o que está na fronteira da contradição com a situação material que haverá quando os 10% de cima detiverem 90% de todas as riquezas.

Para enganar é preciso que as vítimas continuem enganáveis, ou seja, que possam perceber o discurso a elas destinado. A primeira coisa necessária para que esta condição seja atendida é que esses grupos disponham de tempo. Ora, no caos, na vida como luta cotidiana e imediata, o tempo torna-se algo muito fugidio.

Tende-se a achar que o controle por meio de repressão física seja algo mais primário, a demandar menos dos destinatários. Mas, ele também, para ser eficaz como controle – e não apenas como eliminação – implica que os controlados retenham algum nível de linguagem, porque a repressão física é também um discurso moral.

Embora o controlado não precise necessariamente sentir-se merecedor do castigo físico, ele precisa sentir-se castigado. A pancada tem de ser percebida como castigo, pouco importando que o receptor tenha-na como justa ou injusta. Ora, sem linguagem, não se percebe a pancada como castigo, senão como ações e reações naturais, que são riscos comuns ao dia-a-dia da caça ou da coleta.

A cerca eletrificada que separa a horda de miseráveis famélicos não terá para eles qualquer conteúdo moral: será uma cerca eletrificada e só, que eles tentarão transpor, mesmo que morram ou se machuquem severamente.

E aqui chega-se ao ponto: a concentração em níveis absurdamente altos produzirá hordas famélicas que terão regredido na posse da linguagem e,  para contê-las, mais que aprimorar-se o controle via narrativa, será necessário excluí-las como na natureza, ou liquidá-las. Neste ponto, não se convence nem se é convencido…

 

 

 

A outra face da narrativa meritocrática: a culpa.

Não é simples o sistema que subjaz ao estado de aceitação pelas massas de medidas que pioram evidentemente suas situações social e econômica. Há uma narrativa bem construída com técnicas consagradas de engenharia psico-social, que prepara o terreno para que as pessoas – em maiores e menores proporções, consoante suas porosidades à imprensa corporativa – aceitem o saque do pouco que têm.

Apenas o discurso das medidas amargas necessárias para que se abra uma era futura de bonança não é suficiente para que alguém aceite perdas drásticas. É preciso que uma narrativa mais sutil instile nas camadas psíquicas menos dependentes de linguagem a tendência a aceitar o discurso da necessidade do que é contra si mesmo.

Esse papel cabe à culpa, a face reversa do mérito. Se Deus dá tudo e tudo retira, o mérito dá e a culpa retira. Ou, mais precisamente, a culpa permite que se aceite a retirada e o seu discurso de justificação. É o alicerce pouco consciente – mas já conformado em linguagem, evidentemente – sobre que serão depostas e assimiladas as camadas narrativas da necessidade de sofrer.

É sofrer a expiação de um mérito que a sinceridade mais interna – aquela que aqui e acolá revela-se involuntariamente – sabe inexistir. O mérito que pouco é mais que inércia, que é muito próximo a acaso ou que é realmente mérito na detenção da arte de tripudiar, esse mérito o meritocrata tem contato com ele, intimamente, dentro de si mesmo. Nessas ocasiões, não há mentiras.

Essa sinceridade – digamos interior, por falta de palavra melhor – entre em choque com a narrativa cuidadosamente arrumada em linguagem, a que se projeta. Desse choque surge a culpa e estão dadas as condições para a aceitação da piora, quase como uma penitencia ritual.

 

 

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