Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 29 of 126)

Quando o controle social passivo não basta.

A maior parte daquilo que as pessoas respeitáveis e seu público fiel reputam teoria da conspiração não passa realmente de tolices. Geralmente, boas informações são precariamente conectadas, por pessoas que entreviram o escândalo mas não podem traçar suas linhas genéticas.

Outra parte disso que se chama teoria de conspiração é precisamente o que ocorre, evidente, e claro como o céu de Lisboa. Tudo, ao final, é posto no mesmo saco e a parte que interessa é desautorizada junto com as bobagens.

Por isso, as pessoas que comandam o mundo nunca se importaram muito com a informação – que ela quase sempre está disponível – mas com as interpretações e ênfases que a imprensa dará a ela. É seguro agir desta forma, porque muito da realidade é percebido a partir de modelos pré concebidos.

Os EUA desintegrar-se-ão mais drasticamente que a Europa e não adianta fugir ao cerne da questão: lá, a concentração é maior que na Europa. As massas são mais pobres, relativamente, e a aceleração do empobrecimento é maior. Não se cuida, para desespero do pessoal que só fala de educação, do nível das massas, pois ele é muito democraticamente baixo por toda parte.

É muito difícil um império manter-se apenas emitindo notas promissórias e jogando bombas nas cabeças de quem não se pode defender. Gore Vidal, norte-americano e inteligentíssimo – a provar que não são situações antagônicas – tem o cuidado de fixar o fim da era de ouro e o fim do império financeiro em datas distintas.

O primeiro acaba-se quando o conúbio do complexo financeiro – militar – industrial e o Mossad matam o presidente irlandês. O segundo, quando o presidente representante do conúbio matador mata a paridade dólar-ouro e determina que petróleo só pode ser comprado em dólares norte-americanos. De uma data a outra, medeiam oito anos. Vidal é muito preciosista.

A questão não é tanto o que fez o injustiçado vice-presidente de Einsenhower, aconselhado pelo inteligente judeu alemão, com relação à moeda de denominação da única transação comercial importante. A questão é que o país, a nação, para quem for mais romântico, pouco importou. O modelo, como todos eles, tinha prazo e implicava seu fim.

Não é pacífico distribuir cocaína a preços módicos para milhões de pessoas que a não poderão comprar depois, exceto se se tiver para onde fugir, depois que a coisa ficar insustentável. O mesmo vale para crédito.Hoje, não dá para fugir para Londres e não sei se Jerusalém agradará aos fugitivos…

O apogeu de uma trajetória nunca é percebido por quem está em movimento. Com os EUA – falo do povo, não dos banqueiros – não seria diferente. Hoje, são à volta de 300 milhões, todos sem memória de quando eram 150 milhões e sem memória de uma certa fome que matou 03 milhões na grande depressão, entre 1929 e 1939.

À medida em que a curva da acumulação absoluta subia, essa gente subia marginalmente. Pouca coisa era necessária, além de programas de televisão, filmes ruins e os russos estão chegando. Com os russos chegando e pipoca e coca-cola, pagavam-se impostos para grandes guerras perdidas à partida, para financiar Israel e para custear a corrupção política em Washington.

Esse, de certa forma, é um admirável mundo novo. O sujeito encontra-se numa porção do mundo, imagina que ela faz parte de um todo um pouco maior e abstrai do restante, que pode ser qualquer fantasia. Esse tem ABC, CBS, NCB, FOX e outras coisas. Enquanto houver fluxo de dinheiro, por pouco que seja, funciona.

Essa maravilha depende de mais fluxo da periferia para o centro, porque a concentração é tamanha que o fluxo precisa aumentar. Mas, ele não aumenta, embora a concentração aumente. Infelizmente, a história é trapaceira.

Orwell não escreveu 1984 para acontecer no mundo em que Orwell nasceu. Mas, os leitores analfabetos dele achavam que se referia a um modelo político apenas, ou seja, subestimavam a obra e, talvez, o autor.

Aquilo não era peça de propaganda contra os russos que estavam chegando e nunca chegaram. Era uma coisa possível – e necessária, o que é terrível – em qualquer parte que se servisse do discurso da liberdade descasado do que um pouco de liberdade pressupõe.

Os números divergem pouco. Hoje, há nos EUA à volta de 600 campos de concentração prontos a serem usados. A agência federal que os administra, a FEMA, fez uma curiosa compra de milhões de caixões muito resistentes, de plástico, que podem acomodar até três defuntos e suportar grandes pressões.

Hoje, não é proibido torturar, prender e matar cidadãos norte-americanos sem acusação formal, nem prévio julgamento, graças a leis e ordens executivas obviamente inconstitucionais. Há três dezenas de milhares de aviões não tripulados – Drones – a serviço de agências de segurança a matarem cidadãos, a bem de uma coisa vaporosa chamada segurança nacional.

Esse aparato é homenagem à capacidade de previsão da elite norte-americana. Eles perceberam que a coisa rapidamente demandará meios de controle social ativos e repressivos, porque 300 milhões não são poucos.

Há quarenta anos, ainda se apostava somente na TV…

Aqui, as coisas são claras. Não cabe massificação.

Aprendimos a quererte
desde la histórica altura
donde el sol de tu bravura
le puso cerco a la muerte.

Aquí se queda la clara,
la entrañable transparencia,
de tu querida presencia
Comandante Che Guevara.

Tu mano gloriosa y fuerte
sobre la historia dispara
cuando todo Santa Clara
se despierta para verte.

Vienes quemando la brisa
con soles de primavera
para plantar la bandera
con la luz de tu sonrisa.

Tu amor revolucionario
te conduce a nueva empresa
donde esperan la firmeza
de tu brazo libertario.

Seguiremos adelante
como junto a ti seguimos
y con Fidel te decimos:
!Hasta siempre, Comandante!

A censura ao silêncio.

As maiores violências são as mais ricas em sutilezas, assim como as maiores amabilidades. Falso paradoxo, pois a sutileza é potência ambivalente e pode ser em ato qualquer coisa, sempre mais que ela realizada mediante brutalidade.

A censura positiva é brutal, ela desce com o peso da estupidez a interditar o que não pode ser dito. A reação à censura positiva é também brutal, pois faz-se da acusação direta da ignorância do censor. Esse ambiente é confortável, pelo que tem de sem-sentido.

Sempre que é proibido dizer alguma coisa há o conforto de saber-se que tanto ela quanto sua proibição não são ameaças a nada. E, além disso, o positivamente proibido existe positivamente. A proibição é amparo ontológico do proibido.

No Brasil – apenas como exemplo – no último período ditatorial, chegou-se a proibir a encenação de Édipo Rei, de Sófocles. A proibição não acabou com a peça, não na apagou da memória dos poucos que a leram, nem aumentou o interesse por ela de muitos que a ignoram. Tampouco reduziu o evidente anúncio dos riscos de achar-se muito potente, risco que correm os príncipes.

Não é preciso muito esforço para perceber que a censura da peça de Sófocles, no contexto das necessidades de defesa da ditadura, foi reação a ameaça quimérica. Em homenagem aos ditadores e a seus empregados censores, inclino-me a crer que foi uma tentativa ingênua de auto-promoção deles, como a dizerem que conheciam o texto tão celebrado. Mas, é claro que o desconheciam…

É preciso investir contra as não ameaças, assim como é preciso matar quem de nada sabe. Assim, joga-se no tabuleiro da brutalidade e todos se entendem bem, com proibições explícitas e reações a elas. Ainda resta a linha de fuga de poder chamar o censor de imbecil… um pequeno conforto vingativo.

Complicado é quando se está proibido ao tempo em que se diz não haver a interdição. Aqui opera-se ao nível da sutileza e deixa-se o controle do que importa para a inércia social que se auto-controla meio involuntariamente. Neste âmbito, as violências podem ser muito maiores, pois há regras, negadas contudo, e desconhecidas pelos que zelam por sua aplicação.

Aqui, o censor é toda pessoa. Ele aplica regras que precisamente desconhece, porque tem que acreditar não estar a serviço do controle. Ora, o melhor controle é aquele que se desconhece como tal, porque assim é mais sincero e mais eficaz. Pratica-se a partir da aceitação ampla, ainda que difusa e mal percebida, de um sistema de justificações recíprocas.

A cumplicidade e a justificação são os principais motores desse esquema, que replica modelos operacionais típicos das relações familiares. A cumplicidade, nunca explícita, é o que leva a tolerar os absurdos dos outros, para contar com a complacência deles quando os absurdos forem os nossos. Essa cumplicidade, contudo, será praticada com reiteradas negações e com afirmações de exercício de rigores punitivos.

Não é de punição que se trata, porém. Esse modelo de controle social difuso é incapaz de punição no sentido próprio do termo, no sentido jurídico portanto. Ele opera entre o linchamento e a permissividade total. Entre os pólos extremos, há gradação de sanções sociais, desde o afastamento discreto até o banimento total.

A justificação é atitude das mais agressivas quando se percebe que é somente uma capa a recobrir um fluxo de mão-única. É a penitência do pecador convicto, a cansar a paciência de quantos não quiserem ser espectadores e atores de uma peça de mau gosto. Este penitente não quer a absolvição, até porque não se crê absolutamente culpado por nada. Ele apenas segue o guia desconhecido porém implacável.

A figura do penitente é profundamente acusadora, pois significa que todos devem assumi-la, à sua vez. Ela insere-se na lógica circular em que o mesmo papel deve ser desempenhado por cada qual, sucessivamente. Todos são culpados e não no são, ao mesmo tempo. É o reino da absolvição, por igualdade de culpas.

Movidas por essas inclinações, as pessoas estão a fazer as perguntas que não são. A pergunta que não é é aquela que tem resposta, de preferência vertida em linguagem científica ou moralista, o que resulta quase o mesmo. O perguntador e o respostador sabem, no fundo, que não há qualquer importância nesse fluxo, mas seguem impávidos e solenes o roteiro pré-estabelecido.

O que está interditado é perguntar qual é a pergunta, porque esse nível de indeterminação poderia levar às portas de alguma sinceridade, o maior de todos os perigos.

O sistema funciona bem porque nove em dez não se negarão a tomar a sério a pergunta que não é. Nove em dez subirão ao palco e oferecerão o triste espetáculo do ator que representa a si mesmo. Um, todavia, não o quererá fazer e a ele não será dado ficar quieto na platéia. A pergunta que não é ser-lhe-á feita e se se negar ao jogo começará a expiar culpas verdadeiras.

Um em dez quererá apenas não ter que mentir, nem ter que falar. Não fora um, não mentiria nem calaria, alegremente daria a resposta que não é e, em seguida, faria a pergunta que não é; o círculo se fecharia e a roda giraria como deve ser. O problema é que não há fora…

O depoimento de Frei Tito de Alencar.

Este é o depoimento de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.

Fui levado do presídio Tiradentes para a “Operação Bandeirantes”, OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”. Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.

Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.

Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do “pau-de-arara”. O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.

Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. “Vai ter que falar senão só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na “cadeira do dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao “pau-de-arara”. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.

“Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. “Quando venho para a OB – disse – deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede… Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo “não” que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Eram três militares na sala. Um deles gritou: “Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)”. Quando respondi: “não sei” recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.

Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?”. Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que a “Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.

Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara”. Mas o capitão Albernaz objetou: “não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”. “Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.

Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.

Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos”. Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a “gillete” para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos”. No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.

No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: “A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo”. Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.

Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.

De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.

É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.

A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo

“Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2Cor, 8-9).

Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

Frei Tito de Alencar Lima, OP
Fevereiro de 1970

Un día de furia, de Daniel Robles.

Cuando el sol tan rojo cifrado en su nombre
Lo atacó de frente como una condena
Llevaba en su cuerpo las mil y una noches,
La última copa, la última cena.

Se vistió despacio, en cámara lenta,
Se miró al espejo arqueando una ceja,
Suspiró profundo y sacó la cuenta,
Tan fino, tan dulce, tan solo, sin quejas.

Al subirse al auto bajó la bandera,
La puta costumbre se dijo y apenas
Era la tarifa del tiempo de espera
Más cara de todas, una vida entera.

Puso un tango reo buscando el consejo
Que nadie le daba en medio de aquello,
El bar de la esquina quedaba tan lejos…
Perros de la calle!… Dónde estaban ellos…!

Quedáte tranquilo, en la dulce espera
Que un día de furia lo tiene cualquiera…

Saltó el eslabón, rompió la cadena,
Era todo rojo en la carretera,
Lo que viviría ya era pasado,
El ser o no ser a una calavera.

Antes de bajar se miró las manos,
Se arregló el cabello, palpó su campera,
Caminó dos cuadras y al entrar por ella
Miró su reflejo sobre la vidriera.

Tarde para todo ya no era quien era.
La mató con rabia, se mató con pena
Y entre muerte y muerte vivió diez minutos
Mirando asombrado su última escena.

Ese sol tan rojo cifrado en su nombre
Se apagó despacio entre las sirenas
Y un fundido a negro cayó sobre todos
Que un día de furia lo tiene cualquiera…

Quedáte tranquilo, en la dulce espera,
Que un día de furia lo tiene cualquiera…

Detalhe chinês.

Era comum, quando se mandava um carro para ser lavado, polido e aspirado por dentro, que ele voltasse com folhas de jornal a recobrirem os tapetes. O hábito, arraigado, tem sido abandonado aos poucos, mas ainda persiste aqui e acolá.

Onde levo o meu carro para lavar, a folha de jornal sempre está lá, a cobrir pelo menos o tapete do assento do motorista. Nem me agrada, nem me desagrada, embora sempre tenha pensado na inutilidade do jornal, que deve ser logo retirado, pois é um incômodo e pode causar um acidente. Não é indicado dirigir um carro com enorme folha de papel a escorregar a cada mudança de marchas, a cada pisada nos pedais.

Imagino que a raiz desse costume está na indicação de que os tapetes de borracha foram realmente lavados e para evitar que se sujem imediatamente após limpos. Bem, eles ficarão sujos de qualquer forma…

Hoje levei o carro para lavar, porque estava imundo e não posso fazer isso no prédio, embora fosse dos meus prazeres mais triviais de fim de semana. E ele estava lá, com o indefectível jornal a proteger o tapete recém lavado. Baixei-me para apanhar a folha, fazer dela uma grande bola e jogá-la do outro lado, o do passageiro.

Surpreendi-me com uma folha de jornal inteiramente em chinês! Se alguém indagar-se como posso distinguir entre caracteres chineses e japoneses esteja certo que não posso, é uma simples questão de probabilidade.

Que há chineses em toda parte é algo óbvio e sabido por quantos vejam e escutem as coisas nos centros das cidades. Mas, esta é uma cidade de 380 mil habitantes, no interior do nordeste brasileiro. Não é pequena, evidentemente, mas não é grande para padrões brasileiros, nem o lugar mais provável para se encontrarem folhas de jornal chinês.

Jornal chinês não tem outro público senão aquele apto para ler no idioma e não é algo que venha de muito perto, até porque não são publicados aqui. A conclusão é que já há chineses em número suficiente a justificar a importação de jornais, o que me parece excelente.

Muito longe de ter fobias com estrangeiros, lamento muito que sejam em tão reduzido número por estas bandas. Há um e outro português, a arriscar-se no comércio e principalmente com negócios de restaurantes e bares. Há um punhado de indianos, professores de física, engenharia e matemática na universidade federal. Há os novos chineses, todos comerciantes. E deve haver meia dúzia de pessoas de outras nacionalidade.

É auspicioso que venham pessoas de fora para um lugar como este, sempre muito fechado sobre si mesmo e desconhecedor profundo de tudo quanto sejam costumes e formas de viver diferentes dos modelinhos de sempre.

As famílias brasileiras: metonímia involuntária e reveladora.

O jornal de domingo às vezes dá o que pensar, daquele pensar sem ser contra, nem a favor. Ou seja, ainda vale a pena ler o jornal, por mais superficial e ruim que se venha tornando, sempre e sempre. Em geral, as notícias são as mais desimportantes e ligeiras, os editorias os mais partidários e acusativos e as reportagens pecam por agredirem a língua insistentemente.

Todavia, reportagens há delas que mesmo superficiais e mal escritas fazem pensar e revelam posturas bem estabelecidas. Algumas interessam pelo que há por trás e ao lado delas, pelo que não querem dizer. Não falo necessariamente do que elas escondem propositadamente, mas do que esconde-se por baixo do que são seus objetos principais declarados. Podem ser ponto de partida da percepção de anseios conservadores talvez involuntários.

Há poucos anos, a Folha de São Paulo saia-se com uma matéria que tratava da dificuldade das madames das classes médias e altas encontrarem serviçais domésticas. Era um lamento bastante direto e uma acusação mais ou menos indireta dos programas de apoios sociais governamentais, que aumentaram discretamente os preços dos escravos domésticos. Era, também, um caso de desonestidade intelectual, porque o problema anunciado não era daqueles abertos e insolúveis. Bastava às senhoras pagarem mais…

Hoje, vejo uma reportagem meio ingênua, no Diário de Pernambuco, sobre vantagens e desvantagens de as famílias terem empregadas domésticas ou contratarem serviços domésticos autônomos e eventuais. O texto não escorrega para o lamento puro e simples do aumento dos preços desses serviços semi-escravos, ele passeia ao redor de análises de custo e benefício de uma e outra alternativa.

Interessantíssimo que os pólos da relação sejam, de um lado, as famílias contratadoras e, de outro, as serviçais contratadas. A primeira coisa a vir a tona é que – para o texto – as famílias são aquelas das classes mais bem aquinhoadas, o que leva a concluir que do lado das contratadas não há família. Só há família de um lado, pois do outro está a empregada, constante ou eventual.

Família é usado como termo unívoco, o que só é possível rigorosamente se o compreendermos com os qualificativos ali suprimidos: de classe média, média alta ou alta. Famílias, assim sem qualificativos, são todos os grupos reunidos a partir de vínculos de parentesco ou de afinidade, e que vivam juntos na mesma moradia. Ou seja, as serviçais também podem ser parte integrante de famílias.

Porém, a reportagem não usa a distinção identificadora de quais famílias sejam as que contratam serviços domésticos, o que revela que toma a parte pelo todo de forma provavelmente involuntária. O autor do texto não sente necessidade de qualificar família porque isso para ele só pode ser um tipo de família. A figura de estilo aqui deixa de sê-lo, propriamente, porque o autor realmente pensa que a parte é o todo.

A família, na sociedade brasileira, é conceito de resistência. Mais que o significado claro que tem na teoria econômica, no imaginário do conservadorismo ela é um núcleo que supera o conceito de indivíduo e de linhagem e grupo amplo ligado por parentesco.

No sentido que as classes dominantes fizeram o termo ter, família liga-se à estabilidade social e econômica que implica morar em certos tipos de habitação, em certos locais da cidade e a poder ter a serviço empregados domésticos. Esse grupo pode compor-se de casais homo ou heterossexuais, com ou sem filhos, monoparentais com filhos e outros muitos arranjos.

Apenas não pode ser composta por grupo que somente alugue seu trabalho. Ela, na compreensão do tipo expressa no texto da reportagem, tem que ser um grupo que potencial ou efetivamente alugue serviços domésticos. O grupo pode até não querer alugar serviços, mas se o puder fazer está inscrito no âmbito de família.

O critério de pertencimento é preponderantemente econômico, pois perdeu-se a rigidez dos critérios sociais acessórios que complicavam a definição. Família não é mais necessariamente um vasto grupo sob liderança patriarcal, senão um indicativo claro de poder de compra de serviços. Foi reduzida a isso, o que, por um lado, a torna mais simples de perceber e, por outro, mais apta a trair seu real significado.

Antes, mais elementos deviam estar presentes para que um grupo, no discurso social predominante, fosse considerado família. Um pai, líder econômico e simbólico, uma mãe, líder do lar e talvez economicamente ativa, uns filhos, um avô, uma avó, talvez, até mesmo um tio, tia ou algum agregado. Isso tudo com papéis sociais bem estabelecidos e o acréscimo da moradia bem situada e dos serviçais domésticos era uma família.

Hoje, papéis sociais podem ser menos rígidos em comparação com protótipos anteriores, o número de integrantes pode ser menor, mas a possibilidade de assalariar serviçais permanece firme como critério principal para definir uma família brasileira no sentido socialmente dominante.

A linguagem, principalmente a jornalística, precisa servir aos mecanismos de conservação, por meio de seu efeito fixador de idéias. Assim, é comum usar-se termos como se fossem unívocos, quando eles precisam de qualificadores a lhes precisarem o alcance. Às vezes o termo não qualificado serve para dar a falsa impressão de ampla compreensão de todos os elementos em uma categoria, outras serve para induzir a percepção da parte como se fora o todo. Ou seja, a imprecisão é ambivalente.

Às vezes dizem que os brasileiros tiveram seu poder aquisitivo aumentado, como se isso tivesse acontecido com todos os brasileiros e ainda como se o aumento de potencialidade aquisitiva significasse também de qualidade de vida, de conhecimento, de pertencimento nacional. A proposição desse tipo supõe que os brasileiros são todos os mesmos, quando se sabe que os vinte milhões de miseráveis existentes não são brasileiros, argentinos, peruanos, venezuelanos, são nada, a nada se identificam, a símbolo homogeneizador nenhum se ligam.

Outras vezes diz-se que os brasileiros viajam mais para o exterior, quando se sabe que alguns voltaram a poder viajar e outros passaram a poder fazê-lo. Aqui, a parte pelo todo é evidente, porque brasileiros aí esconde o número dos que não podem viajar – maior que os que podem – e submerge a necessidade de qualificar quem são os tais brasileiros da proposição.

Claro que os dois exemplos anteriores são de casos voluntários clássicos de metonímias desonestas. O desonesto e o voluntário parecem-me menos interessantes que os usos consagrados e involuntários de discursos e termos de conservação, até porque menos eficientes e mais caricatos que os mecanismo inerciais não percebidos.

Afinal, milhares terão lido a despretenciosa reportagem do Diário de Pernambuco e não se terão perguntado se as empregadas domésticas, constantes ou avulsas, têm família. Dada e aceita a antítese entre contratantes e contratados, nada resta a ser pensado pelos integrantes de famílias…

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