Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 26 of 126)

Preconceito de classe.

O caso mais evidente de preconceito de classe, a unir parte do 01% a parte da classe média escrava dos primeiros, é aquele que resulta na Lulofobia. Não é disso que pretendo falar brevemente. Lula é figura emblemática, mítica mesmo, que concentra essas manifestações, como alvo preferencial, e concentra também comentários e análises.

Todavia, o preconceito de classe tem várias manifestações, algumas delas até mais interessantes, afastando-se o viés puramente político, que a Lulofobia. Ele, o preconceito de classe, é mais forte que o verniz técnico e acadêmico que a classe média ostenta orgulhosamente. Ele está em tudo e sua mais interessante manifestação é a contradição de um grupo que se diz democrático pregar diretamente contra a democracia.

Ocorre, no Brasil, de se elegerem, aqui e ali, parlamentares não extraídos do empresariado e das máfias do direito, da medicina, das igrejas cristãs e da engenharia. Ainda é raro, mas tem havido a escolha popular de representantes populares. Um dia, teria que haver.

Esses parlamentares, deputados federais, deputados estaduais e vereadores, costumam ter alcunhas deliciosamente arcaicas, daquelas que associam a um nome a profissão ou o lugar de origem do sujeito. São os Chico da Feira, Zé da Sopa, Antônio Sapateiro. Isso dos nomes faz a delícia da pequena burguesia, grupo ávido pela chacota vulgar e apontadora do dedo. Ávido por rir da queda, do aleijão, da gagueira.

O médio-classista típico, ascendido socialmente há uma ou duas gerações, orgulhoso do seu diploma de alguma coisa, piegas e grosseiro porque o diploma não o instruiu nem o tornou delicado, volta suas baterias contra o palhaço, o futebolista e o feirante que se elegeram parlamentares. O foco centra-se precisamente na origem do parlamentar, que se evidencia nas suas posturas, expressões corporais, na maneira de falar, na sua vestimenta. A crítica pequeno-burguesa é baseada nos símbolos que ela percebe e a partir dos seus padrões distorcidos e pobres.

Dirão, em uníssono, que é absurdo o nível dos parlamentares que se encontram nas casas legislativas. E o dirão com ares e falares que são exclamações a cada pausa. Dirão que esse povo é mal educado e por falta de educação elege representantes inadequados, porque vestem-se, falam e têm origem social que os associam ao burlesco.

Esquece-se a pequena-burguesia enfurecida que ela é meio de cultivo da grosseria, do arremedo de modos estranhos, da cultura semi-letrada, da moralidade de mão única, do oportunismo, do cultivo da falsa ingenuidade e da falsa modéstia, da covardia. Ela é incapaz, salvo por alguns exemplares que devem sua excelência ao azar, de valores positivos e não copiados.

O pequeno-burguês afirmativo faz-se forte na meritocracia, que identifica ao seu saber meramente técnico, que não transborda um mililitro para outras sendas. O sujeito licencia-se em direito – para usar o exemplo mais comum – e não sabe coisa alguma que não seja o besteirol que aprendeu na faculdade e nos  cursos para ingressar no nirvana do serviço público.

Ou seja, são vagas de técnicos superficiais, ruins até na técnica que estudaram, incapazes de juízos estéticos, incapazes de pensarem por sí próprios, desconhecedores de história, de literatura, de ciências naturais, de boas maneira, de tudo, enfim, a porem o dedo acusador sobre o personagem burlesco que traz a legitimidade popular.

E essa gente repete – sem saber o que significa – o discurso aprendido segundo o qual há um estado de direito, que passa por eleições e é, por isso, democrático. Mas, no fundo, ignora o que pode haver por trás do discurso, seus fundamentos; sabe nada de democracia e suas noções de encadeamento lógico são primárias.

O que o pequeno-burguês linchador acusa no parlamentar de origens humildes é ele mesmo, é o que há nele mesmo, exceto o oportunismo, claro.

Oscar Niemeyer e Filopseudeis.

Não falarei de Niemeyer, pois que seria presunção e inutilidade. Dele falam os prédios que fez, como de Velazquez as Meninas, o Crucificado e a Forja. O elogio fúnebre faz-se dos soldados desconhecidos tombados em combate, precisamente por desconhecidos e não artistas.

Os artistas não se elogiam, apreciam-se-lhes as obras e isso basta.

Mas, há quem faça, tanto os elogios fúnebres, como as acusações pósteras. Os resultados vão de nada à vilania mais pura, pela ordem.

Filopseudeis, presentemente empregado na redação de uma revista, deu-se à acusação póstera do grande artista, com a previsível exposição da incontida vilania. Ele é muito representativo de certo estado de alma mais comum do que gostaríamos de supor: a entrega total à desonra, à grosseria e à vulgaridade.

A partir da década de 1980 intensificou-se o triunfalismo da sentença curta, aparentemente chistosa, aparentemente brilhante e claramente agressiva. O banditismo selvagem destes anos, que se quis batizar de neo-liberalismo e pretendeu-se o anúncio da parúsia, teve bastardos. Um deles auto-intitulou-se intelectualidade pós-moderna.

Como todos que participam de grandes anunciações, essa nova seita não precisa de qualquer moderação, pensamento, dialética, boas maneiras, nem nada que lembre os antigos bons modos, sejam de pensar, sejam de agir. Os portadores da boa-nova podem expandir-se como bem quiserem e seu dizer as coisas é cortante, grosseiro e supõe-se inquestionável.

Semi-letrados triunfantes a soldo de funcionários de bancos enfatuados em Armanis e ostentadores de Rolex que se passeiam em BMWs esportivas são a morte da intelectualidade. O modelo criou público adequado para si: uma massa que acredita, já em segundo grau, que a acutilada derramadora de gotas purpúreas é a suma manifestação da mente brilhante.

As massas não pedem sangue , senão que não pedem além do que recebem. Se é sangue ques lhes dão, é ele que antes recebem que pedem.

Lula e o ódio de classe.

Está em marcha um conjunto de ações concertadas para interditar politicamente o ex-Presidente Lula. À frente desta operação estão parte majoritária da imprensa, dois ou três partidos políticos em decadência, um em ascensão, meia dúzia de empresários, meia dúzia de banqueiros privados, partes do judiciário e do ministério público.

O ódio profundo a Lula, como tudo muito intenso, não se explica apenas por razões utilitárias, assim como não se explica racionalmente o ódio de alguns homossexuais e de algumas mulheres reprimidas pela liberdade sexual . Se fosse resultado do conjunto de ressentimentos dos que perderam algo por conta das ações do ex-Presidente ao longo de oito anos de governo, seria muito menos intensa essa raiva. Mas, é algo a passear no campo do fetiche.

Nos anos de governo Lula, os banqueiros privados perderam alguma coisa, mas foi pouco. O que se perdeu por os juros dos títulos públicos terem baixado de patameres obscenos para níveis razoáveis, ganhou-se com a ampliação da tomada de crédito pelas camadas mais baixas. Ao final, ampliou-se a base de clientes e os bancos foram obrigados a agirem como bancos e não apenas como receptores de juros de títulos públicos, extorquidos à sociedade por meio do Estado.

A imprensa não perdeu por conta do Lula mais que perderia pela marcha da história. O que perdeu, deve-o ao seu laborioso projeto de estupidificação coletiva, coisa que tornou seu público mais difuso e menos fiel. Na verdade, em termos financeiros, a imprensa teve perdas a se porem na conta de seu próprio funcionamento anti-empresarial. O governo Lula não diminuiu os gastos públicos com propaganda, nem alterou sua divisão entre os meios.

As classes sociais intermédias e alta nada perderam, embora tenham a percepção de ter perdido. É que elas fazem a comparação sem termo fixo, o que conduz ao equívoco das relações entre expectativas. Ora, se eu comparo o que recebo com o que acho que receberia idealmente, em tal ou qual situação, o resultado pode ser um abismo.

As classes altas, o 01 %, esses nunca perderam nem perderão, mesmo se houver uma revolução. Nos grandes rompimentos que às vezes vêem com as revoluções, o 01% perde alguns espécimes por eliminação física, mas nunca o que possuem. Lembrem-se os superficiais que 01% não é uma figura metafórica, é um em cem mesmo. Lembrem-se, para evitarem equívocos vulgares, que os expropriados de terras na revolução russa de 1917 não compunham o 01%. Os componentes desse seleto grupo foram-se para Lutécia e seu dinheiro continuou a escravizar o novo governo e o povo, claro.

Na verdade, em termos materiais, todos ganharam nos oito anos de governo de Lula, porque a distribuição de rendas melhorou marginalmente e a economia cresceu substancialmente, o que significa dizer que o 01% foi quem mais ganhou, o que é quase uma lei natural. É claro que poderiam todos terem ganhado mais, se o mundo não entrasse numa crise de excesso de dinheiro falso.

O que explica, portanto, o ódio a Lula, não é o que realmente perdeu-se, é o que se deixou de ganhar em comparação à expectativa de manutenção de uma escravidão absoluta. Essa perspectiva de manutenção pétrea de uma massa de escravos permite esperar um aumento constante de apropriação e o distanciamento relativo das classes médias das mais baixas. Pouco importa, para a classe média, que a distância entre ela e o 01% também aumente, porque ela, cega, não vê o 01%, embora arremede o que acha serem os modos desses poucos desconhecidos.

O ódio ao Lula tem raízes no preconceito de classe. Se assim não fosse, seria impossível vender, com êxito relativo, essa raiva a quem não tem razões para tê-la. O preconceito de classe é atitude profundamente inercial, ou seja, quem não o tem tem pouca propensão a desenvolvê-lo e que o tem tem grande propensão a mantê-lo.

As classes médias são a inércia transplantada para o âmbito social, com relação aos costumes. Um acúmulo de energia que trabalha para a conservação como o leão busca matar sua fome, como busca matar sua fome quem não tem a sensação de segurança ou a de total insegurança.

Esse grupo não percebe as diferenças entre pertencimento de classe social e pertencimento de classe econômica, o que vem muito a calhar para seu oportunismo atávico. Talvez, em verdade, perceba e confunda propositadamente as coisas, e isso devo confessar que não é muito claro para mim. Um exemplo vem a calhar: pertenço à mesma classe social de muitos dos mais ricos da minha cidade, mas não à classe econômica deles.

 O esforço de conservação das classes médias é o elo perdido das ciências sociais, ou seja, é a ponte entre o natural e o social. Aquilo que denuncia a inverdade do puramente natural e do puramente social, coisas que existem misturadas nesse estrato, como se tudo fosse uma inclinação e uma repetição, ao mesmo tempo.

Lula significou para essa gente uma ameaça à inércia. As coisas iriam mover-se novamente e, por mais óbvio que o movimento não deslocasse muito as posições relativas, haveria ameaça e houve. O sujeito que pemanece ou ascende, mesmo que tenha posição subalterna em relação a outros, é cioso de sua posição superior relativamente aos que escraviza. Isso deve permanecer assim para que as coisas pareçam normais.

As relações do tipo superior e subalterno não se modificaram – houve apenas deslocamento em bloco para cima – mas o temor incutiu-se na classe mais medrosa, venal e moralista que há. Ela eriçou-se, amedrontada, contra a ascensão que em muitos casos foi dela própria.

Agora, cabe distinguir agentes e objetos da ação, em dois graus. Agente é o 01%, que pretende o aumento da acumulação até ao infinito, o que não é teoricamente impossível e desculpe-me Carlos Marx. Objetos e agentes da ação são, em grau menor, os componentes da camada média, que obedecem aos desígnios de cima e à inclinação própria de quem está no meio.

Assim, o que a imprensa fez foi semear em terras férteis, embora pouco extensas. Ela obteve o ódio irracional, mas isso dará em quê, excepto na denúncia inútil de atemporal moralismo de amorais? Em golpes de estado patrocinados, hoje, pela burocracia estatal judiciária pseudo-meritocrática?

Depois de impedir politicamente Lula, o que farão? Impedirão partidos? Ou impedirão um a um, caso a caso?

Oblivion.

A beleza vem da graça, da proporção e da violência. Não da brutalidade fria que o vulgo confunde com a força vital que é a violência.

Não vem de qualquer coisa moralizante, nem de qualquer anacronismo mediato ou imediato; portanto não vem de arremedos infantilizantes ou senilizantes.

Vem de formas graciosas. Não dramáticas, mas trágicas. Vem de esforço, não de abandono.

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