Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 23 of 126)

Brasil: promiscuidade público privada essencial.

Os estamentos mais elevados da burocracia estatal brasileira, seja eletiva, seja meramente seletiva, prestam enorme desserviço à implantação de uma república a merecer este nome. E não se trata aqui de falar desse moralismo difuso anti-corrupção, que não sabe mesmo de que fala.

Trata-se de vício essencial a demonstrar, primeiro, que as preocupações com corrupção são contraditórias e, segundo, que a percepção do que é corrupção é corrompida ela mesma.

Corrompida essencialmente é a noção de espaço público e privado, conveniente e inercialmente imbricadas num todo em que as distinções são pontuais e de mera conveniência.

É básico que funcionários públicos, que em teoria não atuam para nada mais que o interesse geral, não podem colocar-se em situações que insinuem conflitos de interesses. Todavia, no Brasil, esta noção básica é atropelada sem quaisquer cerimônias, ao tempo em que o discurso permanece absolutamente contraditório.

É deformante que funcionários públicos tenham e aceitem presentes e privilégios, mas aqui eles os têm e aceitam. Com relação aos presentes, habitualmente os esquecem, como a tentar fazer deles um nada ou uma normalidade silenciosa. Com relação aos privilégios, defendem-nos com o discurso puído de defesa da atuação e não das pessoas.

É antiquíssima a enunciação de que juízes não podem receber presentes. Tão antiga quanto evidente e coerente, posto que resolver conflito entre partes implica não se relacionar com elas. É intuitivo que o relacionamento do juiz com uma parte desloca sua percepção e anula qualquer possibilidade de imparcialidade. Sem imparcialidade, convidam-se os litigantes ao uso da justiça privada, da força.

Pois, no Brasil, acha-se normal que juízes, em grupos associativos, recebam presentes, que atendem pelo eufemismo patrocínio a eventos. Um sindicato ou associação de juízes recebe, assim, de empresas privadas, passagens aéreas, diárias em hotéis de luxo, refeições caras, automóveis para serem sorteados entre os integrantes.

Da mesma maneira, sindicatos e associações de funcionários públicos com algum poder decisório obtém junto a montadoras de automóveis descontos na compra desses produtos, obtidos única e exclusivamente pela circunstância de reunirem certa corporação estatal.

Curiosamente, os beneficiários desses presentes não acham que estejam a ser comprados nem detem-se a pensar na especificidade das benesses, ou porque o sindicato dos coveiros não obtém as mesmas coisas para seus associados.

Isso de não se acharem devedores dos dadores das prendas é realmente preocupante, porque pode ocorrer que realmente os agraciados acreditem-se merecedores daquilo tudo a troco de nada, a revelar imensa ingratidão e defeito de caráter maior que aceitar as prendas. Aceitá-las e dar nada em troca é realmente vil!

Bacalhau de forno, com batatas, alhos e cebola.

Não falo dos erros nas aventuras culinárias de finais de semana, por razões claras. Seria desonesto escrever sobre um prato que deu errado, embora não seja desonesto escrever por escrever, como se faz um exercício, sobre o que resultou saboroso.

Os dois últimos bacalhaus não chegaram ao desastre, mas resultaram ruins. Uma vez, o sal foi-se embora todo, outra ficou em demasia. Outra, ainda, resultou em batatas mal cozidas, algo realmente desagradável ao paladar.

Mas, algo simples como bacalhau com quase todos os úteis ao forno é de se acertar um dia. Hoje, resultou espetacular, o bacalhau dessalgado na medida certa, com pouco menos que 24 horas de molho em água trocada somente duas vezes, as batatas na medida correta de cocção.

Comprei bacalhau em lascas, o que significa que o peixe é um pouco mais que ordinário, porque o bom compra-se em lombos ou postas. Mas, para o propósito de cozê-lo ao forno com bastante azeite de qualidade, cebolas, alhos, cebolinhas e batatas, até que serve.

Não lembro quanto tempo deixei as batatas na água fervente, mas fiquei a provar sua maciez com uma faca e retirei-as da panela no ponto certo para fatiá-las e submetê-las a mais trinta minutos de forno a médio lume.

Deitei as lascas de bacalhau dessalgado numa piscina de azeite, pelo que saiu de um banho de água para um de olívico óleo. O azeite impregna o bacalhau mesmo que o banhe apenas por duas horas. Na assadeira em que estavam o peixe e o azeite pus alecrim e algumas folhas de louro. Surpreendente é que pus na quantidade certa, ou seja, pouco.

Alecrim não é como alho e cebolinha, que muito dificilmente são muitos em qualquer quantidade, então convém ter atenção. Os que podem abundar, abundaram: dois molhos de cebolinha cortados em rodelinhas e dez dentes de alho inteiros e uma só cebola cortada de forma caótica. Depois, as batatas cortadas em rodelas, com casca ou sem ela, na medida da vontade das cascas de se soltarem ou não.

Assadeira ao forno médio por poucos trinta minutos; arroz branco e, heresia, vinho tinto argentino.

Brasil: República que não é, democracia sem povo e estado sem direito.

A história do Brasil teve poucos momentos de poder político efetivamente escolhido democraticamente. O que se chama democracia representativa – abstraindo-se seu caráter meramente formal – vigorou de 1946 a 1964 e, depois, de 1989 até o presente.

Não incluo a república velha porque aquilo não era propriamente democracia, dadas as barreiras a impedirem a capacidade eleitoral ativa. Muito pouca gente votava, eis a questão.

Observa-se, nestes dois períodos democráticos, uma viragem muito interessante dos escolhidos para atenderem a interesses da maioria dos escolhedores. Essas eleições no sentido de se beneficiar número maior de pessoas não significaram necessariamente escolhas à esquerda. Significaram, basicamente, escolhas a rejeitarem duas coisas: o entreguismo e o rentismo.

Nenhum presidente brasileiro nos dezoito anos antes do golpe de 1964 e nestes vinte e quatro depois de 1989 foi de esquerda, no sentido próprio de fazer drástica redução da desigualdade na apropriação das riquezas produzidas. Por outro lado, nenhum, à exceção de Fernando Henrique Cardoso, foi entreguista, nem mesmo Jânio ou Collor, talvez por lhes ter faltado tempo.

Todavia, o pouco que se experimentou de democracia formal nestes dois períodos foi suficiente para revelar sistema profundamente desfuncional. A democracia, por pouco de ameaça que represente aos poderes reais numa sociedade massificada, sempre foi assumida pelo 01% como algo terrível. E, por outro lado, sempre teve significados cambiantes para os estratos médios que vivem das migalhas do 01% e têm tempo para se desinstruir cotidianamente.

Tanto a tenacidade, quanto o êxito obtido por este esforço do 01% são coisas merecedoras de estudo, no caso brasileiro. Claro que parte do êxito de termos democracia deformada advem dela ter sido desenhada com pontos de fuga sob medida para se evitarem seus aperfeiçoamentos e manutenção. O modelo jurídico do estado brasileiro é essencialmente anti-democrático mas com eleições.

Dois fenômenos, cada um capitaneado por certo grupo de interesses, anunciam a erosão que pode levar à ruína do que nasceu para viver pouco. De um lado, dentro do próprio estado, há corporações que não dão contas a ninguém, agem em benefício próprio e dos seus mandatários e detém poder formal e material. São as magistraturas judicial e do ministério público, entidades destituídas de legitimidade democrática que agem em clara exorbitância de seus poderes.

Essas corporações são representantes do conservantismo, papel que desempenham até desinteressadamente em alguns casos, por inércia mesmo, isso que de tão importante é reiteradamente negado. Existe inércia social, assim como existe acaso, imprevisão e impossibilidade de controle.

Além dos componentes destas corporações serem recrutados maioritariamente nas classes médias-altas, eles sentem-se devedores de ninguém, porque ignoram que nascer em certo estrato, numa sociedade profundamente desigual, já é dever a todos os demais, acima e abaixo. É interesaante notar que a dinâmica corporativa estatal é tão forte que um e outro egresso de classes mais baixas rapidamente torna-se mais conservador que o conservadorismo, no que ajudam muito o desejo de disfarçar-se e de mostrar-se mais realista que o rei.

Numa democracia formal, em que poderes legislativo e executivo são eleitos por sufrágio semi-universal e que proclama princípio de igualdade ante a lei, ser conservador é precisamente negar aplicação às leis, conforme caprichos mal explicados e momentâneos: precisamente o que se tem visto fazerem o judicial e o ministério público, no Brasil.

A resistência do 01% e de partes das classes médias volta-se contra o império da lei em sentidos formal e material e contra o princípio de igualdade de todos em face da lei. Obviamente, seus instrumentos para violar os dois princípios são as corporações que lidam com aplicação de leis, que se convertem em fazedores de leis caso a caso. Aparente paradoxo…

Fosse o Brasil sociedade com mais que meros quinhentos anos de história, a violação das regras por quem as deve aplicar assustaria as pessoas. Fôssemos mais honestos e menos hipócritas, defenderíamos ditadura aberta, a rejeitar os disfarces e a farsa dos poderes contidos em limites bem delimitados. Mas, somos o que somos, uma sociedade que percebeu mais que em qualquer outra parte a utilidade da mentira.

Daí que temos textos a dizerem haver poders harmônicos e com atribuições específicas, quando na verdade há sistema com pontos de escape muito bem estabelecidos para violar-se a democracia sob aparência de a exercer.

De outra banda, a erosão da democracia formal advem de manifestações que supostamente a realizam à letra. Grupos que à origem nada têm a ver com política entram no jogo político a tentar moldá-lo aos seus preconceitos morais e religiosos. Subvertem o jogo democrático porque instilam no debate público coisas que somente se relacionam com o privado.

O privado somente interessa ao público no que tange a defender liberdades fundamentais que não devem ser sacrificadas a bem de supostos interesses maiores. A entrada no jogo político de grupos cristãos organizados em torno a regras de cunho religioso subverte a essencia do estado de direito que protege o indivíduo desse tipo de prescrição a que somente se adere por vontade própria.

O estado supostamente defende as liberdades de culto, de ir e vir, de casar-se ou não e com quem se quiser, de trasladar patrimônio, de não pagar tributos para subvencionar cultos religiosos, enfim, um plexo mínimo de coisas com que a maioria pode estar de acordo. Ao entrar em cena a pressão política organizada dos cristão, o jogo sai das regras porque as opções condicionam-se por variáveis que não se podem considerar comuns a todos.

Com relação a liberdades civis, o debate tende a tornar-se o mais estúpido possível e percebe-se a insinuação da similitude do religioso ao científico. Essa similitude existe e evidencia que ambos devem ser rejeitados. Não se cuida de religião nem de ciência quando o estado garante às pessoas que se unam a partir de um contrato que prevê várias coisas, entre elas a divisão e a transmissão de patrimônio: cuida-se da liberdade de unir-se e nisso não importam religião nem ciência.

É claro que o avanço político dos grupos de pressão cristãos no Brasil é questão de poder. As religiosidades de matriz greco-judáicas são todas bem talhadas para o jogo de poder, porque são normativas e esquematizadas na lógica do código e do tribunal. Poucas coisas são mais parecidas que uma religião greco-judáica e um qualquer poder judicial. No mundo inspirado pela tragédia do encontro de semitas e gregos, o direito e a religião são faces de um mesmo plano.

Obviedade: a tolice é terrível e profundamente cansativa. Mas, o mundo é dos tolos.

O mundo é dos tolos ou, talvez melhor dizendo, das tolices. É conclusão desagradável, mas seria desonesto chegar a ela e não no dizer.

A tolice mais agressiva com que me deparo é aquela de tomar a parte pelo todo e pensar por associações primárias de coisas que não se implicam necessariamente. Não foi à toa que Ortega y Gasset disse ser mais difícil dissociar idéias que as associar. É mesmo, porque dissociar implica pensar, ao passo que as associações fazem-se arbitrariamente segundo esquemas de pressuposições improváveis.

Lembremos, por exemplo, que se deu às massas o seguinte esquema: Fulano consome substâncias ilícitas; quem consome tais substâncias é inclinado ao delito; logo Fulano é inclinado ao delito. O silogismo é perfeito, mas as premissas não têm qualquer coisa de provável.

No exemplo precedente podem-se perceber várias ausências de significação. O consumo de substâncias legais e ilegais pode levar ao delito; pode-se delinquir independetemente do consumo de qualquer coisa; pode-se delinquir por necessidade, mais que por inclinação. A premissa vai de improvável a absurda, a depender do grau de lucidez a acuidade de quem a analisa.

É fácil associar porque as falsas relações estão dadas, mais que por manipulação das premissas. Trata-se da oferta de uma ementa pre-estabelecida de relações que trazem sua validade implícita, ou seja, de uma grande petição de princípios.

Por exemplo, se eu digo que não gosto de basquetebol o tolo perfeito acha que não gosto de esportes em geral, porque ele toma a parte pelo todo e é escravo da obrigação de dizer – ou sinceramente crer – que gosta de todos os esportes, como se fossem uma coisa única e sem distinções. Ao tolo perfeito foi dada a obrigação de associar automaticamente o gostar de esportes ao gostar de todos os esportes, mesmo que não goste desse ou daquele.

Quando a tolice associativa chega ao terreno minado da religiosidade o perigo é grande. Aqui, estamos na ante-sala do acendimento das fogueiras, sempre pelos motivos mais justos. A massa queima quem ela não compreende. Principia a queimar com as chamas suaves das palavras simplesmente imbecis e finda por fazê-lo em termos físicos.

A ameaça ao homem-massa – o perfeito tolo –  provém não apenas de quem pense, mas de quem não se possa apreender nos poucos modelos associativos de que ele dispõe. Disseram ao perfeito homem-massa que há fórmulas a serem ditas pelos que são como ele; logo, quem as não disser é diferente. Pelo modelo associativo recebido, não repetir as fórmulas é causa de exclusão, portanto dá-lhe um rótulo, que é a primeira tentativa de exclusão.

A segunda exclusão tarda pouco e é física. O tolo triunfará, isso é um axioma.

O golpe de estado de 1964 acordou o pior da pequena burguesia.

Não falarei do entreguismo, força que subjaz ao golpe de estado dado em 1964, no Brasil. Falarei dos efeitos laterais da ação para manter o Brasil mais fielmente vassalo de interesses externos.

Instalada no poder a corporação militar a serviço de Jonhson – e, portanto, dos bancos e do complexo industrial-militar – houve condições para a ascensão social de partes da classe média, que nunca tivera grandes poderes decisórios, ainda que fossem os de escolher despachar um papel de um setor a outro de uma repartição pública.

O pessoal próximo aos níveis superiores tratava diretamente com os representantes do Departamento de Estado e das grandes corporações. Esse grupo apropriava-se imediatamente de dinheiros recebidos de fora e roubados do Estado. Era questão de receber, comprar imóveis e pronto. Os mais grandes, mandavam dinheiro para a Suiça.

Essa gente mais de cima é violenta no que consente na violência e no que rouba muito; é a violência no atacado, contemplada e planeada em conversas amenas e sem planilhas. Maquiavel explica esse grupo, o que torna as coisas muito mais fáceis de se perceberem.

A pequena classe média, aquele fermento de todos os fascismos, atua em outra frente. Rapaces a não poder mais e medrosos na mesma medida, gozam das migalhas que caem da mesa dos donos do poder e têm uma característica muito própria: ódio. A par com a vontade de poder, têm algo terrível, que é o ódio aos melhores, aos mais pobres e aos mais honrados. O poder real não odeia, manda.

Nenhum poder ditatorial pôde negar-lhes a saciação de seus desejos. Nenhum Rei e nenhum Bispo de Roma pôde negar aos seus subalternos o direito a queimarem seus inimigos. Claro que boa parte dos bandidos estetas nunca deixou de se escandalizar com isso, mas não deixou de praticar a política que mantém o poder: então, se querem queimar, violar, espancar suas vítimas, que o façam.

No Brasil do golpe de 1964, a distribuição dos subornos à classe de apoio fez-se primorosamente. Quem queria subornar a função pública pôde; quem queria ganhar dinheiro deixando-se subornar, pôde; quem queria espancar, meter cabo de vassoura no cú dos inimigos, dar choques nos testículos, afogar, fazer chafurdar na merda, arrancar unhas, pôde fazê-lo.

Quem, mais pudico e aveso a sangue e fezes e urina e gritos lancinantes quisesse aproveitar-se podia apenas progredir nas carreiras públicas ou nas IBMs, Coca-colas, Fords, Volkswagens e outras mais corporações privadas que gozavam de amplo espaço.

Quase trinta anos depois do fim formal desta festa de sangue sem suor, boa parte dos escravos ascendentes é gente rica. Sem nada do que a teoria pueril do merecimento prediz, grande parte dessa gente é rica, hoje. É rica e tão ou mais desprezível que era há quarenta anos. É rica e muito pouco rica em relação aos que sempre foram e são.

Pensando-se bem, essa gente não é pior que os donos do poder, que não são os eleitos de qualquer partido. Mas, o que essa camada média faz, quando ascende a recebedora preferencial das migalhas do poder, é, sim, o pior. Os piores príncipes são-no porque precisam deixar esse grupo fazer o que quer. Eles, os príncipes, consentem nisso, porque o poder é comprar a camada média, seja para beneficiar a uma minoria, seja a uma maioria.

Divindade mesquinha. Ou, no começo, o Homem criou Deus.

Os pontos centrais da idéia de divindade são criação e transcendência. Embora o primeiro ponto não implique logicamente hierarquia, assim admite-se que seja e, portanto, que criadores são superiores a criaturas. Os primeiros sabem perfeitamente bem o que são os segundos; o que farão; quais obras serão as suas.

Esses dois pontos centrais imbricam-se. Convém separá-los, todavia, que mesmo parecidos não são a mesma coisa. Mas, ambos são insistentemente negados nas afirmações mais comuns dos crentes de todos os credos greco-judaicos. As negações têm o mesmo sentido e permitem abordá-las todas conjuntamente.

A divindade greco-judaica é um decalque do pior homem disponível. Ela é, sob esse ponto de vista, construção democrática a reunir muitíssimos caracteres e inclinações, de forma a compor algo que permita pontos de identificação amplos.

É difícil apontar se é o legislador ou é o juiz o pior modelo humano, então reunem-se as duas figuras e tem-se o modelo prototípico em torno a que gira tudo na religiosidade greco-judaica. Ela estrutura-se juridicamente, seus cleros são funções burocráticas de dar regras e interpretações.

Não há maiores dificuldades para perceber que divindades assim criadas – e aqui convém dizer que o serem criadas não lhes retira existência – revestem aspirações de seus criadores e comumente as mais comezinhas. O mesmo sucede com a legislação autorizada por essas divindades, corpo jurídico que desce a minúcias sobre vestimentas e alimentos e, evidentemente, condutas sexuais.

Nada obstante tudo isso seja de humanidade claríssima, é imperioso traçar-lhe genealogia divina e dizer das regras que são emanadas da divindade criadora e transcendente. Entra em cena o absurdo em forma pura: a revelação. Absurdo porque o transcendente nada pode dizer ao intranscendente, pois que romper a incomunicabilidade significa nada mais que negar a própria transcendência.

Todavia, a maior paixão humana não é por dinheiro, sexo ou poder político. A coisa mais sedutora, mais apaixonante, aquela que mais atrai o homem, é o paradoxo, a contradição profunda, o absurdo. Conviria aceitá-lo sem mais arrodeios e entregar-se a este vinho resinado irresistível que nos conduz a celebrar os mistérios porque são misteriosos e nada mais.

Mas, não. Precisamos estruturar as coisas juridicamente, a partir do dogma da estratificação normativa piramidal, assumindo a existência de norma fundamental perene que dá legitimidade às inferiores, deduzidas logicamente por um corpo de especialistas que se ungiram em meio-deuses.

Não é de estranhar-se que o fetiche constitucionalista seja tão forte na parte do mundo inspirada na cultura greco-judaica, afinal todas elas vivem sob estruturas clericais paralelas, uma falando da divindade, outra da constituição. No fundo, legisladores, juízes, padres, rabinos, intérpretes do Corão, pastores, são todos funcionários de um mesmo modelo.

Nessa marcha da insensatez, o normativismo hierarquizado visou e visa sempre a definir algo essencialmente anti-normativo: a natureza humana. Não por humana, mas por natural, ela é inapreensível dogmaticamente e impossível postular-se objeto de alguma revelação. Ela é e basta-lhe alguma ontologia e que fique pelo ser sem predicativos.

No modelo greco-judaico o estar conforme à religiosidade afere-se exatamente como se afere a legalidade de uma conduta, o que é muito coerente, deve-se dizer. Não se cuida aqui de mais que a conformidade a regras jurídicas que ditam comportamentos e visam a proscrever outros.

A absurdidade, contudo, está em que os juízes e os legisladores são os mesmos e agem de maneira nitidamente casuística, o que se evidencia na flexibilização das regras. Ora, se se tratasse de averiguar a conformidade de condutas humanas com regras dadas pela divindade, estaríamos diante da impossibilidade de qualquer flexibilização e não haveria intérpretes, porque um deus legislador ambíguo seria também um piadista.

Margens, interpretações, ambiguidades, sentidos falsos e verazes de uma proposição são coisas demasiado humanas e soa a heresia pô-las na conta da divindade. Anacronismo e perda de vigência por conta da história, por outro lado, não são coisas que se harmonizem com um legislador eterno e portanto fora do tempo.

Um criador transcendente não implica absolutamente um legislador, sob pena de, sendo parcial, não ser criador trancendente. Ora, legislar é fazer qualquer coisa contra alguém e a favor de outrem, política, enfim. Contra e a favor não são adjetivos que se possam apor a ações de um criador transcente, até porque a única ação minimamente cognoscível seria a própria criação, que não é adjetivável.

Decorre outra contradição profundamente blasfema, que é a crença na possibilidade de se agradar algum deus. Ora, um deus que sinta júbilo, que se sinta agradado com essa ou aquela homenagem, não é transcendente, nem que se torça a lógica aristotélica até que ela verta lágrimas. Um deus sedento de homenagens é o pior dos homens, na verdade.

Eduardo Campos vende a alma já em 2013?

Não há qualquer mística neste assunto; a conta é simples. O governador de Pernambuco, Eduardo Campos, anuncia-se candidato para as presidenciais de 2014. A presidente Dilma Rousseff, muito bem avaliada popularmente, será candidata à reeleição.

Assim, Eduardo tem que ser candidato pela direita, porque pela esquerda será Dilma. Esse besteirol de terceira via é algo que se utiliza para evitar que o favorito vença na primeira volta, apenas. Foi precisamente o que aconteceu com Marina Silva, a terceira-via absolutamente nada, que permitiu a Serra ir à segunda volta e perder de Dilma.

Creio que Eduardo não seja tolo e dado a indignidades a ponto de aceitar ser o candidato laranja da tal terceira via. Então, é razoável supor que será ele mesmo o candidato a presidente ou a vice-presidente pelo campo da direita.

Aí, chegamos ao ponto. Para ser minimamente viável contra Dilma, Eduardo terá que vender-se integralmente à TV Globo, única forma de contrapor-se a um governo bem avaliado. E convém não esquecer que não se vende meia alma…

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