Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 20 of 126)

Antigos senhores de escravos vivem saudosos.

É longa a recuperação das sociedades que conhecem pessoas com estatuto de coisa, objetos de direitos e não sujeitos deles. Esta situação, a do escravismo legalizado, somente é superada por dois meios: a luta – o que implica escravos relativamente bem instruídos – e a inviabilidade econômica de manutenção da escravidão legal.

No Brasil, que foi aquinhoado por Deus e por seus espíritos mais próximos, caídos ou não, com uma classe dominante especialmente genial, o escravismo legal foi abolido porque não fazia mais sentido econômico e porque prejudicava as exportações de colônias inglesas que não tinham mais este tipo de mão-de-obra.

Ele deixou de ter estatuto legal, mas permaneceu longamente após a aquisição pelos ex-escravos do estatuto de sujeitos de direitos. Os câmbios sociais são muito mais lentos que alguma mudança jurídica abrupta possa fazer crer, o que revela o caráter teatral do jurídico quando se o compara com o social e econômicamente dinâmico.

Um grupo humano ter, em qualquer lugar, nos seus tempos iniciais, a divisão das pessoas entre coisas e donos de coisas é nada mais que evolução da anterior prática de matar os vencidos. Escandaliza os ignorantes e os preguiçosos de pensar a evidência de que a escravização é um passo evolutivo relativamente à simples eliminação de todos os vencidos.

Todavia, outro passo evolutivo é dado quando se reúnem as condições para explorar os vencidos de maneiras mais sutis que simplesmente os reduzir a coisas, objetos de compra e venda. O passo seguinte mantém estratificação social, com classes de cidadãos, embora suprima as distinções legais, exceto por um e outro grupo que mantém privilégios legais explícitos.

No Brasil, o escravismo de pretos era legal até há pouco, precisamente há cento e vinte e poucos anos. A escravidão persistiu muito forte até hoje, o que fica evidente para quem vir a divisão na apropriação de rendas, os índices de mortalidade por crimes, os índices de encarceramento por faixa de renda e por etnia. Enfim, todos os indicadores que se usem apontam para um fosso entre dois grupos.

É óbvio que as coisas estão muito menos ruins hoje, porque ao menos se tem a igualdade jurídica formal, aquela maneira de praticar a injustiça com mais aleatoriedade, o que dá às massas a sensação de que a igualdade material está próxima ou que nem mesmo é algo desejável. Hoje, em poucas palavras, os escravos têm TVs, aparelhos telefônicos móveis, leem tão precariamente quanto a classe média e recebem vez e outra o que os senhores lhes deixaram de pagar.

O aspecto mais destacado da herança escravista no Brasil é o emprego doméstico. Uma pesquisa recente, não me lembro de qual instituição, constatou que não há outro país com mais empregados domésticos que neste paraíso tropical dos 10%. É impressionante, principalmente porque não somos o país mais populoso do mundo e estamos muitíssimo atrás da China, da Índia, dos EUA, da Indonésia e provavelmente do Paquistão.

Uma quinta posição relativa a par com uma primeira absoluta – e considerando-se a imensa diferença para os mais populosos – é realmente uma vitória indiscutível nesta modalidade. É extraordinário em termos quantitativos e em termos qualitativos e revela que ficamos com o escravismo em realidade muito mais que com traços arqueológicos que se possam encontrar.

O emprego doméstico até há pouco não tinha jornada limitada em lei, não tinha fundo de garantia contra despedidas arbitrárias, coisas que todos os demais empregos têm há mais de cinquenta anos. A distinção, para quem se disponha a pensar – só a pensar, esquecendo-se de seus interesses de classe e pessoais – era simplesmente absurda, por destituída de qualquer razão.

Mas, vale a pena observar a distinção entre o tratamento legal de um trabalho e dos demais e a recente supressão dela. Ela, a supressão da escravidão formal e da violação ao princípio da igualdade, gerou reações que beiram a loucura. Além dessas reações, permite ver o quão longeva era uma diferenciação baseada em nada e que sempre pareceu a coisa mais comum e aceitável do mundo.

Tornou-se hábito repetir o lugar-comum tolo de que o texto produzido pelo congresso nacional em 1988 é a constituição cidadã. Ora, essa magnífica obra dos jurisconsultos brasileiros oriundos da oposição permitida ao regime ditatorial de 1964 a 1985 continuou a distinguir todos os trabalhos do trabalho doméstico.

Agora, o trabalho doméstico assemelha-se juridicamente, formalmente, aos demais e isso causa escândalo às classes médias e altas. Esse escândalo revela algo feio de ver-se, que é a estupidez. A burrice é mais feia que a má-fé, em qualquer perspectiva que tome em conta a estética e a história. A burrice é muito mais nociva que a má-fé pura.

Os médio classistas brasileiros, useiros contumazes do trabalho doméstico semi-escravo, insurgem-se contra a igualdade de direitos dos trabalhadores domésticos apenas com a sua raiva de quem perdeu algo e quer que esta perda tenha alcance de argumento. Assim, neste ambiente, tornou-se comum dizer-se que bons eram os tempos antigos, que as pessoas antigamente sabiam dos seus lugares, que se faz um favor oferecendo um trabalho doméstico a alguém e outras tolices do gênero. Claro, neste ambiente povoado por estupidez, há o argumento do mérito…

Para comparação, posso dizer que bons eram os tempos em que o Estado pagava 40% de juros ao ano, sem riscos quaisquer, sem ameaças inflacionárias, a troco de nada mais que ter o que emprestar ao Estado, por intermédio de algum banco. Era bom para mim, se tivesse o que emprestar, mas era absurdo para todos os mais que 90% que nada emprestam ao Estado.

Se eu ou a personagem que se enquadre neste papel for além de cuidadoso consigo um pouco menos estúpido, saberá que o assalto revertido não será uma violação de lei divina e estável, apenas a recomposição de forças e algo que me contraria. O que é ruim para alguém decorre de alguma vitória de quem estava perdendo, apenas.

Ter que pagar um pouco mais caro por escravos domésticos não é algo a violar os estados naturais, até porque o humano, pessoal e coletivamente, nada tem de natural: É algo violador dos interesses pessoais e de grupo e não significa violação de algum balanço natural de forças e de classes e de trabalhos.

Para as classes médias moralistas brasileiras, isso agrediu até um de seus patrimônios mais valorosos: a idéia de estar a fazer favores. Quando algo torna-se direito escrito, reduz-se um pouco o campo do discurso da concessão graciosa do que sempre se deveu. Eis aí algo mais importante que o preço em si: suprimiu-se de certa classe média piedosa a sempre conveniente oportunidade de dizer-se caridosa porque dá aquilo que a lei não exige.

Revista Veja nos estertores finais?

Tenho a impressão de que o pior da imprensa brasileira, que são a Globo e a Veja, experimentam mais uma volta no já apertado parafuso do baixo nível, do partidarismo aberto e da desinformação mal-disfarçada. Chegaram a tal ponto de maniqueísmo rasteiro e de destinação evidente a semi-alfabetizados e nazistas de nascimento que a coisa parece um pedido de socorro.

No caso da Globo, tenho para mim, com poucas dúvidas, hoje, que é sim um pedido de socorro e de acordo com o governo federal. A Globo deve muito a credores privados nos EUA – algo à volta de 2 bilhões de dólares norte-americanos – e deve muito ao Estado brasileiro, por conta de sonegações oceânicas de tributos federais, dívida que corrigida e acrescida de juros chega próximo a 800 milhões de reais.

Não é pouco dinheiro nem para uma grande corporação detentora de alto poder de desinformação e chantagem. Por isso, calculou cuidadosamente os movimentos de ataques infundados e violentíssimos ao governo e seus integrantes, sempre por um nada ou quase nada, na medida cronológica certa para interditar a presidente para as próximas eleições, dando o golpe, ou fragilizá-la a ponto de não precisar do golpe mediático judiciário e ganhar o pleito com qualquer um dos postulantes à direita.

Talvez a campanha moralista dos amorais natos tenha iniciado-se muito cedo, notadamente para empresa que se serviu de expedientes demasiado iníquos até para padrões da imprensa brasileira. Parecia que o governo seria mais covarde que o habitual, mas houve alguma reação à campanha sistemática de agressões quase sempre fundadas em puras inverdades.

Vieram à tona os casos das enormes dívidas de subsidiárias da Globo nos EUA onde, inclusive, a coisa foi parar nos tribunais e soube que girava em torno aos expressivos 2 bilhões de dólares. Soube-se, também, que a empresa fora autuada pela Receita Federal por vários ilícitos contra a legislação tributária brasileira, notadamente manobras para escamotear a ocorrência de fatos geradores de tributos.

O processo no fisco brasileiro montaria, em valores atuais, a cerca de 800 milhões de reais de multa. Este caso teve o agravante de envolver episódios dignos de novela, como foi por exemplo o caso da funcionária do fisco que roubou os autos e teria desaparecido o processo.

Particularmente, apesar das discretas mas desesperadas propostas implícitas de acordo, não creio que fosse inteligente o governo anuir porque acordo com a máfia só faz quem é mafioso e se dispõe a assim agir do começo até ao fim. Aconteceria o previsível: o governo deixaria de ser maltratado por qualquer coisa por três ou quatro meses e mais tarde voltaria a tomar pau no lombo em editoriais e matérias supostamente jornalísticas diariamente, ainda a tempo de jogar-se o resultado do pleito de 2014.

O caso da revista Veja é mais interessante, porque algo vertido em linguagem escrita apresenta por contraste e pela expectativa gerada contornos mais nítidos da baixeza de visão e superficialidade de abordagens. A Veja não pode ir além no maniqueísmo, na superficialidade, na manipulação, na negação da realidade, na distorção dela, na mentira pura e simples, porque ela chegou aos limites viáveis.

Mais além do que já foi, somente se se dispuser a estimular o assassinato de pretos, pobres e petistas somente por o serem, sem mais quaisquer arremedos de desculpas ou sofismas de botequim.

Uma revista destas semanais pseudo-informativas vive, entre outras coisas, do mito da imparcialidade, algo que lhes confere autoridade junto a seu público. Sua prática, além de violar evidentemente a imparcialidade, coisa que não existe nem é necessária na imprensa, consiste em levar o público ao desconhecimento. Assim, muito mais importante que noticiar e moldar respostas do público é deixá-lo na escuridão quanto a tal ou qual assunto, seletivamente.

Não era à toa que o falecido barão da Globo dizia, com muita sagacidade, que o importante não era o que o jornal da noite dava, mas precisamente o que não dava, porque assim era inexistência. Não é preciso ser tão sagaz quanto o barão global para saber que esta lógica diabólica funciona muito bem, mas pressupõe o monopólio da comunicação de massas.

A revista Veja não tem o monopólio das comunicações escritas, mas certamente atinge e seduz metade da classe média brasileira, o que se percebe a toda evidência quando se chega ao trabalho na segunda-feira. Qualquer ambiente de trabalho e principalmente alguma repartição pública terá dois ou três versões faladas do que continha a versão mal-escrita do final de semana passado. Essa gente chega ao trabalho ávida por reproduzir as propostas de linchamento que leu no seu veículo instrutor, bem como as jóias de ciência de astrólogos que a revista veicula.

Ora, a aposta na burrice é das mais seguras que existem, porque ela é superabundante. Acontece que nem todo o público cativo de alguma publicação deste nível integra uma malta criminosa organizada, ou seja, nem todos são empregados diretos e beneficiários do pessoal para quem trabalham as Vejas. Daí que essa gente que é apenas moralista histérica, semi-alfabetizada e demofóbica pode sentir-se traída em certas ocasiões.

Se se retirarem os associados e beneficiários diretos e indiretos da atividade mafiosa da revista e de seus patrões e os visceralmente conservadores – mesmo quando seu conservadorismo é contra si mesmo – restam as pessoas de boa-fé que se assustam e se escandalizam com a imoralidade da semana. Se a revista omite algum escândalo de roubo de dinheiros públicos, como no caso dos trens de São Paulo, ela pode estar sucumbindo à burrice que contra encontrar nos seus leitores.

A parcela do público médio que, mesmo com raciocínio binário, conservador e moralista, vir na capa de outra revista que um esqueminha desviou 500 milhões de reais do Governo de São Paulo, ao longo de vinte anos, e que foi comprovado por depoimentos dos que pagaram o suborno, ao ver na capa de sua Veja a milésima reportagem sobre exercícios físicos, boa forma, emagrecimento e que tais pode sentir-se um tanto traída.

Pois a Veja ignorou solenemente o que nem mesmo a Globo, o Estadão e a Folha de São Paulo tiveram coragem de fazê-lo. Esses outros meios deram a notícia banhada em eufemismos, mas a Veja suprimiu, pura e simplesmente.

A Globo, a Folha e o Estadão são demofóbicos e entreguistas e trabalham a bem da demofobia e do entreguismo, mas parecem não ler ligações umbilicais com certo partido político – ou a disfarçam razoável e esporadicamente – e têm algum instinto de sobrevivência. Dá-se algo notável com a Veja, que é sim e claramente um panfleto de um partido, sem mais disfarces.

Seu jogo é arriscadíssimo, porque o governo não a procurará e porque parte dos que a leem sentir-se-á traída pela gritante seletividade que omite algo impossível de ser ignorado, como é o caso oceânico de roubalheira nas compras de trens à Alstom e Siemens pelos sucessivos governos tucanos em São Paulo. Há conservadores que não integram bandas criminosas: são apenas conservadores e demofóbicos, mas emprestam sinceridade ao seu moralismo pós-udenista. Estes podem sentir-se feitos de tolos.

Penne com galinha desfiada e pesto.

Muitos franceses não provençais creem que a chamada cozinha francesa é a melhor do mundo que exclui a Ásia. O restante deste mesmo mundo acredita nisso com a mesma fé que leva multidões a adorarem um livro ou uma personagem histórica. De minha parte, considerando-se este mundo em extinção, deposito minhas crenças e volto minhas preces para a cozinha italiana.

A culinária francesa é demasiado grassa naquilo que frio fica rançoso e tende a mudar de estado. E, embora rica de carnes e de pão, a expressar a riqueza de um dos países mais férteis que há, não teve a inteligência criadora da pasta e das combinações vegetais mais simples e extraordinárias.

Outro dia desses, via um programa de TV de um cozinheiro inglês que faz muito esforço para ser simpático. Geralmente, não levo esse pessoal de TV a sério, porque afinal é de TV e pouco ou nada de bom vem dela. Mas, o rapaz mostrou que não é burro, pois estava em Veneza e cozinhou inspirado em Veneza. Mais precisamente, o cozinheiro fez um carpaccio de carne, encimado por uma salada belíssima das mais coloridas e extravagantes folhas e , afinal, deitou por cima um pesto feito na hora.

A feitura do pesto chamou-me a atenção. Algo trivial que nunca me ocorrera é que os quatro ingredientes do pesto são todos maravilhosos individualmente: manjericão, alho, nozes ou pinhão, azeite e queijo parmesão. Claro, há variações e há quem use pinhão ou nozes ou mesmo castanha de cajú ou mesmo outro queijo forte que não o parmesão. Os pestos industrializados, reparei cuidadosamente que usam óleo de girassol ao invés de azeite de olivas e castanha de cajú, além de serem processados de forma a ficarem muito homogéneos.

O sujeito da TV fez da forma tradicional, triturando e moendo com um pilão e ajustando o alho e o azeite e o queijo aos poucos. Percebi que ele era sincero ao dizer que o instrumento primeiro e mais importante do cozinheiro é o pilão, a forma mais primitiva de misturar ingredientes. E percebi o quanto me faz falta um pilão de madeira…

Por via das dúvidas, adquiri um vidrinho de pesto industrializado, da marca italiana Barilla, para a hipótese do meu dar errado. E adquiri um molho de manjericão fresco, alhos, um pedaço de parmesão e nozes, porque pinhão aqui é impossível encontrar. Separei as folhinhas de manjericão, à mão, cuidadosamente, uma a uma. Descasquei os dentes de alho, todos os que compõem uma cabeça, e não os piquei à faca. Cortei as nozes em pedacinhos.

Pus num potinho de vidro as folhas, as seis nozes picadas e os alhos ralados e um pouco de azeite e comecei a amassá-los com uma colher de pau. À medida que são amassados, deita-se azeite. Esse processo é tão simples quanto demorado e trabalhoso, pois trata-se de amassar mesmo, o máximo possível, para que as folhas, as nozes e o alho derramem suas essências e se misturem ao azeite, veículo a que nada aquoso se mistura.

Depois de algum tempo, é hora de por o queijo ralado e misturá-lo e amassá-lo com força. Convém não exagerar no parmesão, pois é muito saboroso e pode desbalancear a desejada harmonia. No início, a impressão é que a coisa resultará em nada ou quase nada, por conta da aparência. Mas, à medida em que as folhas são trituradas, começamos a ter uma visão de algo mais uniforme.

Para comer com o penne e o pesto, escolhi galinha cozida e depois desfiada. A princípio, pareceu-me estranho e talvez inadequado, porque o peito da galinha é carne de pouco sabor, principalmente cozida. Mas, isso pode tornar-se uma vantagem, se a galinha for mais um veículo para o sabor intenso do pesto que uma carne protagonista a rivalizar com ele.

Cozinhei o peito da galinha na água, sal e pimenta moída, junto com cebolinha fatiada. Nunca havia cozinhado qualquer carne em água com cebolinhas, porque o comum é usá-las no refogado. Desconfiava que pouco do sabor ficaria, mas foi menos ruim que parecia. Depois de cozinhada a galinha, desfiei-a à mão e deixei-a com as cebolinhas fatiadas, murchas já de tanta agua fervente.

Hoje, nada estava previamente resolvido, exceto o pesto que tentaria fazer. Por isso, a mistura da galinha com o pesto foi resolvida na hora e, para meu gosto, ficou ótima. O penne, cozinhei em oito minutos de água fervente, já com sal e um fiozinho de azeite. Ficou propriamente al dente.

Pronto, nos pratos, penne e a mistura de galinha desfiada e pesto, mais um pouco de parmesão ralado por cima e o acompanhamento de um carménère chileno.

Montaigne e Plutarco: um diagnóstico e a impossibilidade de cura.

Michel de Montaigne alinhava entre os piores males do humano a tagarelice. É aquele falar sem fim de bobagens, ligadas umas às outras por laços fraquíssimos e, principalmente, relativa sempre a si mesmo. O tagarela não se interessa por nada mais que ele e sua vontade de serem os outros confirmações dele. Eu fui, eu estive, eu fiz, eu vi, eu acho, fulano disse, fulano foi, fulano achou, esse arcabouço discursivo é o dizer-se contínuo e dizer-se nada.

Plutarco parece ter-se interessado menos em dizer do que a tagarelice seria de mal humano. Talvez tenha saltado o diagnóstico, de tão evidente que é. Passou à constatação de algo quase trágico: ela é incurável.

Como tudo, sua remediação dependeria de palavras e que estas fossem escutadas. A tagarelice, de sua essência, é antitética ao escutar, portanto imune ao único remédio disponível.

Aí está: grave e incurável…

Uma freira na chuva e uma missionária de skate.

Depois de escrevê-lo percebi que o título aí em cima gera a expectativa de algo muito rico em termos de ficção ou de alguma divagação bastante escapista. Não é disso que se trata.

O caso é que vi duas cenas inusitadas ou pelo menos que assim me pareceram, na mesma semana. Às vezes paro a mirar uns passarinhos que vivem em duas árvores da casa vizinha, coisa que as duas gatas que aqui vivem também fazem. Diferentemente das gatas, não vejo uma refeição profundamente apetecível nem acompanho com a cabeça qualquer movimento, por discreto que seja, dos pequenos pássaros. Olho e reparo na repetitiva e diligente rotina deles.

Esse cenário que se abre nas janelas tem dois panos de fundo estranhos: de um lado, depois da casa das árvores dos passarinhos, há daquelas igrejas de Mórmons, que são todas iguais no mundo inteiro, como são sempre muito parecidos todos os consulados dos EUA mundo afora; em frente, um convento de freiras Clarissas, um pouco menos óbvio que o templo dos seguidores do profeta de Utah.

O convento das freiras não tem qualquer riqueza arquitetônica e é relativamente recente. Organiza-se em torno a um pátio quadrado e tem uma capela lateral, como em quase todos. O templo dos mórmons é vulgar como todos e se parece àquelas escolas secundárias de filmes norte-americanos da década de 1980, com o detalhe de dar a impressão das paredes serem blindadas. Estranha essa impressão, mas sempre achei que esses prédios têm paredes blindadas…

O convento oferece um espetáculo que para mim não é nada mais que comum, mas que para alguém vindo de outra cultura poderia ser extravagante. As freiras clarissas trajam-se como freiras, assim como qualquer um de mais de trinta anos sabe como é. Elas não estão meio à civil, como em algumas ordens. Elas estão no século XIX e talvez a sonharem com centúrias anteriores.

Daí, temos um paramento que cobre da cabeça aos pés, sendo a cobertura superior branca e o vestido marrom escuro. Nos pés, sandálias simples, e à cintura um cordão que deveria ser abolido, porque não cumpre função alguma senão marcar o que os votos disseram ser irrelevante. Abstraindo-se dos nossos hábitos, é estranhíssimo, assim como são todos os uniformes.

Os mórmons também usam trajes uniformes, mas é difícil estabelecer qual é o das mulheres, tamanho o desprezo destes ungidos pelo sexo feminino. Os homens, todos sabem que usam calças pretas, camisas brancas de mangas curtas, gravatas pretas e cabelos curtos. Andam em duplas e aqui no Brasil um bafejo de inteligência os fez esquecerem que todo ser humano não branco é filho de Satanás.

Essa gente que anda aos pares – aqui quase sempre um branco caucasiano e um brasileiro mais brasileiro – está tão uniformizada quanto qualquer outro grupo, apenas que seu traje convencionou-se aceitar como aquele que se esperaria num burocrata estatal ou num gerente de banco. De qualquer forma, continua a ser intrigante uma misoginia tamanha que não haja quem se lembre qual o traje padrão duma mulher mórmon.

Bem, deixando os trajes e edificações dos vizinhos para lá, o caso é que um dia destes vi a cena insólita duma freira a chegar ao convento pelas dez horas da noite, parar na porta e bater para virem abri-la. Vinha com um embrulho numa das mãos e sem guarda-chuvas, embora houvesse uma chuvinha fina e estivesse meio frio para nossos padrões, algo à volta dos 20º.

Bateu, chamou por alguma irmã fulana – não consegui reter o nome que não escuto bem e não é assim tão pertinho – e nada. Esperou, coitada, voltou a bater e a chamar e nada. Inquietou-se discretamente, deu dois passos para lá e dois para cá, firmou-se novamente, baixou a cabeça, parecia resignar-se. Parecia, a mim, que não tenho votos corporativos explícitos, que a irmã tinha vontade de urinar, mais que as premências de sair da chuva e do frio.

Para um leigo, parecia mesmo a impaciência legítima de quem quer abrigar-se, aliviar-se de águas acumuladas e que acha agressivo não vir qualquer um abrir a porta da casa que afinal é sua. Devo confessar que olhava a cena com curiosidade, sem juízos de valor além de solidariedade com a irmã que esperava por alguma semelhante sua que viesse abrir-lhe a porta.

A freira esperou muito. E não posso dizer que tenha esperado para entrar, porque não vi o desfecho, porque a irmã impacientou-se tanto que saiu a caminhar, não sei para onde. Isso tudo, que tomou três ou quatro parágrafos, levou dez ou quinze minutos, o que é ua eternidade para quem esteja em frente de casa, impedido de entrar, sob a chuva, provavelmente cansada, e quem sabe a urinar-se.

Outro dia, reparava eu o bem que o vizinho fez ao podar as duas árvores do seu quintal, que assim se tornaram mais agradáveis aos passarinhos que ali fazem residência, e vi uma senhora mórmon a andar de skate. Convenhamos que é algo raro, mesmo que se ache inusitado termo excessivo. A cena dava-se no estacionamento que há no térreo do rico prédio dos mórmons.

Não era uma jovem e isso é só uma constatação e talvez um elogio à capacidade de assumir riscos, porque isso é perigoso, afinal é comum cair e partir a cabeça, lascar uma perna e coisa e tal. A senhora ia e vinha, como se treinasse, como se quisesse obter técnica no uso da prancha de skate. Skatistas são comuns até demais, mas mulheres de meia-idade mórmons skatistas são relativamente pouco comuns.

Fiquei tentado a crer que o inusitado é algo primordialmente quantitativo, ou seja, que depende da raridade do episódio. Mas, pensando mais detidamente, acho que mistura quantidade e qualidade, o que torna as coisas mais simples e complicadas ao mesmo tempo.

Não é somente de raridade que se cuida, porque raridade em comportamentos é difícil de encontrar. A percepção do inusitado tem, talvez, mais a ver com a qualidade, ou seja, com o que difere dos padrões de habitualidade a que o observador habituou-se.

Espero que a freira não tenha apanhado um resfriado e que a senhora mórmon não tenha levado uma queda….

O assalto corporativo-burocrático ao Estado e as perspectivas com uma viragem à direita.

No Brasil, desde que ele existe, o Estado sempre foi instrumento do grande capital e das camadas médias. Prestou-se à drenagem das riquezas da maioria, para transferi-las à minoria, ou seja, foi apropriado como instrumento de concentração de propriedade e de rendimentos.

Para o grande capital, o Estado é quase um prolongamento de empresas que negam frontalmente idealismos pueris como a livre iniciativa, a livre concorrência, o predomínio dos mais aptos, o perecimento dos piores e, suma incoerência, o Estado eliminou o risco das iniciativas do grande capital. É bom esclarecer que a expressão grande capital é aqui usada no sentido próprio e sem as ambiguidades que no Brasil chegaram a ter expressões inequívocas como exclusiva ou máximo.

O grande capital nunca perde realmente. No máximo, reduz-se um pouco a velocidade de sua acumulação e isso basta para que se ponha em marcha a convocação dos explorados por ele para trabalharem a favor dele. Recentemente, ele convocou as classes médias, que vivem das migalhas a caírem de sua mesa, a comandarem uma viragem à direta, ou seja, a pedirem a volta da concentração, mesmo que isso seja ruim para as próprias classes médias.

As classes médias perceberam que lhes convém estruturarem-se em corporações e defenderem interesses de grupos como se fossem coletivos. Assim, elas tomaram conta, por exemplo e principalmente, da burocracia estatal, que existe em função de si mesma e não da prestação dos serviços que teoricamente deve oferecer. Isso explica porque os serviços públicos são ruins.

Os serviços que tiverem opções privadas a que os burocratas possam recorrer serão invariavelmente ruins, porque a burocracia existe para que haja burocratas. Parece excesso de auto-referência, mas olhando-se com calma percebe-se que nada será excessivamente predador e auto-referente para esse grupo.

A lógica disso deve muito ao modelo ateniense, sempre lembrado e sempre incensado sem que se diga como e porque funcionava. Atenas foi, em certo momento, democracia modelar, quase perfeita, porque funcionava para 10% da população. Esta democracia formal precisa de elevada percentagem de excluídos, seja por escravidão, seja por gênero, seja por patrimônio.

A nossa democracia, para os interesses do grande capital e das classes médias, precisa exatamente do mesmo que Atenas: tem que implicar na participação efetiva no processo decisório de no máximo 15% da população. Além disso, ou o processo sai do controle dos dominadores ou a coisa toda marcha para tornar-se outra. Então, em dados momentos, é preciso que tudo aparentemente mude, para que se mantenha igual. Mas, isso vale como regra para o 01% e não se estende necessariamente para as corporações pequeno-burguesas que vivem das maiores migalhas.

A maior cegueira das corporações pequeno-burguesas é não perceberem a fragilidade ou mesmo inexistência do vínculo de solidariedade com o grande capital. Esquecem-se que com escravos mais frágeis são precisos menos feitores numa fazenda.

Com mais uma volta no parafuso da concentração de riquezas, será menos necessária a manutenção de corporações a predarem o Estado, porque os escravos estarão mais frágeis e será menos necessária uma classe intermédia a amortecer tensões e fazer o trabalho sujo. Mas, é próprio das corporações pequeno-burguesas, notadamente das que vivem direta e adjacentemente ao Estado exagerarem sua importância e passarem a acreditar que seus papéis formais são materiais.

Não é para que se distribua justiça, nem para que haja acesso amplo à saúde que o grande capital consente que haja milhões de pequenos-burgueses a ganharem muito por trabalhos que rendem pouco ao todo. Nem é para que julguem contra o grande capital, nem para que prestem saúde pública com o dinheiro apurado com os impostos cobrados ao grande capital. É para que exista e defenda os patrões, só isso.

Seria sábio, se sabedoria houvesse, que o médio classista típico percebesse que não há, nas duas pontas do espectro, nenhum sentido no Estado pagar, com dinheiro saqueado aos mais pobres, salários de 10.000 euros a médicos, juízes, promotores, advogados, fiscais e outros burocratas mais. Isso, para o grande capital, é um estorvo, porque ele próprio poderia ficar com esse dinheiro, e para a maioria um desconhecimento, porque afinal não sabe quanto custa a pequena-burguesia nem sabe precisamente que ela vive às custas dele povo.

Seria sábio levar mais a sério as bobagens que são as normas criadas pela própria burocracia estatal, inspiradas no seu moralismo, que nada mais é que a face visível da sua hipocrisia e do seu instinto de permanência. Se se portasse ao menos conforme aos disfarces postos por ela própria, talvez mais êxito tivesse na sua manutenção, mas, ao contrário, trabalha para facilitar sua própria degradação, quando isso convier aos patrões.

No Brasil, o moralismo de ocasião levou a que se fizessem leis que definiriam limites aos saques ao tesouro estatal. Se estas regras fossem respeitadas, isso não evitaria o aniquilamento da pequena-burguesia estatal, mas lhe daria alguma chance de resistência, quando o grande capital resolvesse que a festa já ia longe. Todavia, foram feitas e violadas desde o nascimento, num espetáculo de falta de honra digno de nota até onde escasseiam traços de honradez.

Inventou-se um limite remuneratório para os que recebem do Estado e esse limite foi continuamente violado desde a criação, sob os mais pueris argumentos formais. Inventou-se a deidade e a concepção imaculada do poder judicial e da magistratura do ministério público, que zelariam pelas declarações de boas-intenções que se encontram na constituição e nas leis. E eles fizeram pouco mais que custar obscenamente ao tesouro, sem dar contas de seus gastos.

Inventou-se a ciência tão perfeita, quase revelação divina, que receberam os integrantes da corporação médica, de tal forma que é impossível contrapor ao discurso destes filhos de Zeus qualquer coisa, pois de todas as coisas eles possuem a verdade final. E possuem, principalmente, a capacidade de ditarem os preços dos seus préstimos voluntários, porque afinal há mais a precisarem que a ofertarem.

Inventou-se que todo um grupo de pequenos-burgueses era bom, essencialmente bom, probo, capaz, produtivo e outras valorações mais do repertório da moralidade plebéia, só porque nasceram na classe em que nasceram e ocuparam os empregos que sempre estiveram às suas disposições. E essa invenção aproximou da divindade o subgrupo dos que ingressaram na burocracia estatal porque foram aprovados em testes de suficiência técnica e capacidade de detectar capciosidades em perguntas iniciadas por negativas.

Essa gente acreditou que está onde está porque deve ser assim e porque haveria inabalável aliança com o grande capital. Todavia, o grande capital não tem qualquer dificuldade em romper esta frágil aliança, principalmente quando a pequena-burguesia tem conduta tão próxima à dos escravos.

Na história bem recente do Brasil, há dois exemplos interessantíssimos dos efeitos da viragem à direita. Um, súbito e esquizofrênico, foi estancado porque era tão confuso que atrapalhou a vida do grande capital, como efeito lateral, porque não visava a isto. O outro, organizado e sistemático, com apoio da imprensa, quase destrói o pouco de serviço público que havia e o muito de burocracia estatal que sempre houve.

Fernando Collor de Mello chegou ao governo como as Erínias a Orestes. Ele teria liquidado tudo, burocracia estatal pequeno-burguesa e inclusive um e outro pedaço do grande capital. A fúria revelava muita força e até a grandeza que não se deve negar aos loucos, mais que a patifaria que o grande capital marcou como própria dele. Fato é que não servia, nem à pequena-burguesia, instalada direta ou indiretamente no Estado, nem ao grande capital. Foi preciso afastá-lo, depois de criar comoção moralista por nada.

Fernando Henrique Cardoso chegou como Odisseu de volta à casa e agiu como Odisseu com os pretendentes de Penélope. Quase destrói as corporações pequeno-buguesas que ocupam a burocracia estatal e teria levado a tarefa a cabo se houvesse tempo hábil. A grande finalidade não era especificamente a aniquilação da classe média a soldo do Estado, senão que era vender serviços e patrimônio estatal ao grande capital, mas uma coisa trouxe a outra e isso agradou aos patrões.

Esses dois ocupantes do governo apresentaram-se ao público como veículos da novidade e da moralidade e nunca deixaram muito claro para as classes médias viventes do Estado que suas propostas implicavam a aniquilação ao menos parcial delas, até porque os patrões delas não precisam de escravos que ganhem mais que a maioria dos escravos.

Novamente, apresentam-se propostas que não vão além de retornar à crescente concentração de rendas e novamente as classes médias em geral e em particular a burocracia estatal apoia estas propostas com sinceridade comovente. É própria da classe média brasileira a sinceridade que namora a hipocrisia e segue de mãos dadas até ao cadafalso ou até o átrio da mansão, conforme a sístole ou diástole histórica.

Será, de qualquer forma, interessante ver essa gente no próximo influxo da queda de migalhas da mesa do grande capital, desassistida pelo Estado, ávida em manter o discurso mesmo à medida em que recuam os rendimentos, ávida em justificar o novo agente do patrão, mesmo que ele seja um tantinho distante.

A maior conquista dos ladrões é tornar o público moralista.

Ninguém se lembra, evidentemente, por questões cronológicas, mas alguns conhecem o episódio. Dos maiores golpes de enriquecimento ilícito e corrupção generalizada da história recente foi a lei seca nos Estados Unidos da América. A partir de um surto de moralismo destituído de quaisquer razões, criou-se esquema que enriqueceu vários grupos mafiosos e vasta porção dos agentes do Estado.

Proibir o que muitos querem é o caminho mais curto para aumentar a oferta do proibido, a custos maiores e qualidade menor, e para gerar lucros enormes para os vendedores de coisas ruins que não pagam impostos. Tem a vantagem adicional de gerar renda para os fiscais da lei, que recebem para não fiscalizarem o que, de resto, seria praticamente infiscalizável.

O exemplo da lei seca dos EUA nos princípios do século XX não se aparenta muito a coisas a se tratarem de passagem aqui, exceto pelo moralismo que foi seu motivo determinante.

O moralismo é aquilo que a plebe – não se trata de uma questão de dinheiro, sempre é bom dizê-lo – usa. Não conhecendo honra, vai com moralismo. Achando rigoroso demais algo que supostamente é geral e abstrato, como a lei, vai de moralismo. Tendo sido instruída para achar que não há escolhas políticas e econômicas, vai de moralismo.

Hoje, nesta obra de Satanás que é a sociedade brasileira, o mais deformado e longevo esquema de rapinagem e dissimulação que já se dispôs, o moralismo tornou-se motivo primeiro de tudo e ponto central de discussão. Chegamos ao ponto de um lugar-comum ter-se tornado mais que comum: sempre se fala que algum fulano é do bem ou não é. Nem Jó foi alvo de experimentos assim tão avançados, deve-se convir.

Sabe-se de saber sabido – e perguntar de fontes e origens é entrar no argumento em círculos – que certo grupo, componente maioritário de certo partido político, praticou os maiores assaltos aos cofres públicos do país, nos últimos cem anos. A brincadeira foi muito além do contratar obras e serviços mais caros que a realidade e receber uma gorjeta do contratado.

Tratou-se de vender serviços públicos – e não somente as concessões para prestá-los – de vender empresas públicas a preços baixíssimos e com financiamentos amistosos de bancos públicos. A brincadeira foi muito bem feita e implicou, também, na assunção prévia pelo vendedor de vários custos que poderiam ser incômodos para os compradores.

Há um caso muito bonito e revelador: o Estado do Rio de Janeiro tinha um banco. Particularmente, não acho que Estados federados precisem ter bancos, mas se os forem vender, convinha que fosse uma venda mesmo. Pois bem, o banco do Rio, antes de ser vendido, demitiu metade dos funcionários e o Estado do Rio custeou o alto preço destas demissões. Achou pouco o Estado do Rio, vendedor, e assumiu todo o passivo previdenciário dos reformados do banco e, ao final, vendeu-o por alguns trocados ao virtuoso Itaú.

É prazeroso, para o que escreve estas linhas, conversar com liberais defensores de privatizações bem alfabetizados. Mas, direitista bem alfabetizado, assim como esquerdista, é coisa rara e ficamos na infeliz situação de poder conversar pouco, o que é lastimável. O caso é que não há, conceitualmente, com relação à maioria das atividades, quaisquer problemas em passá-las à iniciativa privada e fiscalizar a prestação dos serviços.

Não é recomendável, por outro lado, passar algumas atividades para a iniciativa privada porque implica simplesmente renúncia à soberania e ao poder de decisão. É o caso de pelo menos um banco e de uma companhia de exploração de petróleo.

Problema há em entregar a troco de quase nada muita coisa de valor bem tangível e em setores que poderiam ter boas prestações de serviços desde que se investisse costumeiramente o que se investe antes das vendas. No Brasil, sem mais, não se fizeram privatizações de serviços públicos que são prestados por particulares, cometeram-se crimes e há evidências de subornos imensos.

Há pouco, tornou-se notícia aquilo que já se sabia mas não chegava ao grande número porque os veículos que servem à instrução do grande número trabalham para os beneficiários do esquema fraudulento. Um certo partido político, num certo Estado da federação, recebia subornos constantes das grandes fornecedoras de trens Alstom e Siemens, francesa e alemã, respectivamente.

Quem disse ter havido uma drenagem de aproximadamente cinquenta milhões de dólares norte-americanos do Estado de São Paulo para subornos aos gestores deste Estado foi um dirigente da Siemens, que recebia mais que o devido e devolvia aos imaculados gestores paulistas. O funcionário da Siemens detalhou o esquema dos subornos pagos aos homens de bem, mas nada disso virou notícia ou processo judicial ou investigação do imaculado ministério público.

A seletividade da imprensa majoritária é algo fundamental na criação desta histeria moralizante que se esquece dos maiores assaltos ao Estado brasileiro. Esta imprensa fala para as classes médias, sejam baixas, médias ou altas e o que diz é recebido como verdade absoluta, precisamente porque é vertido nas tintas moralizantes que consistem no básico do pensar médio-classista.

Tanto são eloquentes as acusações aos opositores da imprensa, quanto o silêncio quanto a tudo a envolver certos partidos e certas figuras que contam com a simpatia da imprensa. No meio disto, no meio deste jogo de propaganda mal disfarçada em jornalismo, está o público essencialmente médio-classista, essencialmente inclinado ao linchamento, essencialmente conservador, essencialmente incapaz de reconhecer o quanto não é merecedor do que tem, essencialmente disposto a por o dedo na cara do vizinho por exatamente o que ele faz.

Tornando-se moralista o público, especialmente o médio-classista, o terreno encontra-se arado para semear-se a inquisição de mão única, aquela que levará à fogueira inclusive muitos acendedores de fogueiras. Encontra-se pronto o terreno para a ignorância generalizada da real oposição importante, aquela entre mais ou menos concentração de rendimentos.

Tudo gira à volta da moralidade e os maiores ladrões, os maiores violadores desta moralidade cambiante de botequim, serão os mestres de cerimônia do julgamento de quem faz ou não faz exatamente o que eles mestres de cerimônia fazem à exaustão.

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