Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 19 of 126)

Arroz de pato.

Este prato tão minhoto é das coisas que me despertam imensas saudades bracarenses. Acho delicioso o arroz de pato que se come frequentemente em Braga, sendo os melhores nos restaurantes e cafés mais simples, principalmente quando é um dos pratos do dia. A carne do pato é saborosa e seu único problema é ser meio dura, o que demanda muita cocção.

Comentei, na semana passada, com uma colega de trabalho com quem converso bastante sobre culinária e que é muito gentil, sobre minha dificuldade de encontrar pato nesta cidade e disse-lhe que visitas a todos os mercados médios e grandes tinham resultado no encontro de nenhum pato! Ela deve ter ficado com isso na cabeça, pois trouxe-me ontem um pato inteiro!

Aconteceu desta senhora minha colega de trabalho viajar até uma pequena cidade distante, no sertão, para comparecer àlgumas audiências de julgamento. Na ocasião, ela perguntou a um e outro se era possível comprar um pato por lá. Disseram-lhe que havia uma senhora fulana, na zona rural, que criava patos. Pois ela dispôs-se a ir até ao sítio desta senhora e comprar o pato, que foi lá morto, e trazê-lo para cá. Além disso, tratou de depenar o pato em casa e mo entregou morto, depenado e sem a maioria das tripas.

Que preciso agradecer tamanha gentileza é óbvio, menos óbvio é como o farei, mas isso é outra estória.

Tomei o pato, ontem à noite, cortei-o em alguns pedaços, retirei-lhe parte da pele, deitei sal, noz moscada moída, sumo de um limão e um pouquito de vinagre branco e mandei-o à geladeira, descansar.

Busquei receitas de arroz de pato e uma delas interessou-me. Basicamente, segui esta tal receita com uma modificação. A receita sugeria refogar em panela de pressão os pedaços do pato, com alho picado e cebola e, depois de dourado, deitar na panela dois litros de água já a ferver e cozinhar por vinte e cinco minutos. Apenas deixei de fazer o refogado e de dourar os pedaços do pato na panela de pressão.

Como os pedaços da ave estavam marinando desde ontem, coloquei-os na panela de pressão diretamente para cocção, com água e meia cebola inteira, sem previamente refogar e dourá-lo no azeite. Mesmo que panela de pressão não me agrade muito, no caso do pato é recomendável para amolecer a carne.

Deixei lá por quarenta minutos e desliguei o fogo. Retirei os pedaços de pato e os desfiei com uma faca, pois estavam já bastante moles e separavam-se facilmente dos ossos. Entretanto, pus três xícaras de arroz integral, um pouco de bacon cortado em quadrados e um pouco de linguiça fumada cortada em quadrados numa caçarola grande e deitei lá a água da cocção do pato, ainda bastante quente. Isso tudo ficou no fogo baixo, a ferver, por quinze minutos.

Então, pus na panela o pato desfiado, para cozer nos últimos cinco minutos juntamente com o arroz, que já se impregnara na água do pato.

O resultado foi divino e matou pequena porção das minhas saudades culinárias minhotas!

Perseguição de José Dirceu pode ter mais aparência jurídica se embargos forem admitidos.

A ação penal 470 é um embuste montado para afastar José Dirceu da política brasileira, porque ele é um traidor de classe que não se deixou cooptar pelo 01%. Os demais processados com ele estão lá apenas para que não haja um só réu e para as conveniências do enredo farsesco. Neste julgamento de fancaria, stf e ministério público agiram sob ordens da imprensa majoritária ou, no mínimo, com medo dela.

A coleção de aberrações jurídicas presentes nesta ação é enorme. Garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição tiveram suas violações abertamente defendidas, como se fosse o mais normal, até por gente que diz ter frequentado a escola básica e saber ler. Inversão do ônus probatório em matéria criminal foi defendida pelo acusador e por juízes.

Deformações nas adequações típicas, como, por exemplo, suprimir a realidade e reputar ocorrido o crime de peculato de dinheiro privado. Manipulações de datas, feitas abertamente, como a que reputou ocorrido um crime de corrupção após a morte do suposto corrompido! A farsa do período anterior ocorreu para violar o princípio da irretroatividade da lei penal, porque as penas foram aumentadas por lei posterior ao falecimento do corrompido e queriam a todo custo punir os supostos corruptores com penas mais graves, mesmo que estabelecidas após o fato.

Houve momentos extraordinários em que juízes chegaram a dizer que não havia provas, mas que condenavam porque podiam fazê-lo. Tudo isso causou espanto nos mais bem instruídos e menos imbuídos do desejo linchador porque se esqueceram que juízes – independentemente do tribunal que componham – são gente vulgar, mesquinha e manipulada, como são as pessoas em geral.

Realmente, essa tolice de crer que juízes são sensatos e imparciais é tão difundida quanto infundada. Eles são profundamente sujeitos às pressões quando o caso desperta interesses políticos e mediáticos relevantes e deixam-se aprisionar pelos afagos às vaidades e pelo medo de serem atacados pela moralidade seletiva da imprensa. Nos casos pequenos, suas grandes influências são os caprichos momentâneos e o ir ou não com a cara das pessoas litigantes. A lei é algo que fica muito longe das principais motivações para decidir.

Neste caso, a imprensa resolveu antecipadamente que José Dirceu devia ser condenado, que devia ser considerado responsável pelo maior esquema de desvio de dinheiros públicos do Brasil – embora o processo fale de dinheiro privado – que devia ser linchado em praça pública sem que qualquer outra consideração fosse feita exceto nos termos da comédia novelesca que foi encenada.

E isso deu certo, a despeito da fragilidade e da vulgaridade do enredo da novela oferecida ao público. Deu certo no sentido de instilar nas pessoas da classe média em diante o espírito de linchamento alimentado por moralismo difuso e totalmente cego às violações de direitos e às supressões de fatos. Assim é porque o vulgo basicamente não pensa e facilmente defende qualquer violação de direito e ocultação de fato, desde que a imprensa diga-lhe para proceder desta maneira.

Mas, a farsa é tão grotesta que escandalizou a um e outro razoavelmente alfabetizado e desinteressado em ver sangue e entranhas expostos – são raras as pessoas localizadas neste grupo – e envergonhou timidamente um e outro integrante da corporação jurídica.

Eis que o tribunal que serve de cenário para esta novela decide se os réus de acusações etéreas poderão ter o duplo grau de jurisdição. Ou seja, decidem se uma garantia constitucional óbvia será mantida ou estuprada à luz do dia com caras sorridentes a posarem para câmaras de TVs. Está a depender do voto do juiz mais antigo do cenário, que já disse repetidas vezes que o duplo grau deve ser assegurado.

Se o recurso é admitido, uma de muitas aberrações é afastada. Conviria que as demais também fossem, para que não ficasse a parecer o estado normal de coisas a justiça servir aos desígnios de eliminação política da imprensa. Conviria que a corporação judiciária percebesse que a desonra só pode ser considerada momentânea sob a perspectiva meramente pessoal, o que destoa até mesmo do núcleo do pensamento corporativo, que anseia à conservação de privilégios.

Essa farsa, basicamente, foi o deslocamento do jogo político de seu âmbito próprio para os tapetes dos tribunais, onde se decide sem votos populares e com pessoas extraídas do que há de mais conservador. E, o que há de mais conservador no Brasil é pior que os semelhantes alhures, porque é certo dizer que o pior do Brasil são os brasileiros de classe média em diante. Não há gente mais predadora, vendida, oportunista, mentirosa, rancorosa, mal instruída, sem honra mas com moralidade e superficial.

O protótipo do comportamento dos conservadores é o menino que tem a bola de futebol, chama os outros para jogar e pelas tantas quer proibir os dribles porque não os sabe dar; depois muda as regras e por fim encerra o jogo e guarda a bola.

A encenação do processo contra Dirceu é demonstração de poder extravagante porque significa dizer claramente que a imprensa pode fazer a partir de nada ou quase nada um escândalo mobilizador das camadas médias e despertar nelas os instintos assassinos que guarda cuidadosamente nos armários. É um recado claro para os que insinuem alguma reação efetiva aos interesses dela imprensa e também aviso aos que a ela se alinharem que podem fazer o que bem quiserem.

A resposta ou reação possível dá-se em campos muito estreitos. Primeiro, convém que as pessoas alfabetizadas e não inclinadas ao linchamento sempre digam da farsa que se encena, mesmo que isso resulte imediatamente em nada. Segundo, é preciso elevar o nível da crítica técnica às violações perpetradas na encenação. Ou seja, já que escolheram o cenário jurídico para expurgar José Dirceu, que ao menos tenham algum trabalho discursivo e algum receio por suas contradições explícitas.

Síria: porque mísseis são melhores que discursos de direitos internacionais.

Os EUA bombardearão a Síria em breve, por razões que não incluem a morte de sírios por armas químicas. Eles, os mandatários norte-americanos, nunca se preocuparam com a morte de ninguém, por qualquer razão e meio que seja; eles sempre promoveram matanças enormes quando isso lhes interessou. O problema não é esse, até porque provavelmente as armas químicas foram fornecidas por eles aos mercenários recrutados para desestabilizar o governo sírio.

A ONU presta-se ao papel ridículo de sempre, ou seja, a preocupar-se com formalidades e com aparências, quando isso vale nada na decisão do governo americano de despejar mísseis de cruzeiro sobre o território de alguma nação soberana, destruir infra-estrutura, matar muita gente. A ONU, enfim, cuida da parte do falatório e das aparências; o governo dos EUA cuida da destruição e está tudo assim bem resolvido.

Ainda me assusto um pouco com a parte dessa estória que paga tributo à hipocrisia em doses elevadíssimas. Falo da necessidade de mentir, de fazer discurso com solenidade, como se o discursante acreditasse no que diz e como se todos os restantes fossem absolutamente imbecis, quando é verdade que somente 95% das pessoas são totalmente imbecis.

No rastro dessa crença – quase sempre exitosa – na imbecilidade de 100% das pessoas, ouve-se a aberração lógica da destruição humanitária e coisas do gênero. E cria-se o falso problema da autorização da ONU e traz-se à cena a farsa da legitimidade de um punhado de países autorizarem a destruição física e a matança humana. Isso tudo é conversa para induzir sono em bovinos.

No oriente próximo só há dois países que não são vassalos do esquema EUA, Europa e Israel: o Irã e a Síria. Estes dois articulam-se comercialmente com a China, a Índia, a Rússia, mas não têm com estes países relações de vassalagem. Isso não convém aos EUA, nem a Israel e em menor medida não convém à Europa.

Por um lado, trata-se de petróleo, mas de uma forma mais sutil e complicada do que pode de início parecer. O ataque norte-americano significará um aumento imediato nos preços do petróleo e, se a coisa se tornar crônica, pode significar o estabelecimento de novos e estáveis patamares para o preço do óleo.

Aumento do preço do petróleo significa despesas maiores para quase todos os países do mundo; redução do preço do dólar norte-americano e aumento de receitas dos exportadores do óleo. Além disso, torna economicamente viável a exploração do gás de xisto nos EUA e do petróleo das areias betuminosas do Canadá. Além dessas consequências relativas ao óleo, há as despesas militares e o aumento da demanda por crédito. Ou seja, é um belo negócio.

A par com esta parte logicamente compreensível, temos o que todos negam. A guerra tem seu quê de não utilitária à vista de parâmetros econômicos e estratégicos mais evidentes. Israel quer ser territorialmente duas vezes maior do que é presentemente e quer matar todos que ao seu redor não sejam depositários da verdade revelada por seu deus mesquinho, guerreiro, sanguinário e fútil. Isso não é desprezível e eles são capazes de fazer a guerra até se for para a perder.

Tito Flavio Vespasiano teria muito a dizer sobre essa inclinação até honrosa a criar confusão e leva-la até ao sacrifício. O Arco do Triunfo até hoje nas ruínas do Foro de Roma conta pouco do que foi a campanha de 70 contra a sedição dos judeus. Uma campanha que resultou em pouco saque, muitas mortes e muito trabalho, para reduzir um povo desprezado, em uma província pobre.

Mesmo depois de ricos e não mais desprezados, persiste a inclinação bélica desmesurada, para além do cálculo cuidadoso dos banqueiros que verão a guerra desde a Côte D´Azur, pouco preocupados que suas mãos sequem e seus olhos ceguem, caso Jerusalém pereça esquecida por eles. Os do cálculo são os menos arqueologicamente judeus; eles ganham com a guerra, mesmo que ela liquide o templo pela terceira vez.

Os do meio, que são empregados com muita autonomia, esses vão até ao fim, ao que parece, não apenas pelos ganhos financeiros.

Se se tratasse somente de elevar os preços do petróleo, subitamente e até para outros patamares estáveis, havia outros meios mais fáceis. Qualquer afundamento de um grande petroleiro, posto na conta de ação terrorista de algum grupo de mercenários seria suficiente. Além disso, convém lembrar que a Síria tem pouco ou nada a ver com petróleo; a questão é o Irã e não é apenas aumentar o preço do óleo, que isso já se conseguiu, resta apenas esperar alguns dias.

Há pouco, celebrou-se a negativa do parlamento inglês ao ataque à Síria, porque faltam evidências da autoria dos tais ataques. As pessoas que transitam no espaço que o poder deixou para a burocracia dos bacanas bem intencionados que acreditam e falam em direitos disse que isso era importante. Não é. Os EUA farão o ataque sem a Inglaterra e com ou sem a França – pouco importa – porque esses países contribuem com nada ou quase nada do esforço bélico.

Que o parlamento inglês tenha rejeitado o ataque foi ótimo para o bandido Cameron, mas foi nada para a realidade próxima da destruição. Que o bandido prêmio Nobel da Paz Obama leve o ataque a cabo sem se preocupar com Parlamento Inglês, ONU e outras besteiras mais é ótimo também. É mais uma volta no parafuso do império incondicionado, que não precisa pedir desculpas.

Ao final e ao cabo, o certo é que melhor que ONU, parlamentos, discursos, evocações humanitárias, pruridos europeus por aparências e outras mais idiotices, são sistemas de defesa anti-aérea e anti-navios.

Liberdade é algo que implicaria não ser humano.

A má-compreensão e a falta de significado de um termo são praticamente a mesma coisa. O termo liberdade é, juntamente com justiça, dos que menos significado têm, ou porque sejam vasos a comportar qualquer coisa, ou porque sejam mais juízos valorativos morais que representações de algo.

Claro que alguém pode objetar que esses termos são pouco ou nada mais que designações de juízos morais amplamente vagos e cambiantes, mas o problema reside exatamente em que os objetantes não acreditam, sinceramente, nestas ambiguidades decorrentes da dependência total das circunstâncias. Até os supostos objetantes da falta de significado querem sempre acreditar que se trata de termos unívocos portadores de verdades imutáveis.

As pessoas aceitaram tacitamente a convenção de somente falar de liberdade das formas mais tolas e superficiais possíveis, o que revela sua insegurança, ignorância e medo do assunto. Por outro lado, o grau de interdição de um assunto ou de um nome revela bem sua importância efetiva. Não foi à toa que o inteligentíssimo Camus afirmou que o suicídio era o único tema sério da filosofia para as pessoas: ele não era inseguro, nem ignorante, nem medroso.

Isso de liberdade vem imediatamente ligado ao lugar-comum da escolha, da decisão que seria sempre tomada entre alternativas pesadas por alguma vontade agente. Acontece que a vontade agente e una deixou entrever, primeiro para alguns artistas e, depois, para certos cientistas, o que tinha de reflexo condicionado e de plúrima. A questão do reflexo incondicionado pela vontade é menos problemática, mas a superação da unicidade será apostasia eterna.

Não deixo de voltar a pensar em textos de Sperry, de Gazzaniga e de Bogen, alguns co-escritos por eles, outros apenas de Sperry, na sequência das maravilhas resultantes da pesquisa com a seccão dos corpos calosos: Language in human patients after brain bisection, Observations on visual perception after disconnexion of the cerebral hemispheres in man e Brain bisection and mechanisms of consciousness.

Roger Sperry e Michael Gazzaniga perceberam que a unicidade não era mais que predomínio da linguagem, algo que Stevenson havia percebido antes de 1886 e que certamente muitos outros dotados de arte e paciência perceberam antes ainda. O estranho caso do doutor Jekyll e do senhor Hyde e o único essencialmente duplo, a deliciosa contradição que tem toda realidade despida de suas fantasias. Um são dois, por que não?

Como sempre, a ciência andou mais lentamente que a arte, embora não signifique mais capacidade de penetração de uma ou outra, porque ambas são opacas para o vulgo. Nunca foram libertadoras, nem demolidoras de lugares-comuns, ao contrário do que pensam os dogmáticos limitados e medrosos. Não há porque travar-lhes o caminho para evitar que a massa se instrua e supere os lugares-comuns. Isso é investir contra a coisa errada. O contato do vulgo com a arte e com ciência dão em nada, já com a política é fértil, e é para aí que os conservadores devem mirar.

Os doutores neurocientistas norte-americanos postularam, nos anos de 1960, algo que implica, sem eufemismos, a falsidade da pessoa una e agente livre. A unidade, embora óbvio convém dizê-lo, é de ordem material, o que significa que um corpo é todo ele coerente e movido pela mesma e única vontade, segundo a dogmática de matriz religiosa dominante.

Poucas coisas poderiam ser mais demolidoras que os fenômenos da mão alheia e da incompreensão total por falta de abordagem por linguagem, que eles viram e estudaram na sequência da separação dos hemisférios cerebrais. Nem a vontade era única no mesmo corpo, nem o mesmo corpo compreendia algo igualmente a depender de que metade lateral recebesse os estímulos visuais, tácteis ou sonoros.

Não causa escândalo algum falar em dominância lateral e afirmar que a linguagem associa-se ao hemisfério cerebral esquerdo. Curiosamente, causa escândalo lembrar o que antecedeu a essas conclusões e o que se infere, posteriormente. Se há dominância lateral, há um dominado.

O dominado, no humano, é aquilo que o vulgo generosa e acriticamente chama de natural. O natural é, em via inversa, exatamente o que o vulgo não quer que seja: amoral, imediato, incapaz de desculpas, incapaz de disfarces, tão livre quanto preso à fome, ao sono, à lubricidade periódica, mas sempre livre porque incondicionado por linguagem.

Pois bem, esse natural é preciso que não seja natural nem livre, duas supressões que o dominador hemisfério esquerdo desempenha muito bem e que resulta que seja visto como a realidade natural e livre.

Quero apontar que uso neste texto termos valorativos comuns – que se aceitaram como termos absolutos não valorativos nem relativos – como são natural e livre, apenas para dar a ver a inadequação que têm para a compreensão do assunto. Se existem e têm algum sentido natural e livre, esses termos passam a inexistir e a não terem qualquer sentido se virmos como são usados para coisas diversas, como são usados imprecisamente e como poderiam ser usados igualmente para coisas antagônicas.

Recentemente, a ciência, a mesma que anda atrás da arte, descobriu que o campo da chamada liberdade de escolha é mais restrito do que gosta de supor o vulgo. Fê-lo por imagens do cérebro que identificam áreas ativadas por atividades específicas. Em resumo, há um padrão de respostas pré-estabelecidas, o que tem um quê de arqueológico e antigo, mas inegavelmente diminui o tempo de resposta aos estímulos.

Nenhum animal tem liberdade ante o fogo e talvez este seja o exemplo mais elementar de resposta condicionada. Todavia, isso vai se tornando mais sutil à medida que as supostas alternativas são menos drásticas, mas ainda assim o acervo de respostas mais ou menos estabelecidas existe e as respostas dão-se conforme a este repertório de sim e não, numa lista binária muito longa de se isso então aquilo.

Porque não convém ao vulgo perceber que a enorme maioria de suas escolhas não são mais que reações a rigor involuntárias? Porque reconhecer que o âmbito de escolha é muito restrito implica aumentar o valor da escolha e da liberdade, por escassez. No fundo, o vulgo quer isso que canta em loas constantes reduzido a algo comuníssimo e abundante, enfim, barato.

O vulgo precisa ver liberdade em tudo, precisamente porque crê que ela significa nada. Enaltece em prosa e verso ruins o que não estima verdadeiramente.

Por outro lado, saindo do campo da psique, evidencia-se que o discurso de existência da liberdade de escolha a cada passo serve à dominação de muitos por poucos. A liberdade, essa coisa bonita e ampla, se ela existir assim como dizem, justifica todas as desigualdades entre as pessoas. É terrível e ao mesmo tempo genial essa idéia de instilar na maioria a noção de culpa da vítima a partir de algo que se valora positivamente.

A liberdade, em termos políticos e econômicos, está na raiz da desigualdade. Assim, a desigualdade não passa de um estado natural de coisas – e eis aí outra inexistência cara ao vulgo – devidas às vontades de cada qual. Todos livres e uns poucos muito melhor aquinhoados que a maioria, era necessário convencer a maioria de que tudo se devia enfim à sua própria vontade!

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