Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 18 of 126)

A perda do senso trágico, a crença no remédio, ou sem passado e sem futuro.

Mansidão não é delicadeza, rebelião difusa não é coragem. Covardia não é sábio cálculo. Afagos gratuitos não são estima de iguais, direitos não são antíteses de obrigações. Ignorar o passado não é aceitar condição para que haja presente e futuro. Tudo isso são sintomas de algo fartamente abordado por Ortega y Gasset, a que sempre retorno.

Muitos viram a cara às constatações orteguianas, talvez porque a clareza dele agrida os superficiais que gostam de barroquismos e sentem ojeriza pelas abordagens aristocráticas e históricas. Menor número ainda é dos que leram e perceberam constatações similares em Unamuno, ainda que vertidas em termos quase obscuros e aparentemente místicos.

Ainda menor é o número dos que perceberam a advertência na arte narrativa ficcional, seja porque leem romances em busca de entretenimento, seja porque acham que romances são formas puras, duas formas de alienação próprias de todos os tempos, não somente do atual.

Agustina Bessa-Luis percebeu muito bem o que é a perda do senso trágico, que conduz ao viver o presente contínuo, isento de riscos, possibilidades, pleno de remédios sempre cinicamente negados mas sempre acreditados. Presente de discussões compartimentadas em escaninhos acadêmicos, científicos.

Mas, no que tange ao romance e à romancista também, sempre predominará numericamente o ver obra, ou como ficção totalmente abstrata, ou como relato fiel de acontecimentos com nomes de personagens trocados. As obras do romancista bom, como Agustina, não são, nunca, uma dessas coisas somente. Aliás, um romance a merecer este nome nunca é criação do nada ou reprodução de fatos.

Claro que ele não é, num autor bom, livro de recomendações ou de previsões, ou de recriminação ou de julgamento moral de um tempo e de suas pessoas. Ele, o romance, é antes de tudo história, por mais aparentemente atemporal que seja, por mais aparentemente abstrato e desumanizado que seja. Incluso, cabe aqui lembrar a riquíssima observação de Ortega de que as abstrações artísticas do início do século XX eram reação aristocrática meio pueril.

O tempo de hoje – que não sei precisar se começou há setenta ou cem anos, ou ainda mais – é um profundamente seguro de si, como a acreditar em progresso material e civilizacional imparável, a permitir ganhos de acumulação material e de direitos sem regressos.

Tempo de certezas amparadas em ciências ou pseudo-ciências, certezas absolutas quanto às afirmações e aos seus contrários, porque há ciência para todos os lados, porque ciência tem lado ou veio a ter, tamanha a incerteza certa a que dá suporte.

Parente próxima dessa certeza no progresso favorável é a crença em remédios para tudo, ou seja, em que as coisas, todas elas, têm solução. Chega a ser fetichista esta crença, porque chegou-se a ponto de reputar todas as coisas passíveis de remediação, o que reflete a adoção de juízo moralizante para tudo.

Acredita-se em remédio até para o que não se pode abordar em termos de conserto, porque não se cuida de acertos ou de desacertos, mas de coisas ou de opções ou de falta de opções. Aqui, percebe-se que a crença nos remédios é parente também da vontade de mandar nas outras pessoas, impondo-lhes os comportamentos estandardizados aceites quase unanimemente.

Esse estado de coisas, com este tipo de gente dominante, leva à incomunicabilidade. O sujeito que supostamente tem alguma inteligência e talvez alguma cultura formal, fala para ouvir o eco do discurso pré-fabricado que fez. Ele não fala para ouvir alguma coisa, fala para receber a confirmação da matéria de revista que também foi lida pelo suposto interlocutor.

Perguntas não são perguntas; são chances dadas ao interlocutor de deixar claro ter bebido na mesma fonte de padronização do perguntador. Os conversadores são duas paredes ou talvez dois espelhos a se refletirem e amplificarem. Esse ressoar de ecos tem o efeito de amplificar o que há de pior e de filtrar, deixando passar as partículas maiores e concentrar o discurso no seu núcleo.

O núcleo purificado de um discurso pequeno burguês neo fascista é aquilo que resulta da purga de tudo que fosse tolerância meio espontânea. Resta o escândalo padronizado, as sentenças moralizantes que devem tudo à liberdade perdida voluntariamente, porque de resto servia pouco ou nada…

Pós escrito breve: a menção a Agustina Bessa-Luís deve-se a ser escritora excepcional, que não se envergonha de apreciar história, não se envergonha de ser aristocrata e não se envergonha de escrever a explicar o que reputa passível de explicação. Mais um volume de Agustina alcançou-me, de surpresa, vindo pelos correios, fruto da imensa gentileza de um amigo inteligente que pouco fala.

Os três pilares do golpe: udenismo, esquerdismo Cabo Anselmo e judiciário.

Antes de qualquer coisa, convém uma pequena advertência. Conversando com um amigo sobre o segundo pilar apontado no título, ouvi que Cabo Anselmo lembrava imediatamente delação. Sei bem disso, mas a referência a Anselmo, como inspirador de certo discurso, não tem a ver com seu caráter delator, mas com a incitação irresponsável a um esquerdismo supostamente radical, que serve bem à direita golpista. Enfim, a lógica Cabo Anselmo, para mim e para este texto, tem a ver com esta incitação irresponsável, não com a delação.

Ao contrário de países vizinhos, o Brasil não tomou cuidados para evitar um golpe que subverta a vontade popular nas próximas eleições para a chefia do Estado. Ao contrário do que a maioria da imprensa diz, o Brasil tem níveis de liberdade que implicam verdadeira negação da soberania, da constituição e dos crimes de injúria, calúnia e difamação.

Contrariamente ao que fizeram Argentina e Venezuela, o Brasil, mesmo governado por gente que pensa mais no povo que na minoria de 15%, achou que era possível ter imprensa concentrada, monopolista, sem limites e entregue a capital estrangeiro. Os que estão no governo acreditaram que era possível comprar esta imprensa e receber dela o mínimo, ou seja, que ela fosse imprensa e não partido político. Mesmo tendo provas contínuas da impossibilidade, o governo continuou pagando para ser caluniado dia e noite…

Contrariamente ao que fizeram Venezuela e Argentina, o Brasil, pelos governos que estão há treze anos, acreditou que a honradez é paga com honradez e que não existem identificações de classe nem subornos. Não purgou a cúpula do judiciário dos golpistas e experimentou o sabor amaríssimo de juízes ignorantes, recalcados, vaidosos, cúpidos, farisáicos, oportunistas e com nenhum apreço à constituição que supostamente guardam. Vimos, então, o espetáculo horrível de juízos de exceção que degradaram homens inocentes e que foi a antesala da interdição de gente querida pela maioria.

Os que governaram e governam o país há treze anos trabalharam para reduzir a desigualdade social, o pior problema do país, e tiveram êxito marcante. Não trabalharam suficientemente para que a maioria tivesse consciência de classe e para que esta maioria pudesse escolher livremente doravante, todavia. Eles ignoraram os instrumentos do golpe e acreditaram que o povo e os que vendem para o povo seriam apoio suficiente.

Ignoraram que há, sempre, quem os queira tirar não apenas do poder, mas da vida, e que têm tenacidade para seguir a tentar. Sinceramente crentes que todo poder emana do povo, deixaram agir com poder de Estado os que nada têm emanado do povo e não tiveram coragem de dizer que funcionários a 10.000,00 euros mensais não podem trabalhar pelo povo, porque num país de renda mensal média de 300 euros, quem ganha 33 vezes mais que a média não é povo e, obviamente, age por sí e por quem está acima.

Aceitaram o jogo udenista, porque parte de seu êxito deveu-se a terem feito discurso udenista, lá atrás, há quinze ou vinte anos. O moralismo, aquilo que passa por dizer que tudo se trata de fulano ou sicrano ser ladrão ou infiel ao cônjuge ou adicto de drogas ilegais ou de álcool, foi uma das bases de seu discurso inicial. Hoje, este discurso é base da oposição a eles, com a amplificação da imprensa e da corporação judiciária.

Nunca insistiram unicamente nas conquistas relacionadas à melhoria na desconcentração da apropriação de rendas, que efetivamente realizaram. Nunca disseram que o ponto central da dinâmica social é a luta de classes, porque aliaram-se àqueles que passaram a vender mais. Assumiram a vergonha de serem de esquerda – que foram, realmente – e aceitaram as regras do discurso da oposição, que insiste em moralismo e na inexistência de esquerda e direita.

O grupo que hoje é governo no Brasil terá êxito nas eleições do ano próximo, mesmo que a seleção nacional não triunfe no mundial de futebol. Mas, ter êxito nas urnas, no voto, na preferência dos eleitores, não significa assumir o posto obtido pelo voto. Haverá um judiciário ávido por encontrar alguma questiúncula, um detalhe qualquer, ou mesmo servir-se de farsa pura e simples – e há precedente – para interditar a opção que não seja a do retorno da concentração de rendas e da entrega ao estrangeiro.

Há uma opção para o grupo que está no governo, se quiser resistir ao udenismo, ao esquerdismo Cabo Anselmo e ao judiciário: falar para a maioria e deixar claro o que ganharam e deixar claro o que é o judiciário e de que é composto. Com relação ao moralismo udenista e ao pseudo esquerdismo Cabo Anselmo, o primeiro deve ser ignorado e o segundo deve ser mais que ignorado.

Um pequeno pós escrito tem lugar. O que chamo de lógica cabo Anselmo fica claro num episódio recente e no comentário que fez um jornalista que posa de simpático, aberto e outras coisas bacaninhas do gênero. O Kenedy Alencar – jornalista que é empregado do Frias da Folha de São Paulo –  faz de conta que é livre e que segue sua pauta.

Pois bem, há cinco ou mais dias, o Congresso Nacional, em sessão plena, devolveu o mandato do Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Na ocasião, em abril de 1964, o congresso, amedrontado, considerou vacante a Presidência da República, o que ajudou a malta golpista a dar aparências jurídico-formais ao golpe.

Na sessão que anulou a farsa de cinquenta anos atrás, os comandantes do exército, da aeronáutica e da marinha de guerra estavam presentes e não aplaudiram quando o Presidente do Senado proclamou a anulação da vacância declarada cinquenta anos antes. Todos os demais presentes aplaudiram quando da formal proclamação.

O tal jornalista Alencar – de prenome Kennedy – escreveu artigo a dizer e pedir que a Presidente Dilma punisse os comandantes militares porque não aplaudiram a reabilitação de João Goulart. E essa cretinice repercutiu e foi repetida, tanto por quem fazia ironia, quanto por aqueles que viram nisso um grande arroubo de esquerdismo cioso da história.

Isso do Kennedy Alencar é Cabo Anselmo puro. Primeiro, militar não aplaude nada. Segundo, aplaudir não é obrigação de ninguém. Terceiro, não aplaudir não é falta funcional, portanto não é infração. A Presidente Dilma não tinha, nem podia punir algo que não é infração.

A imprensa, a pregação para os convertidos, a cólera e o golpe.

Pode-se dedicar todo o tempo do mundo a lateralidades e a coisas acessórias quando se trata de falar do Brasil, mas o principal é a hedionda concentração de riquezas. Hoje, os 10% mais ricos detém 42% de toda a riqueza do país. Isso é quase sem precedentes e nenhuma abordagem que se queira séria passa à margem dessa evidência.

Nos últimos doze anos, ou seja, no período que compreende os dois governos do Presidente Lula e o governo em curso da Presidente Dilma, esta concentração recuou e a velocidades maiores que as de outros recuos pontuais havidos anteriormente. Ou seja, o que hoje é terrível, era muito pior.

Essa aceleração na redução de desigualdades na apropriação de riquezas é um dos pontos centrais do ódio votado a Lula e a Dilma por partes da classe dominante, pela classe média alta e pela imprensa de forma quase generalizada. É verdade que a maior parte da classe dominante não se move pelo ódio, porque não se entrega ao luxo de ser estúpida, ela que ganha com o aumento dos mercados consumidores.

Todavia, uma significativa parcela move-se mais por ideologia que por cálculo e a inércia social e econômica lhes permitem essa aparente contradição. As classes médias altas movem-se tanto por cálculo quanto por cólera, pois percebem que a descompressão dos de baixo faz-se em detrimento dela, que vê o custo dos escravos aumentar muito e seus preconceitos moralizantes se esfumaçarem.

As classes médias altas são incapazes de perceberem a melhora do ambiente social como algo que lhe inclua e lhe beneficie, porque só pensa em ganhar mais e não crê que isto seja possível senão em detrimento das camadas mais baixas. Escravos que são, não cogitam aquinhoar-se melhor em detrimento dos de cima, sempre dos de baixo. Escravos e covardes…

A imprensa, em sua maioria, essa move-se por causas que muito dificilmente se poderiam considerar estrategicamente racionais. Ela não foi ameaçada por este tímido mas sustentado movimento de desconcentração de riquezas empreendido pelos Presidentes Lula e Dilma. Pelo contrário, viu seu mercado de publicidade aumentar significativamente.

Aqui, entra em cena outro elemento: ódio de classe. Os patrões da grande imprensa creem-se aristocratas, embora as evidências neguem a qualidade de melhores àqueles que nada mais fizeram que viver de privilégios estatais obtidos à custa de chantagem constante.

Temos no Brasil a mania de confundir as coisas e viver num ambiente de perpétua confusão conceitual. Isso não é devido ao acaso, mas a uma postura calculista inercial, que todos assimilam e praticam sem se perguntarem porque. Assim, costumamos lançar cortinas de fumaça sobre as origens sociais das pessoas e principalmente confundir social e econômico.

Lula foi verdadeiramente a primeira pessoa de origens humildes a obter o poder em nível elevado. Todas as demais, fossem de esquerda, direita, centro ou o que fosse, eram de extração social elevada, mesmo que não fossem nitidamente plutocratas. Isso nunca foi perdoado a Lula: o atrevimento de postular e ganhar eleições, após ter perdido em várias oportunidades e, pior, de cumprir o que dele se esperava.

A maioria esmagadora da imprensa não deu tréguas ao Lula e o assediou insistentemente por oito anos, com mentiras, insignificâncias, deselegâncias, insinuações, manipulações e com propaganda subliminar. A despeito de tudo isso e de terem levado o tribunal supremo a forjar um julgamento criminal sem provas contra pessoas próximas ao Lula, não o conseguiram apear da presidência da república.

Essa insistência da grande imprensa transferiu-se para Dilma, embora sem o mesmo nível de deselegância e vileza, porque Dilma não é propriamente alvo do ódio de classe.

O caminho escolhido pela imprensa conduziu a algo terrível e de difícil reparação, que vitima partidos políticos de situação e de oposição: a idéia disseminada de que todos são iguais e que política é algo indigno.

As idéias mais cretinas, menos elaboradas e mais moralizantes vicejam nas massas. A imprensa investiu contra a política em geral por ter crido esta a única estratégia possível para conduzir à interdição dos Presidentes Lula e Dilma. Ocorre que o efeito foi geral, o que prova não haver venenos de efeitos localizados e destruição limitada.

As massas – aí incluída a classe média alta, que é profundamente massificada – envenenaram-se de um moralismo rasteiro e colérico que rápido pode degenerar na rejeição pura e simples da democracia eletiva e dos direitos e garantias mais básicos. A ânsia de linchamento foi despertada como poucas vezes se viu neste país.

Um efeito imediato desta cólera e deste moralismo de botequim dominantes é a porta aberta para as alternativas ao sistema representativo. Ora, o mais evidente à disposição é um burocratismo pseudo-meritocrático, ou seja, uma espécie de fascismo.

Não creio, particularmente, que isto acontece assim tão drasticamente, mas não posso fingir não ver que a imprensa dominante instigou formas de pensar que abrem caminho para tais formatos.

Outra resultante terrível da campanha da imprensa contra a política em geral e a favor do nivelamento intelectual pelo mínimo possível é que ela não chega a muitos quando quer fazer política editorial de direita a sério.

A imprensa chegou ao ponto de pregar para convertidos nos seus editoriais nitidamente de direita. Ela desqualificou insistentemente a política, promoveu o linchamento, a cólera, a suposta ação direta, mas continua a gostar de falar de política. Quando o faz, a sério, nalgum editorial escrito por um direitista alfabetizado, ninguém lê, exceto os já convertidos!

O grande problema de instigar o que há de pior, mais rasteiro, mais moralizante, mais massificante é que não há resgate ao depois e que essas coisas são muito sedutoras realmente, o que fica provado pela facilidade de sua disseminação.

Outra resultante, talvez a mais terrível, é que demonizada a política e ainda assim incapazes de ganhar de Dilma em 2014, eles terão que recorrer ao golpe da interdição judicial instigada pela imprensa. Mesmo com fortíssima campanha mediática contrária, com os convites para a superficialidade, para o ódio e para o linchamento, a presidente conta com 47% de apoio, segundo pesquisa recentíssima.

A aprovação à Presidente revela que colocar o nada e a cólera como suporte discursivo da oposição não lhe rendeu apoios, porque a cólera vai igualmente em todas as direções e o nada alugar nenhum vai. Novamente conclui-se que, ou se resignam a nova derrota eleitoral, ou partem para o golpe judiciário.

Não acredito na resignação de grupos de direita fascistizantes que nunca conseguiram viver afastados do Estado. Resta, portanto, o golpe.

JFK: as duas hipóteses plausíveis.

Os fatos históricos ditos relevantes podem ter por trás acidentes e aleatoriedades, mas isso é raro como causas principais.  Lee Oswald é hipótese para o assassinato de John Kennedy digna do nível mental da sociedade de massas triunfante. Ele, nas suas duas variantes, é pueril demais.

Como agente a serviço do comunismo patrocinado pela URSS, seria preciso admitir que fosse capaz de violar as regras da física e que a URSS fosse dirigida por imbecis. Como agente da CIA a serviço desta e da máfia, seria necessário admitir a violação das regras físicas e aceitar a conspiração na sua pior forma: aquela que diz ser possível um alcaguete de polícia fazer algo sem motivações e condições.

A bem da concisão, deixo Oswald de lado, porque é tolo considerar possíveis os três tiros rapidíssimos de longe e porque todos que contam sabem que foram ao menos dois tiros de frente, algo que os marselheses saberiam fazer bem. Ademais, quem se dispunha a tal empreitada sabia ser muito mais seguro contratar gente competente do submundo de Marselha que um vai com o vento, informante dos serviços secretos. E, ao depois, todos seriam mesmo eliminados, como ocorreu com Lucien Sarti no México.

Uma trilha segura é procurar os que se beneficiariam com a coisa. O mais evidente é Lyndon Johnson, que herdou a presidência. Mas, há um menos evidente, que aponta para uma hipótese também plausível, não como o responsável e mandante, mas como um elo para a ação de outros descontentes: Bob Kennedy.

Joseph Patrick Kennedy era um irlandês mafioso e riquíssimo. Seguiu a trilha dos mafiosos riquíssimos e inteligentes, ou seja, visou a esquentar e branquear, tanto o dinheiro, como a linhagem. Tratava-se de abandonar o estigma de mafioso e ele teve bastante sucesso nisso. Primeiro, ele estancou os vínculos mafiosos nele e não os transmitiu aos filhos; segundo, ele mandou os filhos lutarem de verdade na II grande guerra, e perdeu o primogênito e quase perde o segundo.

Embora mafioso, irlandês e católico, ele fora embaixador em Londres e mandara os filhos para a guerra, pelos EUA. Tinha mais que dinheiro, portanto, e tinha muita ambição. Ele construiu a carreira de John, seguindo o cursus honorum à risca e ao custo de muito dinheiro e favores. Valia a pena, porque o sobrevivente era inteligente e simpático, o que é a mistura da sagacidade com a tolerância, temperados pela necessidade e a falta de escrúpulos.

É invulgar que o patriarca tenha percebido as circunstâncias do tempo e planeado incursões em áreas que não seriam comuns. Percebeu que macartismo e radicalismos eram infrutíferos e comprou até um prêmio Pulitzer para John Kennedy, dando-lhe acesso ao campo dos liberais letrados, tolerantes e sedutores, mesmo que o livro fosse escrito por algum escritor fantasma.

A gente descendente de Joseph Kennedy não se assemelhava minimamente ao protótipo do magnata rude do Texas, nem do político semi-alfabetizado dos dois partidos irmãos.

Acontece que para eleger John Kennedy em 1960, Joseph obteve dinheiro, acordos e votos com a máfia do país todo e principalmente de Chicago de de Las Vegas. O pessoal da teoria da conspiração oficial, geralmente a maior imbecilidade disponível, costuma dizer que Sinatra intermediava esses negócios, o que não faz qualquer sentido. Sinatra era empregado da máfia e bem mais novo que o velho Kennedy, que lidava diretamente com os outros chefes, porque ele mesmo fora um deles.

Bob Kennedy, procurador-geral, inventou de acossar a máfia dos jogos e tráfico de entorpecentes e lavagem de dinheiro e venda ilegal de armamentos. E foi mais além que uma simples farsa ou encenação para satisfazer os moralizantes que gostam de conspirações. Parecia que acreditava naquilo, o que deve levar o analista a muitas dúvidas, porque o pai dele o deve ter advertido da insensatez.

Em 1962, falava-se muito de máfia nos EUA, mas nada que recomendasse como estratégia de propaganda política uma pressão real sobre ela, principalmente por um procurador-geral de presidente eleito com a ajuda dela. Ou Bob foi burro, ou ingênuo, o que dá quase no mesmo. Talvez não tenha sido burro e tivesse desenhado tudo para dar em nada, mas esses cálculos sofisticados podem não ser percebidos bem pelos que são obrigados a darem esclarecimentos em comissões inquisitoriais.

Bobby, com a morte de John, tornou-se candidato natural para 1968, mas a história provou que ele errou no cálculo, se de cálculo tratou-se. Pode ter sido a máfia tradicional, aliada com os psicopatas anti-castristas, que mandou matar John, por causa da perseguição do procurador-geral. Minha curiosidade atem-se a quais teriam sido suas razões: ingenuidade, erro de cálculo ou ignorância do alcance dos acordos que seu pai fizera para eleger seu irmão mais velho.

Mesmo que ele tenha calculado tudo corretamente e, consequentemente, apostado na possibilidade de restabelecer o acordo inicial de Joseph, tornou-se inconfiável e foi morto. Claro que não foi morto por outro imbecil agindo por conta própria e motivos insondáveis em Los Angeles, em 1968.

Outra hipótese passa pelo que Israel começava a fazer em Dimona. Com mais história que os católicos, e muito mais que os irlandeses católicos, Israel queria a bomba atômica, porque o sionismo é tudo menos burro. Se a fossem fazer somente com esforços próprios, levariam dez anos. Com a ajuda dos franceses, esse tempo se abreviaria em cinco anos, mas isso para quatro ou cinco ogivas.

No final das contas, tanto os franceses, quanto os norte-americanos, ajudaram decisivamente. Ocorre que Kennedy opôs-se a vender a bomba a Israel. Não sei se por anacronismo, fidelidade a Ialta, medo, sabedoria, preocupação em manter a detenção da bomba apenas pelo grupo que já a tinha, ou seja lá o que for. Certo é que ele tinha poucas ou talvez nenhuma ligação com o lobby que viria a ser o mais importante nos EUA, o sionista.

Era muito arriscado ter pouca fidelidade a este grupo de interesses que viria a ter não apenas o dinheiro, mas as mentes no país dominante do mundo. Estar ligado à famosa máfia, anacrônica, de jogos e tráfico de entorpecentes e armas começava a ser muito pouco na época. Essa gente tinha dinheiro, mas dinheiro pouco relativamente a quem tinha dinheiro muitíssimo e o afã religioso de ter um império a serviço da terra prometida em termos talmúdicos.

Qualquer das duas hipóteses é plausível e ambas complementares, na medida em que os grupos interessados ganharam ambos. Sem receios de parecer ingênuo, creio que perderam os EUA, porque o presidente que não hesitava em ordenar golpes de Estado e consentir em eliminações físicas, foi expurgado para se por em seu lugar coisas piores.

Pode ter sido muita burrice de Bobby ou a reação previsível de um lobby que já era forte, mas ainda não se arriscara à eliminação.

José Dirceu: preso político duas vezes.

Acontece a José Dirceu a raridade de ter sido preso político na ditadura e estar em vias de novamente sê-lo, na aparente democracia regida pelo direito. É provável que na próxima semana seja realizada sua prisão, com algemas, equipes da TV Globo, fotógrafos dos jornais, toda a dramaticidade de uma degradação pública de alguém profundamente corajoso.

Isso resulta de uma farsa montada no tribunal mais alto do sistema judicial brasileiro. Algo tão burlesco que permite concluir que os juízes não erraram tecnicamente, mas fizeram deliberadamente algo que pode ter inúmeros nomes, exceto julgamento.

Uns juízes aparentam certa loucura, misturada com superficialidade e volubilidade; outros são conservadores de antiga fé, daqueles que dão a volta à casa armados, à noite, antes de deitar-se, à procura de algum comunista escondido nos jardins. Há deles tão vaidosos que estão continuamente a serviço de certa imprensa, que os adquire com espaços para dizer barbaridades em entrevistas, muito à vontade e sobre o assunto que quiserem. Por fim, há os covardes.

A imprensa dita grande – Globo, Folha de São Paulo e revista Veja – incumbiu o tribunal constitucional da missão de expurgar pessoas como José Dirceu, mesmo que isso implicasse a montagem de uma farsa tão ampla que levasse junto mais gente também inocente. E eles gostaram da incumbência e chegaram a exceder-se, principalmente pela ferocidade inquisidora e pela mendacidade do acusador-geral.

A coleção de violações às leis perpetradas nesse julgamento de fancaria é muito extensa e convém mencionar as principais. O último tribunal do sistema judicial só é juiz natural em matéria criminal para quem detém mandatos federais. Assim, o stf era absolutamente incompetente para iniciar julgamento criminnal de José Dirceu, por exemplo, que não era mais deputado federal.

Provas a favor dos réus foram suprimidas e ocultadas por meio de desmembramento de inquéritos e determinação de sigilo sobre os que evidenciavam não haver dinheiros públicos envolvidos. Realmente, o maior tribunal do pais encontrou o crime de peculato com dinheiro privado, algo que vai além do simples e corriqueiro desprezo pela lei, o que é comum nos juízes brasileiros.

O peculato é desvio e apropriação de dinheiro público e os famosos recursos pertenciam a um fundo privado da empresa VISANET. Para tornar as coisas mais absurdas, os serviços contratados foram prestados.

O presidente do tribunal esforçou-se para oferecer aos que o puseram em evidência mediática messiânica o máximo possível em linchamento bem ao gosto da pequena-burguesia, ou seja, sangue e humilhação como veículos de expiação moral. Para obter mais efeitos dramáticos foi necessário dar mais uma volta no parafuso das violações a direitos e garantias e fatiar – a expressão é do juiz – o julgamento por supostos crimes e julga-los em blocos.

Nunca o judicial brasileiro – pródigo em desprezo seletivo pela legislação e em subserviência aos interesses mais conservadores – produzira com tanta presa farsa tão digna de vaudeville. O nível caiu bastante, o que revela o grau de apoio da imprensa e o grau de desprezo pelo público razoavelmente alfabetizado, que rapidamente percebeu tratar-se de nada mais que um juízo de exceção em que os réus já entraram condenados.

Os juízes passaram a ficar à vontade demais, como se todo o país se compusesse de leitores da revista veja e perpetraram a imensa coleção de profanações à legislação sem preocupar-se com as aparências, com suas biografias, com nada, enfim. Chegaram ao grau zero de honra, porque não é razoável que tenham feito isso por ignorância formal.

Dois clowns togados sacaram dos bolsos um nome mágico: teoria do domínio do fato. Essa muleta serviu para fazer o que é absolutamente proibido no processo criminal: condenar sem provas. Mas, um dos pais da teoria, o alemão Roxin, veio a público dizer com todas as palavras que não se tratava de algo a permitir condenação criminal sem provas, como equivocadamente queriam os tradutores nacionais. E eles não coraram, não silenciaram e fizeram de conta que não tinham sido expostos ao ridículo.

Não há, nos autos da farsa, qualquer prova de pagamentos a parlamentares para votarem desta ou daquela forma, feitos com dinheiros públicos e de maneira sistemática e continuada. Ou seja, não há provas de corrupção ativa nem passiva, de peculato, nem de formação de quadrilha. Nada obstante, uma juíza disse com todas as palavras que embora não houvesse provas ela condenaria porque afinal ela podia fazer isso.

Novamente, estanco um pouco para insistir num ponto: o nível da farsa, o à vontade com que se perpetrou a coleção de violações, revelam bem a total falta de limites que inspira juízes amparados na imprensa e o total desprezo pelo público, porque têm a certeza de que é integralmente constituído de imbecis, o que é falso, porque 05% da população não é imbecil.

A primeira prisão de José Dirceu terá sido menos infamante para os mandantes que está segunda. A ditadura era menos farsesca que este tribunal ansioso por dar roupagem jurídica a um juízo de exceção de réus previamente condenados. Convém que Dirceu faça o mesmo gesto de quando estava prestes a embarcar para o exílio: exiba as algemas, altivamente.

O Brasil precisa de armar-se.

À direita e à esquerda – que não sou desses novos direitistas que negam a dicotomia – receia-se postular que o país se arme adequadamente para autodefesa. O receio, por razões diferentes, é bastante indicativo de outra dicotomia fundamental: entre nacionalistas e entreguistas.

Os grupos que se opõem ao armamento adequado do país fazem-no basicamente por medo de forças armadas detentoras de bons equipamentos, por medo de forças armadas capazes de garantir a soberania e por crer que há outras prioridades no gasto público. Percebe-se que o terceiro argumento é quase neutro, porque pode ser adjacente aos dois primeiros.

As forças armadas têm histórico de ajuda a golpes de estado, no Brasil, sempre em auxílio dos grupos que não logram êxito na obtenção do governo por meios eleitorais. Todavia, essas forças que ajudam golpes ou os realizam não precisam necessariamente estar bem equipadas, porque nunca chegamos ao limite duma guerra civil. Elas patrocinam golpes de Estado mesmo sendo mal equipadas e mal treinadas.

Por outro lado, historicamente, a divisão entre nacionalistas e entreguistas é bem marcada nas forças armadas e sempre houve, ainda, os legalistas, ou seja, grupo que não adere a iniciativas golpistas. Assim, a balança é desequilibrada por ação de forças outras e externas às forças armadas, independentemente de quão equipadas sejam.

É óbvio que, cedo ou tarde, se não conseguirem aceder às riquezas minerais e ao mercado brasileiros sem limites, os EUA aumentarão a intensidade das tentativas de desestabilização de governos que se preocupam mais com interesses locais que com transferir riquezas para fora e ficar com as comissões. De início, são pressões disfarçadas com argumentos que soam bem aos ouvidos de parte das classes mais altas.

Em momento posterior, das pressões passam à intimidação e à busca de pretexto para invocar suspensões ou perdas de soberania localizadas e pontuais. O discurso ecológico serve bem a esta segunda volta do parafuso e dizem que o país é incapaz de garantir patrimônios naturais que se convertem, discursivamente, em patrimônios mundiais que devem ser protegidos por fiscais externos.

Não há recuo nisso exceto se o país vítima for capaz de defender-se. Realmente, se a vítima potencial tiver real capacidade de defesa, até essas etapas iniciais tendem a morrer logo após o nascimento, porque neste campo há pouco discurso inútil.

É claro que o Brasil foi imensamente estúpido ao abrir mão de fazer sua bomba atômica e que, agora, é um pouco tarde, mesmo que nunca seja tarde de todo. Retomar a construção da bomba é essencial e, contra os raciocínios baseados no senso comum, é muito mais barato que pode parecer. A bomba é caríssima para economias pequenas que não se beneficiam da enorme cadeia de produção tecnológica e industrial, mas é relativamente barata para economia do tamanho da brasileira, considerando-se todos os efeitos econômicos e estratégicos que decorrem.

De qualquer forma, mesmo que continuemos nesta tolice de renunciar à bomba, devemos ter uma defesa adequada e isso implica, basicamente, sistemas anti-mísseis, anti-navios e anti-aéreos. Não precisamos de largos investimentos em infantaria, nem em cavalaria mecanizada. Tampouco precisamos de uma marinha opulenta ou com inúteis porta-aviões.

Baterias de mísseis anti-navios e anti-aéreos devem ser instaladas ao longo da costa brasileira e na amazônia. Da mesma forma, bases aéreas com poucos caças como Sukhoi 35 ou Dassault Rafale equipados com armamentos contra embarcações e contra alvos aéreos são o suficiente. O que precisamos de infantaria e de cavalaria mecanizada deve ficar nas fronteiras orientais ao norte.

É completamente anacrônica a estratégia de defesa que reputa prioritárias as fronteiras sul, com Argentina e Uruguai. É mais que anacrônica, é mesquinha, a manutenção de enormes contingentes militares burocráticos no Rio de Janeiro. Esses dois exemplos de prioridades e falsas prioridades revelam que as forças armadas sucumbiram à lógica do oportunismo de funcionalismo público e nada mais.

Porque a classe dominante aceita pagar um sistema judicial caríssimo.

O custo do sistema judicial brasileiro – incluindo-se todas as adjacências a ele – é altíssimo e nitidamente desproporcional à sua utilidade, à complexidade de suas tarefas e ao nível dos seus funcionários.

Este último aspecto chega a ser assustador, porque à capciosidade bizantina das provas de admissão corresponde profunda ignorância de qualquer outra coisa que não sejam prazos e teoremas jurídicos da moda mais recente. São técnicos estreitos, desconhecedores de teoria do Estado, de História e de qualquer outra coisa que não seja técnica e modismos elevados a novidades.

Qualquer um que se detenha a pensar e, dispondo de alguns dados de outros países, disponha-se a algumas comparações percebe que a litigiosidade no Brasil é desviante e abrange em larga margem causas contra o Estado e contra prestadores de serviços públicos concedidos. A lide contra o Estado, em si, já é algo dificílimo de sustentar-se com algum rigor conceitual, porque é necessário muito privatismo jurídico para assumir o Estado como parte em juízo, a ser julgado por órgão dele mesmo. Claro que o direito é o mundo das ficções, mas algumas vão demasiado longe.

Tudo isso, custo elevado, profusão de funcionários, excesso de lides, não é assim porque tem que ser, inexoravelmente, ou porque vivemos no melhor dos mundos de amplo e irrestrito acesso ao judicial. Isso existe porque se insere na lógica da apropriação privada do Estado, seja pela colocação de vários funcionários bem pagos, seja pela indústria de honorários pagos pelo Estado a bancas privadas, seja pela necessidade de um bastião defensor da classe dominante, em penúltima instância, ou seja, antes das baionetas.

Uma das tolices que vicejaram passava por objetar à conformação do sistema uma suposta falta de trabalho. Isso é absolutamente falso e é mirar no ponto errado. Há bastante trabalho porque há realmente muitíssimas causas. A questão é que essas causas existem para justificar o sistema e não o inverso. Esse número aberrante de causas é algo que se consente que haja, enfim.

Sempre pensei qual seria o porquê da classe dominante permitir a escalada insensata dos custos do sistema judicial brasileiro, quando é óbvio que, se não pretendesse, não teria havido esta aceleração vertiginosa. A princípio não faz qualquer sentido consentir este aumento disfuncional, quando se poderiam apropriar deste dinheiro de outras maneiras mais rentáveis, como por exemplo obras e isenções fiscais.

Mas, de algum tempo para cá, dei-me conta de algo sagazmente percebido pela classe dominante a levar-lhe à complacência com a hipertrofia do sistema judicial. Ela, a classe dominante, adquiriu com recursos públicos um sentimento de identidade social deslocado para cima dos pontos originais dos funcionários isoladamente.

Com raras exceções, o ingresso nas corporações judiciais – públicas ou privadas – implica mobilidade social ascendente e, consequentemente, o ingresso noutro patamar de identificação social. Isto modifica nitidamente as inclinações gerais do sistema ao produzir alguma decisão, mesmo que haja um e outro que se glorie, ou de ser aleatório, ou de ser quixotesco.

As remunerações muito altas não compram os funcionários em bloco para algo que se lhes peça claramente. Compram-lhes para solidariedade e identidade de classe em níveis superiores à média. O que é muito mais eficaz, porque muito mais sutil e menos percebido pelo neo-cooptado.

Em termos práticos, podemos perceber mais nitidamente o funcionamento da coisa na área criminal. Suponha-se que um jovem marginal de classe alta, com histórico de condutas violentas ao estilo pitt bull tão celebrado atualmente, invista contra outra pessoal que não seja de sua classe e o inflija ferimentos graves por meio de uma barra de ferro.

Essa barbaridade – evidente na provável futilidade da motivação e na desproporção dos meios – implicará a concepção de toda uma rede de pressões e invocações de cumplicidades em torno do agressor. Por proximidade de classe, fatalmente haverá algum funcionário do judicial próximo do agressor, ou de seus parentes, ou de seus amigos, que consciente ou não fará eco ao discurso da complacência.

Rápido a rede de cumplicidade social por identificação de classe evoluirá para o destaque dos aspectos familiares e íntimos do marginal. Dir-se-á que é bom filho, muito amável e carinhoso, que chorava ao receber presentes no aniversário, que rezou muito compungido na primeira comunhão e muitas outras coisas de caráter subjetivo e familiar, que nada têm com o que se chama análise jurídica de um caso.

Breve, não haverá crime, mas um deslize eventual, imprevisto e plenamente desculpável de uma criança amorosa que foi exemplar filho dentro de casa. Isso, claro, se a vítima for de classe social inferior e não dispuser dos meios de fazer girar a máquina da cumplicidade e identidade sociais.

De forma um tanto foucaultiana, da mesma maneira que o criminoso construído e enfatizado afasta o julgamento do crime, o sujeito desfeito de uma suposta personalidade criminosa afasta o crime e ninguém pensa mais em termos objetivos, apenas num histórico muitas vezes forjado para lembrar ao sistema que se trata de um deles, afinal.

Quando nada disso funciona, por fim, recorre-se à chantagem pura e simples, outra coisa fácil de fazer numa corporação que se deve favores reciprocamente e que cala das infrações e oportunismos dos outros para contar com o silêncio deles quanto a si, quando chegar sua vez. Assim caminha o judicial brasileiro e não parece haver quem esteja interessado em cambiar esta perversão.

A viagem mágica e misteriosa.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

A inocência pairava no ar. O que importava era ser famoso. Fazer sucesso. Por isso o momento era de pedir por favor para me agradar e agradar a todos, escrever carta com declarações de amor, gritar e remexer. E assim continuou por algum tempo, mês a mês, um dia após o outro, passando por algumas noites de alguns dias difíceis, até chegar o momento de gritar por socorro, pois estava precisando de alguém.

A partir desse momento, uma mudança se inicia. Comecei a questionar sobre várias coisas, até sobre nossa própria capacidade. Experiências novas. E fui me perguntando, sentado num quarto de madeira norueguesa, se pertencemos a algum lugar, se temos ponto de vista, se sabemos nossa missão, se sabemos para onde iremos. Todas as pessoas solitárias, de onde elas vêm? Por que o padre escreve o seu sermão se ninguém o ouvirá? E tudo ficou tão diferente, mais misterioso, mais reflexivo, mais introspectivo, até que descubro que todas as coisas gentis que ela disse não fazem mais sentido, aqui, ali e em qualquer lugar. Eu disse: você está me fazendo sentir como se eu nunca tivesse nascido. Passo, então, a desligar minha mente, entregar-me ao vazio, flutuar correnteza abaixo, perceber que isso é não estar morrendo, renunciar a todos os pensamentos. Estou apenas dormindo. É nesse momento que chego ao auge da criatividade, impulsionado por substâncias e experiências novas. Muitas visões e alucinações que me inspiram. Muitos galopes soberanos.

Decido criar uma banda fictícia para fazer apresentações por aí. E assim inicio o show. Acomodem-se e deixem a noite passar. Vocês acham que estou cantando desafinado? Com uma pequena ajuda dos meus amigos eu consigo. O ácido lisérgico me domina e começo e me imaginar em um barco num rio, com árvores de tangerina e céus de marmelada. Lembro-me do tempo da minha escola. Como eu me aborrecia. Muitas regras para serem seguidas. Mas agora está melhorando o tempo todo. Tudo está melhorando. Algo começa a bloquear minha mente. É um buraco onde a chuva entra. Quando minha mente está viajando, começo a pintar um quarto de uma maneira colorida. Não quero que isso bloqueie minha mente. Preciso de mais substância. Chego ao êxtase da inspiração. É quando tenho a visão de que, após escrever um bilhete, a garota está indo embora. Adquiriu independência. Descobriu que a diversão é a única coisa que o dinheiro não compra. E encontra seu parceiro. Em seguida, entro num circo, as famílias assistindo um show de acrobacias. Vejo tudo rodando, parece uma ciranda musical. Está garantido um ótimo espetáculo para todos. Começo a ter inspiração indiana. Perceber que tudo está dentro de nós mesmos, que as pessoas ganham o mundo e perdem suas almas. Começo a me ver velho, com sessenta e quatro anos, junto de meus netos, tentando conquistar a adorável policial. Até a convidei para um chá. Durmo e me acordo numa fazenda dando bom dia a todos. A fazenda está cheia de capim mágico. Os animais se misturam. Pessoas correndo em volta da cidade que está escurecendo. A nossa banda fictícia começa a se despedir. É quando leio um jornal e chego a um orgasmo musical incrível. Isso acontece um dia na vida.

Começo, então, a turnê mágica e misteriosa. Passo por um tolo na montanha. Ele permanece só, errático, sorrindo. Sentado num floco de cereal, misturando-se com sacerdotisas pornográficas e comendo creme de matéria amarelada. Não parecia se preocupar com nada. Nada parecia real. Fecho os olhos e percebo que viver é fácil, principalmente quando se está, para sempre, num campo de morango.

Fico disperso e um tanto quanto revoltado, mas mantenho a unidade, não é querida Prudence? Tenha cuidada. Toco minha guitarra e percebo que ela chora gentilmente. Quero ter a felicidade mas ela parece ser uma arma quente. Decido ir a uma festa. É o nosso aniversário. Depois da festa vem a tristeza. Pela manhã acordo com vontade de morrer. Anoitece e continuo com o mesmo sentimento. Muita confusão na minha mente, até que me despeço e digo “boa noite”.

Pela manhã as coisas parecem mais alegres. Tudo muito colorido, todo mundo sorrindo e indago se todos nós vivemos num submarino amarelo. Uma mulher passa na rua carregando um buldog, bem agitado e interessantíssimo, querendo falar comigo. Atrás dela vem um velho. Parece ser chato. Ele tem cabelos até o joelho. Volto minha atenção na mulher. Percebo algo nela que me atrai. Parece ser tão pesada, mas eu a quero. Oh, querida, não me deixe. Veja que o sol está chegando, porque o céu está tão azul. Curta seus sonhos dourados, bela adorável. É o fim.

Não, antes, como arremedo, deixar tudo como está: um sentimento que não posso esconder, numa longa e sinuosa estrada a percorrer…

A direita alfabetizada rejeita a teoria jiu-jitsu do direito.

A ação penal 470, que atende pelo nome vulgar mensalão, pôs em cena violações a princípios jurídicos básicos: liquidou a presunção de inocência, liquidou a necessidade de lei penal anterior, liquidou o duplo grau de jurisdição e liquidou o princípio do juiz natural.

Estas violações abertas foram praticadas pelo tribunal mais elevado do país, o que revela a que ponto se queria e quer promover o expurgo político de alguns, mesmo que isso implique o expurgo de todo o direito e da suposta respeitabilidade intelectual dos juízes do tribunal.

Isso foi possível porque a imprensa televisiva, três grandes jornais diários e uma revista semanal incitaram a condenação sem provas por meio de bombardeio incessante que levou parte do público a esquecer-se de que todos são inocentes até provas em contrário.

Essa parte do público convencida da culpabilidade sem provas divide-se em partes menores. Uma delas constitui o terreno fértil para semeadura de qualquer proposta de juízo de exceção de quantos tenham trabalhado por uma melhor distribuição de rendas e por menos subserviência a interesses externos.

Outra parte dos que se convenceram da culpabilidade sem provas compõe-se das pessoas que precisam ser constantemente estimuladas pela imprensa, em clima de emergência e de escândalo. Esses arrefecem os ânimos linchadores se os estímulos cessarem.

Ocorreu, todavia, algo auspicioso, recentemente. O tribunal que encena o juízo de exceção reduziu um pouco a coleção de aberrações jurídicas que havia perpetrado e afastou uma delas: a supressão do duplo grau de jurisdição. Isto deu-se por meio de uma obviedade, que foi a aceitação de um recurso a dar aos condenados o direito à revisão do julgamento, algo a que todos têm direito.

Foi o que bastou para o pessoal do linchamento indignar-se, embora a reação fosse ela própria uma aberração, na medida em que o duplo grau é garantia constitucional que nunca se pôs em questão e fora suprimida pela primeira vez no país, sob os aplausos enfáticos de uma imprensa pueril, analfabeta e partidária.

À reação furiosa contra o puro e simples respeito a princípio jurídico antiquíssimo sobreveio algo surpreendente: dois juristas respeitados, ideologicamente de direita, insuspeitos de amizade com os réus do processo, proclamaram que houvera nada mais que condenação criminal sem provas, o que é inadmissível.

O que muitos diziam desde o princípio foi dito por pessoas alinhadas ideologicamente aos que promoveram e festejaram o expurgo político disfarçado em processo jurídico. Evidentemente que chama atenção não terem denunciado a farsa e as violações evidentes ao direito antes.

Esses dois juristas deram sinal importantíssimo de que ainda há direitistas bem educados, que receiam a subversão total do Estado de Direito e a celebração festiva e acrítica de julgamentos de exceção violadores de garantias obviamente abrigadas na constituição federal.

Que haja quem perceba a hora de cessar a espiral do linchamento é fundamental para que não seja inevitável desaguar-se no golpe e no rompimento total, ou seja, para afastar-se a lógica do tudo ou nada, tão cara aos irresponsáveis da imprensa que incensam a histeria nas camadas médias já propícias à superficialidade, à bipolaridade e à esquizofrenia.

Os mencionados direitistas alfabetizados perceberam que usar os tribunais assim de maneira a violar tão abertamente as garantias básicas, com o propósito de expurgo político seletivo, é demasiado arriscado. Realmente, esse tipo de conduta assemelha-se às guerras, que se sabe como começam, mas não como terminam.

É muito menos arriscado manter as regras jurídicas em sua aparência de isonomia e não levar os tribunais a operadores de expurgos políticos, que violar abertamente as normas mais básicas a bem de um clamor de moralismo histérico produzido sistematicamente por parte da imprensa.

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