Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 17 of 126)

O decadentismo sabe a sangue e cheira a carne queimada. Ou, como na Ucrânia decorre a mais estúpida provocação em sessenta anos.

Uma maneira de exorcizar a morte é matar por deleite na estética da destruição. Outras, para os mais capazes, são a crônica e a poesia. Claro que capacidade, aqui, é termo de ambiguidade proposital, posto que pode significar falta de alternativas.

Boccaccio exorciza a peste a descrevê-la e seria para além de suas capacidades e sem efeito estético elevado tentar fazê-lo a matar. A Peste já matava demasiado e com feiura difícil de atingir por ofício humano…

A decadência do Império Norte-Americano é das coisas mais medonhas em que me ponho ocasionalmente a pensar.

Escrever sobre ela deve ser pelas beiradas, com receio do concreto, com analogias desconfiadas, simbolismos, sem cair na tentação de crer nas analogias, sem pensar em Roma.

O decadentismo do governo norte-americano do mundo parece, inicialmente, algo improvável e até contraditório, porque aceitou-se o lugar-comum do povo recente, do caldeirão fervente em que várias culturas e idades tornar-se-iam homogêneas.

Se isto pode ter alguma veracidade relativamente ao povo, nada tem de verídico relativamente aos governantes. Estes últimos são a gente mais velha do mundo atual, exceptuando-se os asiáticos, claro. Quem não perceber o que foi no período anterior ficará por achar que mergulho na contradição.

Esses governantes, no início longínquo de milênios, matavam para viver. O ciclo fecha-se quando matam para divertir o medo de morrer.

Fato é que os EUA e seus parceiros europeus, nomeadamente a Alemanha, neste caso, patrocinam a desestabilização selvagem da Ucrânia. Para isso, serviram-se da massa neo-nazista disposta a por abaixo toda Kiev e a trabalhar para meia dúzia de dirigentes e alguns milhões de pequenos-burgueses a sonharem com salários em euros.

A Ucrânia, como algo diferente da Rússia, é invenção recente. A grande Rússia nasce precisamente no principado de Kiev, o primeiro na grande região eslava a tornar-se ortodoxo; Moscou vem depois.

Não sei, sinceramente, se alguém no departamento de estado e no estado-maior percebe o que se pôs em marcha. Não sei se há gente nestes locais com alguma memória do que resultou da instalação dos mísseis nucleares na Turquia, há sessenta anos.

 O Urso tem o segundo maior arsenal dessas maravilhas nucleares, as melhores defesas anti-aéreas que há e tem Putin que, infelizmente, não é imbecil nem trabalha para interesses outros além de russos. Ele não consentirá na instalação de mísseis nucleares norte-americanos na Ucrânia, isso é evidente e devia ser sabido.

Por outro lado, se não foi para instalar mísseis nucleares na Ucrânia que deram o golpe de Estado por meio da agitação das massas filonazistas, então a coisa é muito pior, porque começa a fugir à compreensão tentada a partir de história, geografia, política e lógica.

Realmente, se toda essa fúria destruidora visar apenas a poder comprar produtos alemães na moeda alemã, então os nazistas ucranianos são mais tolos que o comum da tolice nazista e pequeno-burguesa. Porque mediando a passagem do gás russo para a Alemanha, a Ucrânia poderia comprar tudo que quisesse, na sua própria moeda, ou em gás, ou em BTUs, ou em qualquer coisa que não implicasse gastar em marcos alemães e trabalhar por subsalários também em marcos.

Ou seja, qualquer que seja a motivação subjacente à desestabilização da Ucrânia, a coisa é estúpida demais e somente pode atribuir-se a algum senso estético da destruição, do caos, do abandono, da perda absoluta de travas, do gozo da estupidez em forma pura, da inconsequência.

Os governantes norte-americanos são facilmente apreensíveis por esquemas psicologizantes simples. Dizem temer que estes ou aqueles detenham armas nucleares, porque não seriam confiáveis. Dizem isto porque sabem, intimamente, que os menos confiáveis do mundo para deterem armas nucleares são exatamente eles.

Eles foram os únicos a lançarem bombas nucleares sobre pessoas, para nada. São os únicos que iniciam os jogos que podem ter implicações nucleares para o mundo todo, irresponsavelmente. Não é puerilidade, é senilidade.

Epistemologia da não significação. Ética protestante e capitalismo…

A academia não me surpreende e isso deve-se mais a ter a surpresa como item raro nas ementas que se servem. Esclarecido, portanto, que não se deve à incapacidade da academia.

Fato é que ainda discutem o que não leram e afinal não perceberam. E cultivam certas coisas somente como objetos de museologia científica, como objetos de um tributo a ser necessariamente prestado.

Ética é um nome para codificação normativa; um nome, afinal, como qualquer outro, pois servem código, diploma, lei, decreto e muitos mais. Isto, digo-o sem ofender o alemão que relacionou ética protestante com capitalismo, porque isto disse-o ele.

Esta ligação entre ética protestante e capitalismo é como uma reivindicação pela reforma – talvez mais precisamente pelo calvinismo – da invenção da máquina a vapor. Justa reivindicação, na medida em que se limite a argumentar com o tempo cronológico e com o espaço geográfico físico.

Para mais que isso, quer dizer nada ou quase nada. Não há, como parece emergir da obra tão fincada no seu tempo de nascimento, relação de necessidade entre a ética e o espírito, substantivos merecedores dos adjetivos marcantes.

Curioso é que, hoje, afirme-se a relação intrínseca entre os adjetivos, mesmo que tenhamos toda a Ásia a desmentir esta superficialidade. Esta imensa e pujante Ásia tem um adjetivo na ausência do outro.

O capitalismo floresceu e floresce na Ásia sem o adubo que se acreditava inseparável: a ética calvinista. Escândalo supremo para quem se ponha a pensar, mas um nada silencioso de repetição para tantos acadêmicos que repetem o alemão sem terem percebido seu caráter de propaganda e de preso do tempo.

O capitalismo, em verdade, não precisa de ética, neste sentido meio piedoso, vulgar e pequeno burguês que se emprestou ao termo. Ele vive melhor na ausência de qualquer codificação para ele, embora não viva bem na ausência de alguma codificação para disciplinar o povo, qualquer que seja.

Extraordinário é ver que presunção – ou ingenuidade – conduziu o cientista social que quis ver a relação necessária entre ética calvinista e o florescimento do espírito – geist – capitalista. Primeiro, ele estabelece data de nascimento do capitalismo, como se acumulação fosse algo de ontem ou antes de ontem.

Segundo, põe-se como profeta a dizer que a morte de um seria a do outro, ou seja, ele fala para o futuro sem perceber o presente, porque a Ásia de hoje estava na de ontem, bastando-lhe livrar-se dos ingleses.

Estar com a chuva, com o frio, com o vento e com saudades que se tornam adultas.

Muito estranhamente, não havia tido ocasião de perceber que o guarda-chuvas é um aerofólio perfeitamente submetido às leis de Bernoulli.

A sorte ou a natureza pouparam-me estranhamente em ocasiões anteriores que me podiam ter feito lembrar o princípio baptizado com o nome deste francês ou suíço, matemático ou físico, que enunciou aquilo que faria voar os aviões e funcionar os carburadores.

Em certas condições – que não cabem aqui enunciar, nem estariam nas minhas capacidades – um fluido a movimentar-se mais rapidamente numa face dum plano implica pressão menor que na face de menor velocidade de deslocação.

Ontem, percebi que um guarda-chuvas é aerofólio tanto quanto a asa de avião. A pressão embaixo é maior que em cima, porque o vento em cima flui mais rápido. Daí que eles se põem pelo avesso, empenam os raios e perdem-se definitivamente.

O raro é que em sete, oito, nove, sei lá, dez vezes que me expus à chuva e vento constantes, diários, isso não tenha ocorrido. Pois ocorreu ontem e achei-me a rir, mesmo que ficasse encharcado de água fria. Só podia ter-se dado em Braga, comigo.

O engraçado é que a cena é comuníssima, mas a mim nunca ocorrera, certamente por favor dos deuses, que não me queriam rapidamente experimentado nas coisas mais comuns.

Há tempo, eles já me haviam levado ao chão, numa queda patética, depois de escorregar numa laranja, mas pouparam-me do mais comum, que devia acontecer depois. Não ouso questionar as razões deles.

Seria mais tolo que sou se achasse que fevereiro seria sem chuva e sem ventos. Tolo a ponto de não conseguir emendar três palavras seria se supusesse não estar frio. Nessas tolices não incorri.

Precisava encharcar as pernas dos joelhos para baixo, e inclusive os pés, daquela água gélida que impregna as calças e as meias como um aerosol lento. Dá uma impaciência tremenda, obriga a caminhar de cabeça baixa, a cuidar de não meter o guarda-chuvas na cara das pessoas que cruzam.

O verão de agosto não me traria aqui, exceto se por alguma obrigação ou premência. Nem me traria, nem se me trouxesse seria mais agradável que esse desagradável molhar-se e demorar-se a secar.

Isso tem nome em português: saudades. Mas, elas se foram tornando mais maduras e mais puramente saudades que necessidades. A primeira vez que se atende e sucumbe à necessidade, é o mergulho na confusão de sensações que aparentemente catalisam-se em euforia. As saudades imediatas são necessidades, paixões.

Amadurecem e- e convém dizer que o amadurecimento das saudades nada tem com o do saudoso – a perder o caráter duma paixão que sofre o afastamento. Solidifica-se como tudo que do quente passa ao frio.

O amadurecimento começa por revelar-se nos detalhes e as saudades fracionam-se, ficam detalhistas, específicas, exigentes mais de algumas coisas e mais frouxas com outras.

Maduras não são tristes como são as recentes, as apaixonadas. Sempre permanecem algo felinas, naquilo de ir ali e acolá para ver se certos lugares estão da mesma forma. Isso é praticamente invencível, não é poético, não é mais a esta altura melancólico; isto é, simplesmente.

 As apaixonadas, recentes, matam-se em dias poucos. As mais distantes em dias poucos confundem. Não se sabe se os dias são poucos, suficientes ou muitos. O caso é particular e leva a crer que há saudades compostas, que talvez haja experiências compostas de mais de uma saudade individual.

Não faltavam apenas conversas com interlocutores tão inteligentes como estimados, Braga, chuva, frio e vento e as pedras do chão. Faltava talvez experimentar essa revisita com ausência velha e nova que deram saudades futuras; peço desculpas pelo paradoxo, mas haverá quem o perceba na sua total extensão.

Os tempos de maturação das percepções são quase todos diferentes, embora o subjetivismo de superfície se esforce para convencer do contrário. Há que se esforçar contra a superficialidade para que as saudades não se tornem na componente de uma personagem.

Esse texto é para ser compreendido.

O jantar de Dilma em Lisboa e a mediocridade ativa da classe média brasileira.

Carlos Lacerda, que sabia ler e escrever bem, estaria entre encantado e estarrecido com os seus atuais rebentos. Encantado, porque a classe média alta brasileira é-lhe à imagem e semelhança no que diz respeito ao moralismo oportunista e à tenacidade anti governista, sempre que se tratar de governo que aumenta o preço dos escravos.

Estarrecido ficaria ao perceber que sua descendência é bastarda no que diz respeito ao nível intelectual. É preciso alguma inteligência e alguma cultura para ser de qualquer lado ativamente, sob pena de repugnar tanto à direita, quanto à esquerda que se alfabetizaram. Da mesma forma, é preciso não ser estúpido para ser ladrão…

Vamos às circunstâncias que deram ao prototípico brasileiro de classe média alta a oportunidade para reproduzir o que a imprensa disse-lhe e achar que pensara por si : a Presidência da República Brasileira tem um avião para os deslocamentos do chefe de Estado. Este avião não tem autonomia para cumprir a rota que vai de Genebra a Havana. A presidente Dilma estava em Davos, na Suiça, para o encontro do grande capital, e ia a Havana, para o encontro dos países sul-americanos.

Esse deslocamento implicava uma paragem. Ela foi feita em Lisboa, o que é mais que óbvio em todo vôo de longo curso que cruzará o Atlântico. Chegada em Lisboa, a comitiva brasileira pernoitaria e sairia no dia seguinte, como aconteceu.

Eis que a histeria propagou-se relativamente aos preços das hospedagens, porque a comitiva da presidente passou a noite em hotel de cinco estrelas, em Lisboa. Qualquer pessoa que não tenha empenhado seus lobos frontais na casa de penhor do fascismo brasileiro sabe que isso é um nada. Qualquer um – e são poucos – dos médio classistas que tenha memória sabe que os presidentes não se hospedaram em pensões no andar de cima de uma casa de fados na Mouraria.

A histeria, por lógica, permite concluir que os histéricos nem têm memória, nem sabem o que é um presidente da república. Além dessas ignorâncias, os histéricos revelam sua vontade íntima de agredir uma governante que cometeu crime: agiu marginalmente a favor dos sempre escravizados, e nada mais.

O lacerdismo mal alfabetizado atinge preferencialmente uma camada social composta de gente que ignora o conflito de interesses – embora acuse no governante que não lhe agrada coisas que consente em si.

A gente que se escandaliza com os preços das diárias dos hotéis em que a presidente hospeda-se gostaria de neles se instalar à custa do Estado, desde que ninguém soubesse. Gostaria de neles se instalar recebendo diárias mesmo no gozo de férias, como fez um campeão da moralidade nacional.

A gente que fez do preço da diária de hotel da presidente da república um assunto recebe descontos na aquisição de automóveis por conta dos cargos que exerce na função pública. Essa gente, quando exerce a profissão médica, aceita prendinhas de viagens à custa de indústrias dos produtos que constarão de suas prescrições.

Essa gente vende-se a acreditar não se ter vendido, o que é atentado duplo contra a honra. Ora, aprendemos que não convém nos vendermos, mas que, se o fizermos, convém entregarmos. O pessoal da classe média alta brasileira vende-se e faz-de-conta que se não vendeu.

O duplo da desonra é vender-se e não entregar. Mas, aí, se for para um alto médio classista brasileiro perceber, é demais…

Espaguete com tomates, manjericão e brie.

Sou carnívoro. Mas, a necessidade de variar o paladar, o clima e o fato de que há muitas outras coisas boas além de carnes, levaram-me a pensar uma massa para este quente e seco domingo. E devia ser massa leve, sem carnes no molho.

Os tomates e as folhas de manjericão casam-se tão bem quanto os jovens apaixonados do século XIX, da mesma classe social. O azeite reduz atritos deste matrimônio e a pimenta moída não consegue devolver todo o atrito reduzido pelo azeite. Então, todos estarão presentes.

Era necessário um queijo, para isto tudo ficar um pouco menos vegetariano e ter o sabor que as proteínas animais têm consigo. O óbvio era mussarela de búfala, fresca e ainda muito gordurosa. Todavia, optei por um brie, porque duas vantagens teria: um sabor tantinho mais pronunciado e porque derrete-se mais facilmente e torna as coisas mais untuosas.

Enfim, tomei uma caçarola grande, de fundo grosso de aço, enchi-a quase até às bordas de água, e fogo até levantar fervura. O espaguete seria cozido primeiramente, porque o molho era coisa simplíssima e ainda por outra razão que explico a seguir. Espaguete, convém que seja de bom trigo e, nisso, tudo está resolvido com qualquer desses italianos, mesmo de grandes marcas e comuns, como Barilla.

Sete minutos de cocção a partir da fervura, com punhado de sal e fios de azeite, e o espaguete estava pronto, no ponto certo, meio durinho e solto. Escorre-se o espaguete e deixa-se reservado. Relutei em confessar pequena heresia, mas, afinal, confesso-a: cortei o espaguete a faca, tornando os feixes a metade do seu original. Isso facilitaria a parte final.

Na mesma grande caçarola que cozeu o espaguete – agora vazia e seca da água – pus nove colheres de sopa de azeite e duas de vinagre balsâmico. Não falei acima do vinagre balsâmico porque a idéia ocorreu-me no momento em que deitava o azeite. A narrativa segue a cronologia do preparo, na media do possível e no limite das contradições… Temi pelo acréscimo desse pouco de vinagre, mas ao final resultou bem.

Deixei na caçarola o azeite, o vinagre balsâmico, pimenta moída, um pouquito de sal, e quatro dentes de alho fatiados em pequenas lâminas. Isso ficou na caçarola uns vinte ou trinta minutos, enquanto cortava os tomates e retirava as folhas do raminho de manjericão.

Acendi o fogo no mais elevado e não deixei de mexer um momento. Estava em jogo reduzir um pouco o azeite misturado ao vinagre balsâmico e deixar o alho soltar sua natureza álhea, o que faz melhor quando toma calor no azeite esquentando com ele e não chegando a fritar. São coisas bem diversas por alho no azeite quentíssimo e esquentar alho e azeite ao mesmo tempo.

Isso de azeite, vinagre balsâmico, alho e pimenta moída foi mexido por dois minutos, no máximo, e a seguir deitei os tomates. Devo dizer que não cortei os tomates em cubinhos muito pequeninos, como é de meu hábito. Cortei-os em pedaços rectangulares, de mais ou menos três centímetros por meio centímetro. Não queria ser perguntado por que este formato, apenas sei que os queria maiores que os cubinhos.

Nessa altura em que entram os tomates, não se deve parar de mexer, de saltear, nem um minuto. Nem se deve tampar a caçarola. Pouco depois que os tomates começam a deitar sua água, põem-se as folhas de manjericão, sempre revirando tudo. Passados, uns cinco minutos disso de mexer tomates que se vão escurecendo pela influência do pouco de vinagre balsâmico, deitam-se os pedaços de queijo brie.

Pouquinho tempo, coisa de dez, vinte segundos após a queda dos cubos de brie nesta mistura quentíssima, deita-se o espaguete que, como disse não sem alguma vergonha, havia sido partido ao meio. Agora é saltear, com colher de pau grande. Saltear é fazer saltar e misturar-se e não deixar pegar ao fundo e às bordas da caçarola quente, é mais que mexer.

É claro que se tivesse uma frigideira grande o suficiente teria salteado nela. E digo isso para não escandalizar nem induzir a suposição de ignorância muito grande que pode insinuar-se no improvável leitor que cozinhe. Saltear numa caçarola não é tanto impossível quanto difícil…

Dois minutos depois, põe-se nos pratos e come-se. Mesmo com temperatura muito alta, um tinto com pouca madeira e bem fresco é melhor que cerveja para acompanhar esta massa. Qualquer chileno de uvas Carmenère que não tenha feito estágio em carvalhos franceses e norte-americanos por mais de seis meses acompanha bem. Esses têm mais vivacidade e frutas que madeira e fumo.

O rolezinho, os novos-ricos, os novos-pobres e a demofobia.

O maior risco de ensinar por meio de exemplos é ter êxito…

A vacuidade, os maus modos, a forma atabalhoada de estar, o ser barulhento e a busca incessante da redenção no consumo foram diligentemente ensinados às massas, independentemente de suas classes sociais. Óbvio que cada classe age segundo seus interesses e que adota uma estética própria, o que é meio de identificação externa.

As partes mais aquinhoadas financeiramente das massas erigiram o centro comercial – shopping center, na nossa abissal caipirice – em mais que templo. Tornaram-se os espaços privilegiados porque seguros e plenos de um grupo mais ou menos uniforme socialmente. Fica claro que essa essência de segurança baseia-se pura e simplesmente na segregação por classe, o que revela a identificação dominante de pobreza com criminalidade.

Insegura da eficácia do discurso gerador da crença nos lugares adequados, ou seja, insegura de que os pobres saberiam reservar-se aos seus espaços exclusivos, as classes mais altas cuidaram de resguardar suas áreas de convívio de algumas maneiras. A mais evidente é geográfica e com dificuldade de acesso: os centros de compra são erigidos em locais cujo acesso ideal dá-se por automóvel, por exemplo.

Outra estratégia de resguardo passa pela estética, por signos que levam o diferente a perceber-se inadequado e envergonhar-se. Isso ainda é resquício de fases mais sofisticadas de exclusão, fases bem caracterizadas pela expressão pobre que sabe o seu lugar. Assim, o excluído é que cuida de excluir-se, posto que a crença na inabalável diferença solidificou-se nele.

Ocorre que a sedução consumista fincou raízes profundas e afastou as barreiras físicas e a aceitação das crenças. Jovens de periferia inundaram centros de compras reservados à classe alta e expuseram aberta e francamente sua estética. Isso assustou a clientela preferencial, que viu nos episódios dos rolezinhos algo semelhante aos famosos arrastões, embora de criminalidade não se trate.

O que escandaliza, deixando eufemismos de lado, é a predominância da pele escura, uma estética dos trajes, do falar, da gestualística diferentes das marcas de pertencimento dos frequentadores habituais. Não é mais feio nem mais bonito que a estética da classe alta, mas é diferente.

É demofobia, sem mais nem menos. Mas, ela precisa esconder-se e lançar mão do discurso do medo da violência, ainda que não tenha havido mais violência que a comumente produzida pelos adolescentes de classe alta.

Dizem que esses espaços são privados e que, por isso, é legítima a discriminação e o impedimento da entrada dos jovens das periferias. Inclusive, essa variante nova do apartheid foi confirmada judicialmente, em São Paulo, o que está longe de surpreender quando se sabe para quem trabalha o poder judicial. Todavia, não se cuida de espaços meramente privados, na medida em que os centros de compras são espécies de sucessores das praças públicas.

Não é aplicável ao centro de compras a lógica própria de um condomínio residencial, em que os donos escolhem quem entra e quem não, porque o critério de discriminação que pretendem aplicar aos centros comerciais não é lícito e a clientela a ser admitida não é composta de condôminos do espaço comercial.

Todavia, aqui aparece algo bem revelador: o grupo dos clientes a serem admitidos age como se fossem condôminos, como se fossem os donos dos centros de compras e assim legitimados a exigirem a obstrução aos que não se incluem na categoria dos proprietários do espaço. Da mesma forma essa classe dominante age relativamente aos espaços inteiramente e conceitualmente públicos, mantidos pelo Estado.

Enfim, o escândalo com os rolezinhos dos jovens da periferia é resultante da mistura de duas coisas muito antigas: demofobia e patrimonialismo.

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