Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 12 of 126)

A excitação permanente das massas.

Sou homem, nada de humano me é estranho.

Públio Terêncio Afro

O grande número é mantido em estado de permanente suspensão e excitação mental, por uma sucessão de fatos escandalizados, dramatizados, pintados em preto sobre fundo branco. Assim mantido por obra mediática, ao contrário de melhorar sua instrução e sua capacidade de ajuizar, torna-se num grupo intelectualmente zumbi.

O típico homem massa vê no mínimo um crime dito bárbaro por dia, na TV e nos jornais baratos que só falam de crimes e de futebol. O alimento da sua histeria é farto e sua contínua digestão nutre o tensionamento constante de suas fibras nervosas. O homem massa vive tenso, escandalizado, histérico.

Brutalmente insincero, diz não entender como as coisas podem passar-se assim ou assado, notadamente quando se cuida de algum crime dos que violam mais que as leis, seja pela violência quase ritual, seja pela relação da vítima com o agressor. Ora, dizer-se incapaz de compreender alguma ação humana é por-se como extra humano ou infra humano, o que é falso.

Tudo de humano é cognoscível para um ser humano. Demanda algum esforço, claro, e saber que potencialmente todos são iguais. Há quem se contenha mais ou menos, que se conheça mais ou menos, eis as diferenças.

A ira, essa energia fortíssima, é objeto de dezenas de milênios de esforços humanos de contenção. Todas as codificações sociais e jurídicas visaram a conter-lhe a explosão. Tarefa exitosa, posto que reduziu muito as oportunidades de explosão, basicamente com a ameaça da exclusão. Mas, a ira em estado puro emerge sem quaisquer considerações prévias, sem ponderações de custos e benefícios. É energia pura.

A forma de obter antídoto ao tétano é clássica. Inoculam-se os cavalos com pequenas e constantes doses e, com pouco, tem-se os anticorpos no sangue do cavalo.

A forma de embrutecer grandes grupos e torna-los incapazes de julgamento e permanentemente imersos numa histeria escandalizada é semelhante. Rações de diárias de informações dramatizadas e desarticuladas; ensinamento diário de que não é possível compreender certas coisas, como se a obras dos homens não fossem humanas.

As contas para o golpe de Estado.

Essa deve ser a última tentativa de golpe de Estado, no Brasil, com forte apoio institucional dos Estados Unidos da América. Não creio que em quatro ou mais anos à frente possam empenhar esforços a ajudar seus empregados aqui, notadamente na imprensa, partidos políticos e judiciário. Exatamente por isso, será a mais feroz, talvez mais que a de 1954 contra Getúlio Vargas.

Não creio que a democracia resista. A pequena burguesia está totalmente cooptada pelo discurso mediático: parcial, superficial, moralista, histérico. Sob medida, enfim, para seduzir a camada pior de toda e qualquer sociedade: a classe média média. As classes baixas não tendem o que acontece e preocupam-se em pagar suas dívidas. As classes altas esperam para ver o que virá; quase sempre ganham…

O motivo é o de sempre: petróleo e Petrobrás; reservas e a empresa que detém o conhecimento da extração em águas profundas. Enquanto a empresa manteve-se relativamente pequena e não anunciou as reservas, a predação foi pequena. Depois que se tornou evidente a existência abundante de petróleo no Brasil e a Petrobrás ganhou tamanho, o entreguismo visou-a diretamente. Já o farsante Fernando Henrique Cardoso empreendeu a primeira tentativa de entregá-la, sem sucesso, contudo. Não houve tempo suficiente.

O golpe interessa a muitos e beneficia a poucos, algo que geralmente só se percebe ao depois e faz rir quem vê tantos escravos empenhados em se autoagrilhoar. A estrutura é nitidamente hierarquizada e dividida entre idealizadores e executores. Idealizadores são bancos, petroleiras, indústria bélica, farmacêutica, enfim, o grande capital articulado no esquema da propriedade cruzada.

Abaixo, vêm os sistemas institucionais públicos e privados. Abaixo do capital grande, o governo dos Estados Unidos da América e seus satélites não governamentais, que atuam para irrigar de dinheiro os subsistemas locais. Localmente, a burocracia judiciária, a imprensa e partidos políticos são agentes da desestabilização.

Os empregados locais, à exceção dos que desempenham funções políticas, fazem poucos cálculos e trabalham quase de graça, movidos, a maioria, apenas por inércia. O discurso da imprensa os embala e os leva até a ser contra si mesmos. Os funcionários públicos a serviço do golpe podem, em sua larga maioria, ser postos neste grupo dos suicidas involuntários, movidos pelo narcisismo, ignorância e vontade de servir a qualquer coisa que não seja o próprio país.

Para o grande capital, quanto mais rápido for o golpe de Estado, melhor. Quanto mais rápido puserem as mãos no petróleo e na Petrobrás, melhor. O problema é que parte dos agentes locais do golpe tem mais contas a fazer. Os parlamentares, especialmente, têm muitas contas a fazer no que se refere ao tempo exato da ação.

Esse problema do tempo deve-se a dois fatores, basicamente. Se derrubam a presidente antes da metade do mandato, geram eleições em que o derrotado das últimas será franco favorito. Se a derrubam depois da metade, assume o vice-presidente. Ora, os golpistas não são um bloco unido e o poder é muito sedutor, mesmo para quem se dispõe a ser preposto de interesses externos.

Poucos se dispõem a dar o golpe em benefício imediato de outros. Poucos acreditam nas promessas de sucessões, porque todos já mentiram muito e traíram-se reciprocamente várias vezes. O imediatismo decorre do nível de predação em que essa gente atua. Terão de chegar a um acordo para enfim executarem o golpe de Estado na forma político-jurídica.

Outro obstáculo, não ao golpe, mas à sua permanência, é Lula. Para o grande capital, pouco importa que Lula retorne eleito em 2018, depois do golpe, caso tenha acedido ao petróleo e à Petrobrás. Todavia, para os agentes executores locais isso é importantíssimo e não pensam dar um golpe de Estado para ficar no poder por dois anos apenas.

Por isso, tentarão a interdição judicial do Lula, para impedi-lo de disputar eleições em 2018. Quem pense que este jogo segue regras dirá que está minha afirmação é quimérica. Mas, quem pense que há regras, esse sim vive imerso em quimeras. O poder judicial fará o que lhe pedirem a imprensa e os partidos de oposição para dar mais um passo na destruição do Estado de direito. Qualquer pretexto servirá a a experiência da grande farsa da AP 470 provou ser possível encenar qualquer comédia e dar-lhe ares credíveis, com apoio da imprensa.

Se será possível evitar o golpe ou minimizar seus efeitos, não sei dizer. Mas, é condição necessária de qualquer tentativa reconhecer que o golpe de Estado está avançado e é patrocinado internamente pela imprensa e pelo poder judicial.

Dilma e os acordos e escolhas errados.

É inútil pagar a quem recebe e não entrega, bem como celebrar acordos com partes desleais. Há incompatibilidades incontornáveis e nem tudo está disponível para se resolver com dinheiro ou boa vontade e concessões.

A presidente Dilma parece ter-se deixado guiar pela tolice de crer nos acordos. Ordenou ou deixou que se adotassem medidas altamente concentradoras de rendas, a bem de agradar aos mais aquinhoados no Brasil, para que estes recuassem nos seus impiedosos, desmotivados e constantes ataques ao governo.

Eles não recuarão. A única coisa que os faria acalmar-se seria a privatização da Petrobrás, mas não creio que Dilma chegasse ao ponto do crime de lesa-pátria.

Subjacente a muitas parvoíces praticadas está a idéia de que a economia de um país nada mais é que a economia de um lar em escala ampliada. Esta crença, evidentemente muito apreciada – na proporção direta de sua estupidez – leva ao fetiche e histeria da austeridade, assumida como dogma.

Nesse sentido, o governo brasileiro, sem que o país viva qualquer crise relevante, nem cambial, nem fiscal, anunciou aumentos drásticos de impostos sobre a gasolina e o diesel, ao mesmo tempo que aumentou os juros pagos pelos títulos da dívida pública.

Não é preciso ter frequentado os bancos da escola de economia, de engenharia ou de matemática pura por quatro anos para perceber que as medidas visam a aumentar a arrecadação para exatamente pagar mais juros, na outra ponta, a meia dúzia de detentores de títulos.

A piorar, o principal aumento de imposto deu-se sobre a gasolina e o diesel, algo que todos têm que comprar, mesmo que na forma de um pacote de bolachas, porque tudo é transportado por alguma máquina movida a diesel.  Ou seja, o aumento de impostos foi profundamente regressivo, pois atingindo indistintamente a todos, atinge os mais pobres mais intensamente.

Para piorar, a medida foi erroneamente percebida como uma recomposição de preços dos combustíveis derivados do petróleo, como forma de ajudar as contas da Petrobrás que, segundo a imprensa, estariam ruins. Mas não foi isso absolutamente o que ocorreu, porque o aumento dos preços da gasolina e do diesel foi apenas nos impostos.

Além de algo regressivo e destinado a arrecadar para concentrar rendas mediante pagamento de juros a poucos, ainda alimentou o discurso de destruição da Petrobrás.

Os beneficiados com estas formas de retirar do todo para repassar a poucos não terão qualquer gratidão pelo agrado recebido do governo, na medida em que são predadores consumados e se creem merecedores de tudo. Não adianta agradar essa gente e desagradar a quantos escolheram este governo.

Para aumentar a arrecadação por impostos havia várias alternativas menos regressivas e que só desagradariam aos que já estão desagradados e tem raiva atávica do governo que melhorou mais a vida dos mais pobres.

Poderiam ser elevados tributos sobre a importação de espelhinhos, sobre cigarros e bebidas, poderia ser instituído um imposto sobre grandes fortunas, poderiam ser criadas novas faixas de imposto sobre a renda, poderia haver mais rigor nas aduanas. Seria interessante, por exemplo, abrir todas as malas dos passageiros provenientes de Miami…

Isso do parágrafo acima acirraria o ódio de quem já o nutre em doses elevadíssimas. Mas, seria menos ruim que desagradar o grande número e, pior, sem agradar realmente a maioria. O governo precisa conduzir-se com mais inteligência estratégica.

A OTAN empurra a Rússia para o oriente.

Há quem não saiba, quem sabendo não aprenda e quem simplesmente prefira agir irresponsavelmente, sabendo de história ou não. É difícil precisar as inclinações específicas dos líderes da OTAN, dentre estas da tipologia anteriormente afirmada.

A Rússia, em duas ocasiões muito conhecidas, pressionada fechou-se e voltou-se para oriente: quando de Napoleão e quando de Hitler. Não hesitaram em fazer terra arrasada, entregar Moscou em chamas e recuar. Esse recuo mostrou-se fortalecedor, porque eslavizou as ricas estepes.

Independentemente de fetiches financeiros e discursos permeados de terminologia economicista, a Rússia nunca está suficientemente quebrada para ser francamente vulnerável a uma tomada ou a uma integral submissão.

A terceira Roma, a herdeira do império Bizantino, a nação que invoca o estandarte da águia bicéfala, não será reduzida assim simplesmente, principalmente hoje que detém arsenal nuclear. E a OTAN sabe disso!

É um pouco assustadora a irresponsabilidade da manobra que se serviu da Arábia Saudita para forçar uma baixa drástica dos preços do petróleo, com as finalidades de estrangular financeiramente a Rússia, a Venezuela e o Irã. Primeiramente, comprova a qualidade de estado vassalo dos EUA e de Israel que ostenta a Arábia Saudita.

Os sauditas foram comandados a aumentar a produção dos poços antigos por meio da injeção de água salgada altamente pressurizada. Isso é irreversível, porque se o processo estancar o restante do poço fica permanentemente contaminado.

Sempre se soube que o país mais rico em óleo é dos menos aquinhoados com know how do processo de extração e refino do petróleo, pelo que depende totalmente do conhecimento técnico dos estrangeiros. Assim, ficou fácil induzir os sauditas à injeção de água salgada pressurizada nos poços mais antigos para aumentar sua produtividade.

Por outro lado, os EUA reduziram drasticamente sua dependência de hidrocarbonetos importados, em decorrência dos avanços na extração de gás e óleo por meio de fratura hidráulica. Claro que essa mágica cobrará custos imensos em termos ambientais e sanitários, mas isso será problema dos mais pobres, que ficarão na terra arrasada.

Ocorre que esta queda de 40% nos preços, em poucos meses, é absolutamente artificial e não se compreende numa perspectiva de processo lento e contínuo de aumento da produtividade de poços antigos e na abertura de novos. É algo nitidamente especulativo, portanto.

Assim, cuidando-se de movimento estratégico baseado em especulação, as tendências podem inverter-se rapidamente, antes que se atinja o desejado efeito de quebrar a Rússia financeiramente. Aliás, antes disso, podem ocorrer as quebras dos países árabes e a desestabilização integral do médio oriente, algo sempre desejado por Israel.

Convém lembrar que são coisas diferentes um país em que o setor petrolífero é forte e outro em que o setor petrolífero é a única coisa que existe. Uma redução drástica dos preços do óleo quebra um país como o segundo, mas não chega para tanto num dos primeiros.

A Rússia volta-se mais e mais para o oriente, notadamente para a China e para a Índia. E isto, presentemente, envolve alianças estratégicas relativas a vendas maciças de armamentos de alta tecnologia. Além do comércio de alto volume, essas transferências solidificam relações.

Não é de todo improvável que o comércio trilateral entre Rússia, Índia e China abandone a intermediação do dólar norte-americano na liquidação das transações comerciais. É dificílimo prever se e quando isto ocorrerá, mas os indícios são fortíssimos para serem desprezados.

Vistas as coisas por este lado e lembrando que estes três países são grandes credores líquidos dos EUA, percebe-se o quão arriscada é a manobra da finança mundial – que tem a OTAN a soldo – contra a Rússia. Os credores podem, com relativa facilidade, induzir desvalorização ou valorização do dólar abruptamente e com efeitos devastadores, em qualquer sentido que vá o movimento.

 Caso vendam suas promissórias norte americanas maciçamente, o dólar cairá subitamente, causando um empobrecimento drástico num já pobre EUA, com efeitos sociais terríveis e provavelmente com grandes agitações de massas. No sentido inverso, caso entesourem mais, a valorização do dólar tornará o mais deficitário país do mundo ainda mais comprador…

Ou seja, esta investida contra a Rússia é de tal irresponsabilidade que somente pode provir de mentes apostadores no quanto pior melhor, na guerra nuclear localizada e controlada, no extermínio de 1/3 da população mundial e coisas deste jaez.

O mito da igualdade é essencial à manutenção da desigualdade.

Talvez mais preciso fora ter dito, no título, essencial à não percepção da desigualdade, o que é muito confortável para a maioria. Mas, é óbvio que se celebra a igualdade como se sacrificam os filhos ao Legislador dos pobres do deserto ou a Ártemis, para a boa consciência ou para ter bons ventos guerreiros.

Esta igualdade primeva, cantada como axioma fundador dos preconceitos religiosos mediterrâneos e, muito depois, do liberalismo, é a base sólida sobre que se constroem desigualdades cada vez mais profundas. Aqui, refiro-me às econômicas, sociais e de gênero, ademais de outras históricas menos destacadas.

A igualdade cantada hoje é caricatura do que se recebeu de Atenas. A original era clara, não terna, não natural, histórica. Era igualdade política de 10% da população, nada mais. Assim, é algo que se compreenda: a igualdade dos aristocratas que matavam e saqueavam, mas precisavam ter as coisas em bons termos entre si.

Naturalizada pelo cristianismo e pelas revoluções burguesas, torna-se em monstro negador da história, a bem de perpetuar um estado muito histórico. A igualdade natural, essa nunca se percebeu bem, nem foi festejada, por mais evidente que seja ela entre preto, branco, amarelo, quando se mergulha a rasas profundidades suficientes para descer abaixo da primeira camada melaninizada.

A naturalização da igualdade é partir de um dado para inserir nele axiologias disfarçadas. O valor é o mérito – o substituto no vulgo para a graça – que permite a certos indivíduos triunfarem sobre outros. Sendo todos iguais, o triunfante vence por seus esforços, que seriam possíveis também para os perdedores. Daí que da igualdade, explica-se a desigualdade.

Profunda desonestidade intelectual, esta tão sólida no pensamento dominante. Extrair justificativas para resultantes de processos históricos em algo natural e, pior, inicialmente igual naturalmente, é misturar água e vinho e perder ambos. Na história, não há igualdade.

A democracia burguesa avançou tanto no seu fetiche que passou a impor opressão desnecessária a elementos que não a punham em risco. A tal igualdade natural evoluiu da explicação da perda pela preguiça para um motivo de esquecimento da existência de vulgo e excelência. Esta diferença, advirta-se, não é nem poderia ser razão para que uns e outros sejam considerados merecedores de perecimento. Ela é.

Nisso há igualdade e há democracia; e elas são vigorosas, estão nos pobres e nos ricos, nos poderosos sem dinheiro e naqueles com dinheiro, nos subjugados, enfim, em todos os grupos que se separem por critérios econômicos e sociais. A maioria – independente de mais ou menos dinheiro e poder – é profundamente vulgar e ignora duas coisas: dignidade e delicadeza.

Embora raras, essas qualidades existem. Porém o vulgo, seja banqueiro ou mendigo, toma a raridade pela inexistência e não as vê. Ou, entrevendo-as, faz de tudo para bani-las como indesejáveis que são, acusadoras de sua vulgaridade, causadoras de inquietações, como inquietantes são todos os sinais de que algo melhor era possível.

Os chineses não esbracejam à toa.

Nós, filhos da cultura mediterrânea, e os anglo-saxões, filhos bastardos desta com um amante moralista, acreditamos na persuasão. Este é o núcleo do nosso agir, não a justiça ou a equidade, como se diz e se parece acreditar. Nada disso. O centro da nossa forma de estar é o tentar convencer numa disputa.

 No início, parecia ser a diversão de 400 a viverem das minas de prata e do trabalho de estrangeiros sem cidadania. Uma bela diversão, convenhamos, esta de conversar e acreditar plenamente na autonomia do discurso, acreditar-se, enfim, criadores. Política como ocupação da classe dominante segura de si gerou o endeusamento do discurso.

Claro, havia, como há, os períodos de trabalho, ou seja, de guerra. Intervalos de esforços que afastavam a aristocracia de sua diversão conversadora.  Dessas coisas, uma foi-nos legada: a terrível herança da lógica da persuasão, do discurso, do convencimento, do logos. O legado da aristocracia guerreira perdeu-se…

Essa gente que gesticula inutilmente não compreende o que é a China e seus braços quietos, tão quietos quanto as entonações de voz e suas falas mansas e monótonas. Realmente, a gesticulação, assessório da fala, é-nos muito própria e cara, a nós que acreditamos no discurso enfático, com todas as nuances e variações estilísticas que seduzem gerações e dão ensejos a quilômetros de papéis escritos em honra e dissecação desta coisa maravilhosa: a retórica.

Pois bem, a retórica, se há na China, como culto divino com altares em todas as esquinas, não é como a conhecemos por aqui. Talvez isto não seja um luxo, como a princípio pode parecer, por lembrar divertimento de ociosos. Talvez seja precisamente o contrário, ou seja, um signo de pobreza, de sociedades que se reuniram em torno a um cereal caro como o trigo. Ora, reunir-se em torno ao caro é pobreza a dar na vista.

Os que se uniram a comer arroz fizeram-no por duas razões: necessidade e inteligência. Ora, fazer as coisas por necessidade, para aplacar as necessidades, racionalmente, superando a humanidade, ou seja, o desejo de matar e morrer, é algo de extrema riqueza. E mais rico ainda é fazê-lo sem por o discurso persuasivo como o lugar preponderante. Não há tempo e espaço para as duas coisas simultâneas.

Mantivemos essa nossa lógica de tribunal, que nada tem a ver com justiça, pois convencer não é questão de justiça, e deixamos de fazer as guerras para que a aristocracia pudesse morrer e ter assim o que prantear em altares domésticos. Mandamos morrer os lacaios, os cidadãos de terceira classe, os mercenários…

Veremos os chineses no protagonismo econômico total sem compreender o que acontece, sem os compreender absolutamente e, pior, sem aceitarmos o fato. E continuaremos a tentar convencê-los por meio de discursos tão inúteis quanto os gestos que os acompanham.

Oferecem um pourboire a Pepe Mujica.

Romae omnia venalia sunt.

Salústio

 

Em Roma tudo está à venda, dizia-se. Um tremendo erro, porque muito ou quase tudo não é tudo. Exatamente por não haver essa coincidência total, é necessário postulá-la, como verdade absoluta, inescapável e válida em toda parte. O surto moralista de Salústio, indignação sincera, serviu bem aos que tudo compram e aos que tudo vendem.

O grande problema das estruturas de poder concentrado e a servir-se da massificação como meio de domínio é precisamente que nem tudo está à venda. Daí que é preciso submeter os recalcitrantes, aqueles que resistem como forma espontânea de estar no mundo, porque não sabem ser diversamente.

Dá-se que o Presidente do Uruguai é um homem simples, inteligente, culto, adepto da redistribuição de riquezas, austero na vida pessoal, fora de moda, avesso ao fausto, avesso à cerimônia, relativamente pobre materialmente. E fez um bom governo.

Era preciso que um tipo humano assim fosse cooptado, mais que derrotado eleitoralmente. Porque cooptado torna-se não perigoso e totalmente à mercê da manipulação. Da forma que é, presentemente, Mujica é quase invulnerável, porque todo autêntico e coerente.

Não há fotos suas a jantar no Tour D´Argent, escondido, a trair e contrariar a austeridade que se lhe associa. Não há passeios toscanos em Ferraris de último tipo, a levantar a contradição e o embuste que seria o seu VW Fusca de 1987. Não há contas bancárias na Suíça nem em Luxemburgo, a traírem a imagem de homem apenas remediado.

Se essas coisas houvesse, estaria tudo bem, Mujica seria um refém, seu discurso um embuste, sua vida uma farsa. Mas, o homem não cabe nas caixas disponíveis para a compreensão massificada rotulada. E, pior, não é um fingidor, não é poeta.

Pois bem, Mujica desloca-se num Volkswagen Fusca, ano 1987, azul. Um carro velho, comum e que vale nada. Ele não usa este carro para chamar atenção, ele simplesmente não dá qualquer importância a carros, pois se desse poderia ter outro, mais novo, mais tecnológico, mais possante.

Não é possível, numa sociedade massificada, que um presidente da república use um fusca 1987 para seu transporte, exceto se for propositadamente para criar uma mitologia. Se for sinceramente, como Bergoglio usava um Renault mais velho ainda, é algo a ser trazido para o âmbito da excentricidade, para que seja compreendido pelas massas como uma farsa simpática.

Eis que um milionário árabe dispõe-se a fazer o papel que dele se espera. Como milionário embrutecido que é, fazedor de coleções, presta-se a oferecer um milhão de dólares norte-americanos pelo carro velho de Mujica, que não vale mais que um mil dólares.

Isso é coisa própria de guitarras ou carros de astros de bandas de rock. De roupas de artistas de cinema ou de TV. De qualquer coisa de celebridades. Isso de se colecionarem irrelevâncias porque pertenceram a um certo fulano qualquer, célebre por algo que ninguém percebe ou todos percebem bem. Algo do território do despudor e da sociedade do espetáculo, que nivela tudo ao colecionável.

Aparentemente, Mujica respondeu à oferta dizendo que iria pensar a respeito. Diz-se que ele teria afirmado que se vendesse o carro sem valor pelo milhão de dólares doaria o dinheiro para a construção de casas. Espero que tudo seja falso ou que, sendo verdadeiro, Mujica tenha tempo de recuar na aceitação do pourboire.

Não se vende algo de U$ 1000 por U$ 1.000.000. Uma transação assim não faz do comprador um parvo; faz do vendedor um clown vendido. Receber um milhão de dólares pelo que vale nada faria de Mujica um sujeito cuja trajetória esvaiu-se num segundo. Pouco importa que dê o dinheiro para as casas dos pobres, para o Banco do Uruguai ou para um fundo de proteção das missões.

Não é suborno no sentido clássico do termo, evidentemente. É muito pior: a troca da dignidade por uma oferta a princípio incompreensível, a redução do extraordinário ao comum; a entrada na massa do homem que estava fora dela.

Mensalão: a ruína de uma farsa.

Um tribunal de segunda instância de Bolonha desnudou completamente uma farsa judiciário-mediática que comoveu a pequena burguesia brasileira por três anos. Arrisco-me a afirmar ter sido a maior de todas, a mais perversa, a mais celebrada farsa com finalidades políticas já produzida no Brasil.

Um dos réus da ação penal 470 – o tal mensalão – foi absolutamente genial: Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil. Ele é cidadão italiano, além de brasileiro, e escapou do linchamento judiciário para a Itália, lá entrando com o passaporte do falecido irmão. Creio que cometeu este pequeno ilícito propositalmente, o que demanda julgamento dele lá.

O interessante é que os partícipes da farsa insistiram para o Estado brasileiro pedir a extradição de Pizzolato, para cumprir a pena que se lhe impôs no juízo de exceção patrocinado pelo supremo tribunal federal. Melhor, para quem queria que a coisa se mantivesse com a aura de restauração da bondade, era não ter feito isso…

O pedido de extradição de um nacional demanda apreciação judicial dos aspectos formais do processo criminal no outro país. Não implica, é verdade, que se entre no mérito do julgamento, desde que se trate de crimes previstos nos dois países. Todavia, verificar a regularidade formal do julgamento foi o que bastou para negarem a extradição de Pizzolato, porque muitas e muito básicas garantias fundamentais foram violadas na farsa.

Verificou-se o que muitos diziam, mas poucos acreditavam, porque a imprensa bombardeou o público diariamente com a noção de que se praticava o maior ato de justiça da história do Brasil. Criou uma comoção moralista que arrastou a classe média a delírios fremitosos de satisfação com o linchamento que se chama julgamento.

O tribunal de Bolonha observou que: não houve duplo grau de jurisdição; houve ocultação de provas favoráveis ao réu, mantidas sigilosas em inquérito paralelo.

São duas violações gravíssimas, a revelarem a aberração que é o estado mental das pessoas que tiveram a idéia e a levaram adiante. Qualquer encenação em que se suprima o duplo grau e se escondam provas favoráveis aos réus é tudo, menos um julgamento.

Esta farsa foi montada visando a dois objetivos principais: primeiramente, afastar o valoroso José Dirceu da vida pública, encarcerando-o e privando-o de direitos políticos injustamente; o segundo, criar um escândalo de grandes proporções e alto conteúdo dramático, a ser explorado pela mafiosa imprensa brasileira contra o governo atual.

Inicialmente, os dois objetivos pareceram plenamente atingidos. Mas, o fascismo moralizante despertado com o linchamento não foi suficiente para evitar a vitória da Presidente Dilma nas recentes eleições, o que era o grande fim visado.

Terrível, nisto tudo, é perceber o nível de vale-tudo a que chegou a parcela fascista da direita brasileira, que serviu-se da imprensa e do maior tribunal do pais para encenar uma farsa imensa, mesmo que isso levasse, depois, ao descrédito dessas instituições, ao menos nas pessoas mais informadas e capazes de pensarem com as próprias cabeça.

Compro, logo existo.

A proposição cartesiana, a estabelecer relação causal entre pensar e existir, sempre me pareceu alguma ironia, porque não me permito achar Descartes tolo. Acresce que ela é perfeitamente inversível, pois existo, logo penso, faz também sentido, à partida e sob perspectiva lógica formal.

Descartes era muito antropocêntrico, como seu século, e assim toda sua ontologia. Soa meio infantil, mas é inegavelmente uma proposição direta e servível. Ele não cogitava do fim da história, isto é certo…

Fato é que experimento mais uma das boas visitas à terra dos que se lançaram ao mar, há quinhentos anos, e se entregaram ao decadentismo mais lento e constante já visto. Não uso desta oportunidade para falar das minhas impressões, que não mudaram substancialmente.

Não venho com este texto para comentar alguma beleza, alguma sutileza percebida, alguma coisa interessante ou original. Isto aqui tem a ver com deselegância, brutalidade, novo-riquismo. Tem a ver, portanto, com a classe média alta e alta brasileiras. Elas são piores fora do Brasil que nele, o que inicialmente soa contraditório.

Fora, estão mais à vontade e não conseguem evitar o destaque, por contraste ao que circunda. Não é uma questão de ser percebido por características étnicas ou pelos trajos. Essas coisas estão já bastante baralhadas e, relativamente aos trajos, a classe dominante viajante brasileira é vanguarda, ou seja, aquilo que está a um átomo de ser ridículo.

A questão é: os brasileiros, no exterior, compram tudo quanto vêm pela frente. Precisamente os estratos sociais que nutrem mais ódio contra o governo atual, que lhes melhorou sensivelmente as condições econômicas, são os que mais viajam e mais compram. É superlativo o consumismo desta gente e totalmente diversificado.

É de tal maneira brutal, que constrange até alguns que vendem e ganham a vida com isto, posto que a ausência de gosto e necessidade de afirmar a posse de dinheiro sobrepõe-se a tudo. Há setores em que o comprar e vender envolve um jogo de regras conhecidas, em que se fingem curiosidades e se afirmam refinamentos, além de se discutirem preços. Conversam vendedor e comprador em certos ramos do comércio, a valorizarem a transação.

Com a invasão brasileira isto não acontece. A compra é um ato isolado, a ser repetido à exaustão. Tanto faz que sejam souvenires comuns, daqueles que se vendem nas áreas mais turísticas, quanto sejam roupas, relógios caros e ruins com marcas de roupas, cosméticos, bebidas, eletrônicos, computadores, qualquer coisa, enfim.

A preparação que antecede a ida de um grupo alto médio classista brasileiro ao aeroporto, depois de suas jornadas aquisitivas, é coisa a ser observada ao menos uma vez, que mais de uma tende a intoxicar ou deprimir. Em frente ao hotel está o ônibus que conduzira os humanos ao aeroporto; em frente ao veículo, um guia atarefado, a pedir ordem, a lembrar que o avião não espera…

Descem as malas e isto é o que importa; é a imagem que gostaria, se o talento fosse suficiente, de pintar com palavras: a descida e acumulo das malas no saguão do hotel e, depois, na fila de cheque do aeroporto.

Há velhotas a conduzirem malas de 40 Kg, algo prodigioso que me faz pensar no descompasso entre os limites mentais e os físicos. O consumo, a posse do que foi avidamente consumido, estende muito os limites físicos e permite que estas malas tão grandes quanto um pigmeu sejam empurradas, roladas e afinal cheguem aos seus destinos.

Claro que ainda há destes viajantes mais ligados ao século XIX e que necessitam de serviçais para carregar suas bagagens dignas de mudanças definitivas. Terrível é não gratificarem os serviçais, coitados deles que pensavam ter saído da escravidão até depararem hordas de brasileiros neo ricos ainda a supurarem as feridas narcísicas.

Alguém que perca seu tempo a ler este retrato do feio poderá obstar que as personagens aqui comentadas são mais universais que se supõe. Ao que direi previamente que há elementos a provar a originalidade.

A franquia de bagagem por peça, nos voos saídos do Brasil e com retorno a ele, se comprados os bilhetes no Brasil, é a maior do mundo: duas peças de até 32 Kg! Esta massa, se se compuser de roupas e outras coisas de higiene pessoal, é suficiente para uma pessoa comum viajar seis meses ou mais. Não se entregue ninguém à tolice de achar 64 Kg de roupas pouquinha coisa.

A acomodação destas dúzias de volumes pesadíssimos no veículo que conduzira o homo qui emit leva mais tempo que o habitual, quando se trata de conduzir outras variações do que Lineu chamou generosamente homo sapiens. A chegada à aerogare, contudo, é o momento triunfal!

Uma simpática funcionária da companhia aérea perguntava-me se as coisas estão assim tão caras no Brasil. Compreendi perfeitamente. Respondi-lhe que sim, estão mais caras que lá, mas nada que justifique um furor aquisitivo tão desenfreado e tão difuso. E nada que justifique o pagamento por excesso de bagagem, algo frequente a despeito da enorme franquia para o homo qui emit.

Cobrar do alto médio classista brasileiro a taxa por ter excedido o imenso limite de peso para as bagagens é um martírio para o coitado do funcionário da companhia aérea. Acontece que muito candidamente o pequeno-burguês brasileiro não tem em mente que seus limites são superiores aos de todos os demais cidadãos do mundo. Eles creem-se aquinhoados muito naturalmente por algo que não poderia ser diversamente.

Aqui outro ponto interessantíssimo: a classe dominante – ou, melhor dizendo, os servos intermédios da classe verdadeiramente dominante –  não percebe as suas diferenças relativamente a grupos de outros países, que se encontrem mais ou menos nas mesmas condições sociais e econômicas nas suas origens.

Acha-se igual ou melhor, o que revela incapacidade brutal de ver-se, de ver os outros, de perceber diferenças e semelhanças. A gente brasileira que viaja para fora é, insofismavelmente, pertencente aos estratos mais altos da sociedade. Não há bilhetes de menos de 1000 euros, exceto se o destino for a Argentina. Isto não é pouco dinheiro e há que se lembrar dos outros milhares que serão gastos com bugingangas.

Pois esta gente é totalmente autorreferente, ignorante, consumista e desprovida de gosto. E acha-se mal posicionada na escala social brasileira; e acha-se merecedora de mais dinheiro; e lamenta não poder ter mais escravos domésticos; e diz gostar de ir à Europa…. Para quê, afinal?

O espelho de Narciso e o suicídio involuntário.

A pequena-burguesia brasileira foi levada a crer que é importante, ou seja, que é o centro das atenções, o ponto em torno a que tudo gira, que suas opiniões são importantes e principalmente que ela tem algo relevante a dizer sobre tudo, como sói acontecer com Caetano Veloso. Essa obra de ilusionismo deve-se à imprensa mainstream, naturalmente.

Esse tipo de fantasia ajuda bastante a imprensa, na sua cruzada incessante contra qualquer governo que desconcentre, ainda que pouco, a apropriação de riquezas no Brasil. Além de imbecilizar as classes sociais suas clientes, a imprensa consegue aumentar a já enorme auto-referência. O narcisismo exacerbado, por seu turno, retroalimente a imbecilização.

As classes médias altas acham que ganham pouco dinheiro e querem que o dispêndio com programas sociais para os mais pobres seja-lhe dirigido. Por isso, com raivinha da atual presidenta da República, marcham em ordem unida com as outras duas candidaturas viáveis: a de Marina Silva, financiada pelo banco Itaú, e a de Aécio Neves, da direita de longa data e não aventureira.

Acontece que nenhum dos dois, nem a do Itaú, nem o queridinho da imprensa, suprimirá, caso eleito, dinheiro de programas sociais para entregá-lo às classes médias altas. Esse dinheiro, a parte do que for suprimido, será destinado ao grande capital, nomeadamente por meio do pagamento de juros remuneratórios de títulos públicos.

 Mas isso, que não é tão difícil de perceber para quem pensa sem se colocar como centro do mundo e sem recorrer a veículos de imprensa, não ocorre à maioria da pequena-burguesia e principalmente àqueles que são funcionários públicos. Mais extraordinária é a ausência de memória desta gente, que apagou os registros de como foi tratada no exemplo anterior mais próximo à candidata do Itaú e no exemplo eloquente que foi o governo do patrono do queridinho da imprensa.

Nada obstante, o ódio a que foi conduzida larga parcela da pequena-burguesia pela imprensa brasileira cegou-lhe totalmente a vista e obstou-lhe qualquer rasgo de sensatez, ainda que eventual e rápido. Se é verdade que o exemplo ensina, também é que se lhe esquece rapidamente…

Assim, pensando com o fígado e alguns poucos neurônios, muitos votarão contra si mesmos e contra o maior número, porque acham-se injustiçados por não receberem o que se acham merecedores, como centro do mundo que são.

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