Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 11 of 126)

Terra arrasada.

A imprensa tornou-se o maior poder dos países ocidentais, mais poderosa do que a legislatura, o executivo e o judiciário…precipitação e superficialidade são a doença psíquica do século XX e mais do que em qualquer outro sítio é na imprensa que tal doença se reflete.

Alexander Soljenítsin

 

Incapaz de vencer eleições presidenciais nos últimos doze anos, os entreguistas brasileiros resolveram paralisar o país, disseminar o medo, o ódio, a intolerância, a percepção de crise, tudo isso por meio da imprensa, que serve aos desígnios entreguistas com fidelidade e dedicação.

Os resultados são tão previsíveis quanto terríveis. Há o efeito de autorrealização das profecias e a economia, por exemplo, acaba por retrair-se mais por conta das más expectativas. Mais que cairia normalmente este ano e que é muito pouco, diga-se.

Porém, o pior desta estratégia de disseminar-se que tudo está ruim e em níveis sem precedentes é que a classe média acredita nisso. Já de si é bastante tola e ignorante; com essa ajuda da imprensa, para piorar o ruim, torna-se insuportável. E essa gente é afirmativa, ou seja, reproduz as idiotices que lê ou escuta e sai a pedir confirmações para elas.

Nada no Brasil está pior que há 15 anos. Nem economia, nem distribuição de rendas, nem saúde, nem educação, nem segurança pública, absolutamente nada. A percepção disso seria facílima para qualquer pessoa que olhasse à sua volta e pensasse com sua própria cabeça. Um pouco de memória é necessário também, evidentemente.

O extraordinário foi ter-se instalado o clima de terror, a percepção de caos, a noção de que as coisas estão a piorar. Isso é a grande obra da imprensa e os frutos serão uma ingovernabilidade que não ajudará nem aos grupos de oposição. O sujeito médio – aparentemente possuidor de um cérebro pensante e de memória, além da tão aclamada liberdade – nega a realidade, os números, as séries históricas, nega sua própria percepção e repete o que lhe disse a imprensa e o que lhe desdiz a realidade.

Chegou-se a ponto da histeria macartista contra a corrução – mesmo que ninguém saiba onde ela está e como funciona – lançar âncora no judicial, que a pretexto de a combater promove a quebra de grandes empresas, desempregando milhares de pessoas. As massas enlouquecidas não param a pensar que não é preciso destruir empresas e por na rua trabalhadores para se combater qualquer coisa.

Humano: a diferença específica não é natural.

O fato de termos consciência de nós mesmos e de termos subjugado as demais espécies na terra, levou-nos à busca tão frenética quanto justificável da diferença específica a permitir a definição do humano. Neste processo, todavia, elementos místicos adentraram e a confusão instalou-se.

Não havia porque, racionalmente, confundir diferença específica com natureza. Isso é derivar para o axiomático e isto ocorreu com quase todos quantos tiveram bons êxitos no isolamento da diferença específica. O sujeito que encontrava – ou cria tê-la encontrado – apressava-se a dizer natureza humana. Muito fetichista, evidentemente; o fetiche do dedo de Deus encontrado sorrateiramente…

Houve um debate interessante, na Alemanha, entre Michel Foucault e Noam Chomsky, dois intelectuais valorosos e rigorosos. Não sei a data do encontro, mas a julgar pelos trajes, deve ter ocorrido em 1969 ou 1970, por aí.

Chomsky, mansamente, constrói um discurso que culmina na postulação da potencialidade criadora da linguagem como a definidora da natureza humana. Ele poderia ter-se ficado pela diferença específica e muito provavelmente ainda estaria entre o axioma e a petição de princípios, mas foi além: natureza humana!

A linguagem, qualquer um lembra-se, não é nossa exclusividade. Daí ser necessário acrescentar-lhe a potencialidade criadora. Porém, esta potencialidade é a própria linguagem, meio combinatório, a par com código e instrumento de comunicações. Vários mamíferos permitem observá-lo, na medida em que se deixaram domesticar ou perceberam as vantagens de viver perto dos humanos – alguma vantagem deve haver.

Estranho também é definir por potência, pois aproxima-se de nada. Um carro não se define por seu motor ser capaz de, a certas regimes de rotações, desenvolver cem cavalos vapor. Ele pode, sim, definir-se por mover-se e chegar, em dadas condições, a tantos ou quantos quilómetros por hora de velocidade. Ou seja, ele define-se por ato.

E aí percebe-se que o humano, no que tem de natural, é profundamente inespecífico. Por natural ele precisa alimentar-se, excretar, fornicar, dormir. A história, essa a marca humana, nada tem de natural nem é potência, sim uma sucessão de atos, construídos uns sobre outros e muitas vezes drasticamente dissociados.

 A localização da diferença específica na potencialidade linguística e sua caracterização como elemento natural é de inspiração curiosamente religiosa. Curiosa, porque a criação divina não fica maculada pela não naturalidade do humano. São coisas que não interferem reciprocamente. Mas as prisões da alma são fortíssimas…

O medo e o grau zero da racionalidade.

Ocorreu algo bárbaro, mas não propriamente raro nestas terras: uma revolta na penitenciária local, desencadeada pelas péssimas condições de encarceramento e por brigas de facções internas. A confusão acelerou-se a partir do momento em que decapitaram um preso e passaram a jogar com a cabeça separada do corpo.

As pessoas acham – bárbaras que são – que as penitenciárias devem ser cópias do inferno. Ignoram que o Estado tem poder de privar de liberdade, que é penalidade, mas não tem direito de privar de dignidade. A humilhação e a imposição de condições degradantes ainda não estão previstas legalmente como sanções penais, embora muitos queiram isso. Assim, é legítimo que os presos queiram condições adequadas.

Claro que a forma de reclamar é também bárbara, mas não seriam ouvidos de outra maneira e nem são mesmo com linguagem tão eloquente. O fato é que desencadeou-se onda de boatos e surto generalizado no vulgo de medo.

Um dos boatos, repercutido por gente que não aceitaria ser chamada de ignorante, dizia que os presos amotinados tinham fugido do presídio e rumavam para o centro da cidade, precisamente para o terminal de integração de transportes urbanos.

É algo muito estúpido até pelos largos padrões de tolerância que se tem de adotar recentemente. O vulgo não pensa antes de repetir algo. Ele age a projetar-se sobre o mundo, age diante do espelho. Ora, é difícil imaginar uma caravana de presos fugidos marchando para o centro da cidade para fazer um protesto! É o grau zero da racionalidade, porque presos fogem para se esconderem.

Mas o vulgo, principalmente o médio-classista que tem feito protesto gourmet contra governo que redistribui riquezas, acha que ele e um preso amotinado tem as mesmas preocupações e anseios. O sujeito estreitou-se a ponto de conceber o mundo à sua total semelhança e fica incapaz de pensar.

Esse estado de ânimo revela campo fértil para a semeadoura do medo, para o alastramento da cultura da repressão, de que a violência decorre da falta de violência. As pessoas repetem acriticamente que tem havido aumento significativo da violência, o que não é verdade. Se não houve recuo, não houve aumento. Basta um pouco de memória para aqueles que passam dos quarenta anos de idade para constata-lo.

Ganham com isso apenas os agentes do aparato de segurança, o que sempre ganham com o medo e a violência. A sociedade nada ganha, porque se pancada resolvesse violência, o Brasil era o país mais pacífico do mundo, tanto já se deu pancada, tiros, torturou-se, tudo à margem da lei e à discrição de selvagens investidos em poderes policiais.

Na esteira dessa cultura do medo histérico, pre-condição para um estado policialesco e de exceção, vem o habitual discurso por redução de maioridade penal e por pena de morte. Duas coisas que já existem, todavia! No Brasil, a maioridade penal do pobres pretos ou mulatos inicia-se no nascimento. Pena de morte é praticada todos os dias pela polícia, sem julgamentos…

A ferida de narciso ainda supura.

Em 1654, acabou-se o Brasil holandês. As batalhas vencidas por tropas de índios, pretos, mestiços, portugueses inserem-se num panorama maior, o da Restauração portuguesa. As grandes batalhas – Monte das Tabocas, Guararapes – na realidade, deram-se anos antes da saída total dos holandeses.

Era muito claro para os líderes envolvidos que se retomava o Brasil holandês para reintegrá-lo ao reino. Não havia aspiração a fazer daqueles pedaços de Pernambuco e Paraíba qualquer coisa autônoma. Por outro lado, era claríssimo que essa recém constituída nobreza de espada da terra queria reconhecimento.

No Obelisco da Praça dos Restauradores, há menção às batalhas em Pernambuco, o que evidencia que a expulsão dos holandeses claramente era percebida num movimento mais amplo, como foi a restauração de Portugal com a subida do duque de Bragança, que seria João IV.

Acontece de ser difícil agradar aos que obtiveram glória militar e se alçam à fidalguia pela espada. Por um lado, o reino tinha de reorganizar as finanças e, por outro, relutava em elevar à nobreza mais alta aquela gente bronca que já se enraizava na terra, principalmente no negócio do assúcar.

Essa fidalguia da terra daria trabalho aos governos, pois conservaria por dois séculos a memória do combate e sua altivez seria rastreada historicamente. A segunda metade do século XIX viu a perda total do seu impulso original. Ficariam a arrogância, o espírito de predação e a hipocrisia, traços fortes dos decadentes.

Isso, essa origem da fidalguia local e seu processo de decadência, marcou um espaço geográfico: o Recife. Era uma cidade aberta – reluto em usar cosmopolita – muito por conta de seu porto privilegiado. Havia muitos estrangeiros e, como havia comércio internacional, circulava dinheiro.

A gente local achava-se importante, mas sabia que o mundo ia um pouco além de suas próximas fronteiras. Até antes do golpe militar de 1964, o Recife era, de certa forma, um local florescente e aberto, mesmo que a decadência econômica já cobrasse alto preço.

As décadas de 1980 e 1990, todavia, são de uma caipirice profunda. Misturavam o orgulho dos ignorantes e pobres com a crença no novo mundo liberal: uma tragédia. As pessoas continuavam a julgar-se importantes, mas não sabiam mais que havia o resto do mundo – o resto do mundo é mais que Miami, devo advertir – e não tinham mais conhecimentos históricos.

Essa gente, nessa época, era caricatura de antepassados remotos cuja história não conheciam. Não sabiam de onde viera aquela sua arrogância, aquele seu apreço por símbolos da terra, algo sempre notado pelos de fora. Tornou-se lugar comum celebrar-se a peculiaridade e o orgulho bairrista dos pernambucanos, como se fosse de se imitar essa permanente e vazia referência a si mesmo, sem saber porque.

Não é algo feio ou reprovável em si, mas celebrações autoreferentes como as que se faziam do hino de Pernambuco, nomeadamente nos anos 90, são algo a beirar o patético, dadas as circunstâncias. Súbito, num acesso de modismo, tocava-se e cantava-se o hino a propósito de qualquer coisa ou nada. Ostentava-se a bandeira do estado em roupas, nos carros.

O surto simbolista bairrista, creio que poucos perceberam, era tudo menos alguma manifestação cosmopolita. E o recifense prototípico acredita-se cosmopolita enquanto celebra-se sem celebrar um passado que conheça.

Recordo-me que havia, no Recife dos anos 80, consulados de EUA, França, Alemanha, Japão, Portugal e outros mais. E nunca percebia o sentido que aquilo fazia numa cidade tão provinciana, decadente, pobre e fechada. Porque não fazia sentido algum. Claro que tinha feito, anteriormente.

O contraste é a técnica mor da caricatura e o destaque por excelência do grotesco. Depois de perdido o pólo petroquímico para a Bahia e de ter a Sudene passado a ser emprestadora de dinheiro para criação de bois de papel, a decadência econômica foi brutal.

Mas as classes dominantes permaneciam com a mesma mentalidade e cada vez mais sem história. As demais não poderiam tentar imitar outro modelo senão o que havia. Essa fauna povoava aquele ambiente…

De certa forma, parece voltar a haver vida, de maneira menos arrogante e com mais presença estrangeira. Lastimavelmente, num momento em que a cidade ruma para a inviabilidade absoluta, por impossibilidade de locomoção. Triste retomada…

As pequenas transgressões e a ilusão da originalidade.

O vulgo é muito inumano racionalmente e, portanto, humano. Banalidade e falta de energia não provieram de outra coisa senão da racionalização do quase nada, feita com instrumentos precários. A racionalização da banalidade leva-o a buscar ilusões de originalidade.

A pequena transgressão dá ilusão de originalidade, assim como a moda, que sempre vai e volta, mas é percebida como original em cada tempo de retorno.

O caso é que há um parque na cidade. Pequeno, é verdade, mas relativamente agradável, arborizado, com algum relvado, equipamentos para exercícios físicos e uma pista de aproximadamente um quilômetro, para caminhadas e corridas.

A pista tem uma largura média de dois e meio metros e tem setas pintadas a indicarem o sentido, que é anti-horário. Não é sem razão, nem é alguma violência ou supressão de direitos determinar-se um sentido para os caminhantes e corredores. É uma questão de facilitar a vida de todos.

O sentido único maximiza a eficiência de uma pista relativamente estreita, porque todos podem antecipar-se nos movimentos, já que vêm quem vai à frente. Além do sentido único, há uma faixa de mais ou menos 50 centímetros, dedicada exclusivamente à corrida.

Pois são frequentes as pessoas que caminham e correm no sentido inverso e fora das faixas adequadas, o que gera encontrões, paradas, saídas da pista para desviar dos que vêm em sentido contrário e outros aborrecimentos que simplesmente podiam não haver.

É notável que os caminhantes e corredores do sentido inverso fazem-no voluntariamente e trazem um discreto sorriso de canto de lábios. As setas pintadas no pavimento são grandes demais para se ignorarem e a maioria dos frequentadores é alfabetizada e, assim, capaz de ler a palavra corrida, escrita no chão.

É o prazer da pequena transgressão, aquela impune – até porque seria mais vulgar punir isso que o fazer – que dá ao sujeito a sensação de originalidade.

O vulgo adora a pequena transgressão na mesma proporção em que é incapaz de grandes atos, sejam estes crimes ou criações de outros tipos. Não tem energia vital para o grande ato, não tem inteligência para perceber que a originalidade do banal é ilusória.

Ele precisa desta ilusão, como precisa da moda, o retorno contínuo que não parece uma roda a girar. A moda se auto disfarça, faz crer na novidade, banaliza a idéia de originalidade. E foram todos levados a crer na necessidade de originalidade e, portanto, a ignorar o que isto seja.

A pequena transgressão não faz mais que gerar embaraços e manter apagada a força humana.

As prisões formais. Cumplicidade com a fraude, elemento de coesão social e boa consciência individual.

Época de declaração de ajuste anual do imposto sobre a renda das pessoas físicas, relativo ao ano anterior, é um frenesim enorme na pequena-burguesia brasileira. Convém lembrar que este grupo é a caixa de ressonância do discurso da excessiva carga tributária; acham que pagam muitos tributos…

É a mesma gente que viaja frequentemente ao exterior, notadamente para os EUA e para a Europa e de lá nada trás na cabeça, apenas nas malas. Se não fossem totalmente impermeáveis, trariam algo mais que a memória das vitrines; trariam informações a lhes permitirem comparações e certas purgas mentais.

Os tributos, em geral, nos EUA, são mais reduzidos que no Brasil ou na Europa, mas do Estado nada se recebe além de balas da polícia, por coisas tão sérias como ser meio preto ou estar em atitude suspeita, seja lá o que isto signifique.

Na Europa a tributação é muito mais elevada que no Brasil, seja sobre a propriedade imobiliária, sobre a renda, sobre o consumo, sobre as grandes fortunas. O retorno estatal pelos tributos cobrados ainda é considerável, principalmente na rede de proteção social aos mais pobres, mas isto recua velozmente.

No Brasil, a classe que mais reclama do pagamento dos impostos é aquela que não recorre ao Estado para coisas básicas como educação e saúde e benefícios sociais, porque exatamente não precisa disso, embora diga que gostaria de usufrui-los.

Na verdade, a pequena-burguesia instituiu em seu benefício um sistema muito melhor, que consiste em usar serviços privados e dividir a conta com o Estado e toda a sociedade, consequentemente, por meio de deduções de despesas feitas na base de cálculo de seu imposto sobre a renda. Deduções de despesas com serviços que são oferecidos gratuitamente…

Nesta época ouve-se muito o pequeno-burguês prototípico a falar de recibos de pagamentos por instrução com dependentes e principalmente despesas com saúde. Estão à procura de médicos, farmacêuticos, fisioterapeutas que vendam-lhes recibos de despesas e tratamentos não realizados.  É burla, é fraude evidente, não há como suaviza-lo.

E este ser médio, prototípico, trata o assunto abertamente, em clima de camaradagem e cumplicidade, se for com interlocutores da mesma classe social. Não lhe ocorre – mesmo que seja o mesmo sujeito a fazer passeatas contra corruções – que está a praticar nada mais que uma ilegalidade visando à evasão fiscal.

Alguns, diante da objeção mais sutil à pratica da compra dos recibos, veem com um argumento formal que toma o desconhecido como não ocorrido. Dizem que têm os recibos em mãos e que chamados a dar explicação, terão êxito.

Ora, um delito que não se descobre não é um que não aconteceu. A possibilidade de êxito no axcobertamento de um ilícito não faz dele uma prática lícita.

Melhor andaria o Estado se suprimisse todas as deduções da base de cálculos do imposto sobre a renda das pessoas físicas. Obrigaria a pequena burguesia a abandonar sua oceânica hipocrisia e pendor pela mentira e pedir serviços públicos melhores com sinceridade. Hoje, ela não demanda melhoras sinceramente, porque nunca esteve sinceramente preocupada com serviços que não usa, que são coisas para os mais pobres.

O poder do dinheiro e o vácuo de outras forças sociais.

Muito se tem falado em corrução, presentemente, em termos de moralismo político. Muito embora seja abordagem quase destituída de sentido, por difusa e histérica, aponta para algo que se repete na história: o escândalo com o poder social do dinheiro.

Vários períodos históricos viram a acusação veemente do excessivo poder social do dinheiro e poucas coisas em comum tinham estes períodos, exceto terem-se revelado épocas de transição, em que não se anunciavam claramente os novos princípios retores a predominarem na sociedade.

O dinheiro, ao contrário do amplamente aceite, não é uma força primária de conformação social. Os destacados princípios hierarquizadores das sociedades são pertencimentos a raças, clãs, religiões, círculos intelectuais. O dinheiro destaca-se como critério de hierarquização quando os princípios primários recuam na sua importância. Ele impõe-se no vácuo dos outros, embora esteja sempre presente, como força meio.

Afastando-se de concepções puramente economicistas da história, percebe-se que toda a dinâmica social não está em função do que se pode comprar, embora seja notável uma aceleração desta motivação, a partir de quando a quantidade de coisas passíveis de aquisição aumentou muito.

Em momentos históricos de pouca disponibilidade de coisas comerciáveis, o dinheiro raramente sobrepõe-se a outros princípios de poder social, embora o público o anuncie com surpresa e escândalo. Raramente sobrepõe-se ao poder social do guerreiro ou do sacerdote, até bastante recentemente.

Não é demasiado, nem deve ser escandalosa a menção por si só, lembrar que no medievo europeu o dinheiro, ou pelo menos grande parte dele, estava em mãos dos judeus e estes eram destituídos de poder e ocupavam baixa posição na hierarquia social. Evidência do predomínio de outras fontes de poder social, como religião e raça.

Crises de transição histórica geralmente oferecem o espetáculo da acusação indignada do poder do dinheiro, que nada mais é que o libelo confuso contra uma corrução crematística, por parte de quem se vê na correnteza de águas turvas sem saber para onde vai. O surto moralista e moralizante é muito efeito do aturdimento com o entorno em mudança. Incompreensão, enfim.

Todavia, a afirmação do poder do dinheiro – não sua acusação como falta ou consequência de corrução – passa a fazer mais sentido na sociedade industrial, porque a oferta de coisas aumenta exponencialmente. Se não assume realmente condição de princípio primário de poder social, atua em paridade com outros que se destacaram mais preteritamente.

Alguém poderia ver nisso algo positivo, na medida em que o critério hierarquizador das sociedade assumiria ares mais objetivos, a partir da detenção de dinheiro. Sucede que esse modelo levado aos limites eliminaria a própria base do avanço técnico e consequentemente material da sociedade. Se os homens de idéias e de ciência virem-se destituídos de qualquer poder social que emane precisamente desta condição, é previsível que seu número reduza-se até o ponto do regresso técnico.

Seria, assim, demasiado audacioso vaticinar o predomínio do dinheiro como fonte primária de poder, a fazer sucumbirem todas as outras. Principalmente porque as organizações de marca clerical, como as religiosas, acadêmicas e as militares sempre se insinuarão a fazer, no mínimo, papel de intermediação.

Mas, o destaque do dinheiro como fator de poder é notável e crescente. De minha parte lamento apenas pelo correspondente recuo na sensibilidade estética e cultural. Não é preciso ter artesãos dedicados para saciar a vontade do possuidor de muito dinheiro. A indústria sacia o colecionador de bens materiais…

A morte de uma estrela. Ou, tentativa de compreender os efeitos da decadência norte-americana.

Este texto foi originalmente escrito em abril de 2010.

Era previsível que o processo histórico acelerado cobrasse aos EUA algum preço. A decadência é real, no sentido de perda de soft-power. A influência é exercida diversamente; não mais organizada e nitidamente, mesmo que por meio da guerra, mas por intermédio do caos, da destruição levada quase como imposição de solidariedade na agonia que se avizinha. As faces mais destacadas do processo são econômicas. É lugar-comum fixar-se no econômico, como nas obviedades em geral. Mas a desordem é para muito além do econômico. Esse é o risco para o mundo em geral e para os sul-americanos particularmente.

Dois processos se distinguem, conforme sejam as estrelas grandes ou pequenas e suas mortes serão diferentes, portanto. Tanto as grandes, quanto as pequenas, vivem da fusão de núcleos leves, de hidrogênio e de sua variante, o hélio. Ambos são muito longos, na escala de biliões de anos, e têm desfechos grandiosos. Em comum, têm na raiz o esgotamento do combustível, mas as diferenças quantitativas implicam nas qualitativas.

Uma estrela pequena, como o sol que vemos, morre a caminho de tornar-se uma anã branca ou uma anã negra. No início do esgotamento do seu hidrogênio fundível, seu núcleo começará a contrair-se, sob a ação da enorme gravidade, mas ainda haverá fusão de hidrogênio nas camadas mais exteriores. Essa contração do núcleo acarretará um aumento da temperatura que se refletirá também nas porções externas e acarretará uma expansão da estrela.

Em pleno processo de morte, ela se expandirá, tornando-se uma gigante vermelha. As temperaturas do núcleo estarão tão elevadas que o hélio transformar-se-á em carbono. Então, acabando-se o hélio, o núcleo começará a esfriar e as camadas externas a se deslocarem ainda mais, terminando por explodirem numa vasta ejecção de matéria, que formará uma nebulosa de planetas.

Uma estrela grande inicia seu fim semelhantemente a uma pequena. O núcleo vai ficando sem hidrogênio e o hélio vai se transformando em carbono, por fusão, em decorrência das elevadíssimas temperaturas e pressões. Mas, aqui, após o esgotamento hélio, o processo continua, porque as massas são enormes. A fusão segue seu curso e o carbono torna-se em elementos mais pesados, como oxigênio, silício, magnésio, enxofre e ferro.

Tornado o núcleo de ferro, a fusão não é mais possível e, sob o efeito da gravidade – enorme à vista da massa e da densidade – ele se contrai tão violentamente que prótons e elétrons tornam-se em nêutrons. Essa contração rápida gera um tremendo aquecimento e a precipitação das camadas exteriores sobre o núcleo que, então, se aquece muito e explode, criando uma supernova. A ejeção de matéria é vastíssima e pode dar lugar à formação de outras estrelas. O que resta do núcleo pode tornar-se uma estrela de nêutrons, ou um buraco negro, conforme a quantidade de matéria.

Analogia, etimologicamente, é a falta de lógica ou, melhor dizendo, a negação dela. Forma-se com a partícula negativa grega a e a também grega lógica. Consagrou-se utilizar analogia para comparação entre situações distintas mas, sob algum aspecto, similares, visando-se a realçar pontos comuns entre o que não obedece a relações de causa e efeito. Não é um formato de argumento, portanto, limitando-se a ser um recurso comparativo.

Um domínio político-econômico de uma nação, ou grupo social assemelhado, morre, como morrem as pessoas, os bichos, as árvores e as estrelas. E pode morrer de maneiras diferentes, lançar matéria cultural e econômica de formas diferentes, manter ao final um núcleo maior ou menor.

O domínio norte-americano começa a morrer e interessa saber como o fará, porque esse processo pode destruir muitos vizinhos, mais e menos próximos ao moribundo de longa agonia. Morre porque a teoria que a vida não se apressa a confirmar – que a vida imita a arte, não as teses – finda por ser bastante exata até para teoria. Esse suporte teórico não foi propriamente construído por indução, mas por dedução. Aqui deixo claro que a mania de comparar os EUA à Roma do final da República e do período Imperial não me guiou, embora seja mais uma de várias analogias possíveis. Ou seja, um recurso comparativo, sem lógicas, que leva a muitas coisas plausíveis e outras nem tanto.

Não acabará de morrer amanhã, nem depois de amanhã, nem de cem anos, mas morre. As condições para ser a maior potência mundial são compreensíveis a partir de quanta pouca ciência econômica e social se disponha: ter a dianteira da inovação tecnológica, ter a moeda de conversão universal e, por conseguinte, a possibilidade de importar poupança, e a maior delas, poder evitar o desconto das promissórias.

O mesmo suporte teórico avaliza a percepção do início do processo de morte. Perder a dianteira da inovação tecnológica, perder o monopólio do meio de troca e ver a possibilidade de, no limite, evitar o desconto das promissórias ser difundido. Ora, o suporte teórico econômico ficou desacreditado não porque a teoria seja ruim, mas porque a prática não se dava segundo seus postulados, embora isso fosse constantemente afirmado. A teoria era e é boa.

Não é possível gastar ilimitadamente, nem investir também sem limites a partir de poupança externa. Assim como não é possível evitar inflação mantendo os aumentos da renda do trabalho inferiores aos aumentos de produtividade indeterminadamente, a partir da apropriação das produtividades crescentes de terceiros. Um dia, a conta deve ser feita segundo parâmetros ortodoxos.

Quando a falta de hidrogênio e a concentração do núcleo forem muito grandes, as explosões começarão e atingirão quem está mais perto, a América do Sul e a Ásia que ainda não gira totalmente em torno à China. Esses viverão grandes desestabilizações, políticas e econômicas, passearão da extrema direita à extrema esquerda, irão da falência à riqueza, em uma confusão tremenda.

As analogias com a morte do Império Romano são, sim, significativas, embora não me pareçam o protótipo do que pode acontecer. Roma, acabando-se, continuou na Grécia, como tinha, de certa forma, nascido dela. Bizâncio continuou por mil anos, falsa herdeira de Roma, mas na verdade um império grego meio orientalizado e meio eslavo, afinal. E a Europa não romana enriqueceu nos despojos romanos. A confusão não foi pouca, como sabe quem se acostumou com o termo idade média, até suave frente ao também comum idade das trevas.

Acontece que a China não é Bizâncio e se fosse não seria qualquer alento em comparação analógica. Pois Bizâncio tornou-se em outra coisa e não organizou a situação próxima ao morrente Império Romano. Nós, na América do Sul, seremos golpeados por jatos de matéria e confusão cultural resultantes dessa morte lenta e afinal explosiva, que nenhum outro centro de poder poderá evitar. A Europa, essa resolverá o problema com um pouco de empobrecimento, o que é traumático, mas menos que a confusão de quem ainda é pobre.

Ódio golpista e diferenças relativas de classes.

A imprensa conseguiu enfim criar níveis de ódio suficientes para se levar à frente o golpe de Estado fundado na difusa histeria moralizante. Semeou no terreno mais fértil: a classe média.

O interessante é que os sujeitos a serem instalados no poder estatal pelo golpe não são de classe média, nada devem a esse estrato social e nada farão por ela. A classe social onde fermenta o ódio golpista à maior temperatura perderá com o que patrocina.

Cega, não percebe ser instrumento de algo que beneficia a meia dúzia. Todavia, há algo sutil a ser notado. Mesmo que entre a névoa alguns consigam perceber que economicamente nada ganharão com o golpe entreguista, persistem a querê-lo. Por que?

Porque a classe média aceita piorar sua situação econômica desde que os pobres piorem mais. Desde que volte a ter servos mais baratos, que volte a sentir-se segura numa relação esclavagista, que volte a frequentar aeroportos e restaurantes vazios, ela aceitará retroceder também.

O cerne da coisa é a percepção da redução das diferenças relativas. Muita gente não apenas começou a consumir e a frequentar espaços nunca franqueados, como reduziu a atitude mental do servo. Ou seja, passou a perceber-se como gente, como cidadão.

Reduziu-se o número dos que por uma refeição ou roupas velhas empenha gratidão tão cara ao médio classista, que precisa deste conforto. Isso, essa redução das diferenças – não só econômicas, como sociais – o médio classista não perdoa.

Ele entra pra ajudar um golpe entreguista, certamente perderá, mas saíra contente desde que os pobres percam mais e retornem aos seus lugares de serviçais prontos a copiosos agradecimentos por uma refeição.

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